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Fotografia: Pedro Pinho
Publicado a: 22/10/2022

Sempre a tempo.

Deize Tigrona: “A minha escrita vem de um pensamento afro-futurista para alcançar o além e estar sempre mais à frente”

Fotografia: Pedro Pinho
Publicado a: 22/10/2022

Passam a vida a apressar-nos para vivermos um tempo que não é o nosso, a falar sobre comboios que só passam uma vez, a fazerem-nos acreditar que os nossos sonhos são impossíveis ou têm data de validade até que surge alguém que nos renova o crer. Esse alguém é Deize Tigrona

No passado desbravou caminhos para preparar um futuro no funk brasileiro para quem viesse a seguir. Deixou marcas claras na terra para que as suas pegadas pudessem levar ao seu destino quem doutra forma podia não ousar tentar lá chegar. Ousada e destemida, rebenta as costuras das imposições de género, renascida das cinzas como uma fénix, para gritar Foi Eu Que Fiz – título do seu mais recente álbum. Com ela aprendemos que o medo das alturas só nos impede de ver a vista – e quem perde somos nós.



Voltemos atrás no tempo, como começou o seu percurso no funk?

Eu iniciei a minha carreira de ’98 para ’99. Comecei por escrever poesia e rap. O rap surgiu porque o MV Bill era meu vizinho e as batidas do rap a ecoar na minha casa eram uma constante. De um lado tinha o rap e do outro a quadra do Coroado onde começou o movimento funk e onde me iniciei. Lá [na Cidade de Deus] já existiam os Baile Charme e foi aí que começou a surgir o rap melody. E eu, para aproveitar a poesia que