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Publicado a: 31/01/2016

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu

 

Den Sorte Skole – dinamarquês para A Escola Negra – é um colectivo de djs e produtores de Copenhaga que lançou em 2015 mais uma incrível e impossível peça musical, Indians & Cowboys, que, tal como já tinha acontecido com a igualmente espantosa Lektion III, acaba de merecer edição em formato físico, tendo sido impressa em vinil.

Indians e Cowboys prossegue o trabalho que o colectivo criado por Simon Dokkedal, Martin F. Jakobsen (afastado desde 2011) e Martin Højland iniciou em 2006 com a edição da mixtape Lektion I. Tal como DJ Shadow e Cut Chemist antes deles, também os Den Sorte Skole procuraram, ao citarem a mítica série de “lições” assinada pela dupla Double Dee & Steinski, firmar os pés no entusiasmante terreno da colagem sonora efectuada através de uma perspectiva hip hop. Os DJs vistos como uma espécie de herdeiros directos da escola francesa de música concreta só que, ao invés do que faziam Pierre Schaeffer ou Pierre Henry, que buscavam as suas fontes sonoras na realidade concreta do dia a dia (o ruído da porta que abre, as gravações conseguidas numa gare de comboios…), Dee e Steinski, primeiro, e depois Shadow, Chemist ou, mais recentemente, estes Den Sorte Skole, buscaram no alargado universo de sons impressos em vinil a matéria prima para as suas obras de corte e costura, de colagem sampladélica.

Claro que as ferramentas à disposição são outras: velhos gravadores de fita magnética para o Groupe de Recherche de Musique Concrète ou para o hoje tão reverenciado Radiophonic Workshop da BBC, gira-discos, computadores e samplers para os discípulos desta nova escola de colagem. Double Dee & Steinski, que editaram a primeira da sua série de três Lessons logo em 1983, funcionam como a ponte entre dois mundos, entre duas formas de pensamento: também usavam fita magnética, tesoura e cola, mas já incluíam no seu arsenal de recursos tecnológicos o gira-discos e a mesa de mistura, integrando portanto o pensamento inaugurado pelo DJ de hip hop no Bronx, algures na segunda metade dos anos 70 e abrindo aí uma linhagem que teve depois nos britânicos Coldcut os seus expoentes seguintes.

Os Den Sorte Skole, no entanto, distinguem-se por serem, nitidamente, um produto da era da internet. Se DJ Shadow e Cut Chemist acabaram por cruzar destinos por terem tido uma mesma ideia mais ou menos em simultâneo (ambos assinaram peças com o título “Lesson 4” como homenagem à série de Dee e Steinski sem terem conhecimento dos passos um do outro) e por se descobrirem mutuamente como diggers dedicados, com uma feroz ética de trabalho que os levava a calcorrear muitos quilómetros e a explorar muitos continentes em busca das mais elusivas peças de vinil (do Japão ao Brasil, são bem conhecidas as “expedições” da dupla em busca de discos raros), já os Den Sorte Skole utilizam a internet como o terreno primordial para a sua investigação do passado. O método é simples: a música que usam nas suas criações é primeiramente descarregada como mp3 a partir desse imenso depósito que é a memória do passado digitalizada na infinda renda de blogues, no YouTube ou em qualquer outra plataforma onde seja possível ouvir música; quando um mp3 determinado é eleito como tendo lugar numa peça dos Den Sorte Skole, o grupo procura então adquirir o respectivo tema em vinil – serão, certamente, todos os seus elementos, devotos pesquisadores do Discogs e do Ebay.

Em entrevistas no período que se seguiu à edição do brilhante Endtroducing, DJ Shadow gostava de explicar que o processo de encontrar vinil para samplar já era, em si mesmo, parte do seu método de composição: as viagens que efectuava, os episódios que via desenrolarem-se na estrada, as conversas com outros coleccionadores, donos de lojas, músicos com quem se ia cruzando, tudo isso acabava por influenciar a sua abordagem ao sampling. Ouvir Endtroducing é também ouvir os passos de DJ Shadow a descer para uma cave poeirenta e mal iluminada. Ouvir Indians & Cowboys é outra coisa…

O mais recente trabalho dos Den Sorte Skole estende-se ao longo de quatro lados de vinil ou de quase 78 minutos. Nessa “tela”, Simon Dokkedal e Martin Højland pintam um imenso mural com recurso a mais de 350 discos diferentes de 75 países dos quais extraíram cerca de 10 mil samples diferentes. Já não são os passos na escada para a cave repleta de vinil, o que aqui se escuta, antes as incríveis possibilidades de uma nova era digital em que passado e presente coexistem num mesmo plano.

A partir dessa imensa filigrana de samples, os Den Sorte Skole constroem uma psicadélica e intensa viagem feita de contrastes e justaposições, feita de harmonias impossíveis entre músicos e sons de diferentes eras, de diferentes continentes, de diferentes escolas musicais. E tudo surge claramente detalhado. Tome-se, por exemplo, a primeira peça do Lado A da belíssima edição em duplo vinil (o anterior Lesson III, disponível igualmente numa primorosa edição em vinil, tem o formato de triplo LP): só nessa peça encontram-se excertos de obras de Yoko Ono, Steve Maxwell Von Braund, Igor Wakhévitch, David Axelrod, Iasos, This Heat, BLO, Intersystems, Conrad Schnitzler, Hawkwind, Jocy de Oliveira e François de Roubaix, para citar apenas uma dúzia de nomes de uma lista que ultrapassa as três dezenas. E estamos apenas na primeira faixa. Grandes gestos orquestrais, funk, electrónica de diversos quadrantes, new age, rock espacial, new wave angular, ácido da Nigéria… Tudo isso é usado como matéria prima na construção de um delicado mosaico de sons onde todas as peças se encaixam como se sempre tivessem, afinal de contas, existido neste contexto. E o encaixe dessas peças é sempre musical, fluído, dispensando a ideia de se perceber a textura da costura, como tantas vezes acontece no hip hop, quando o scratch é usado como cola.

A música dos Den Sorte Skole, como de resto a dos seus predecessores, tem ainda que resolver um problema que outras artes (nomeadamente as plásticas) há muito solucionaram: os discos desta célula criativa de Copenhaga só existem como edições de autor e têm circulação algo restrita porque seriam impossíveis de licenciar para então obterem uma distribuição mais alargada. Ainda assim, é possível encontrar Indians & Cowboys no Spotify, embora não haja aí sinal da série Lektions. O trabalho dos Den Sorte Skole assume-se assim também como uma reflexão sobre os limites dos direitos associados à música e sobre os métodos encontrados pelos criadores modernos para funcionarem neste contexto de permanente imersão digital num oceano de sons que se por um lado parecem estar apenas à distância de um clique, por outro parecem mais inacessíveis do que nunca.

Para lá das questões filosóficas e morais que o trabalho dos Den Sorte Skole levanta, como de resto aconteceu com os seus predecessores, posiciona-se, no entanto, a sua validade artística e estética. E Indians & Cowboys é mais uma prodigiosa amostra do incrível trabalho que os Den Sorte Skole têm vindo a realizar na última década. Cada uma das suas intrincadas tapeçarias sonoras é um retrato deste tempo, feito com elegância, ambição e bom gosto inexcedível. As peças fluem com uma sensibilidade orquestral bem apurada – o grupo, aliás, já colaborou antes com orquestras, nomeadamente com a Orquestra de Câmara Nacional da Dinamarca – como se em vez de uma estante recheada com a melhor música do século XX, a dupla tivesse à sua disposição uma orquestra que ao modelo clássico acrescentasse instrumentos exóticos, percussões dos quatro cantos do globo, sintetizadores, guitarras eléctricas… e samplers e gira-discos, pois claro. E tudo isto, ao alcance de um simples clique…

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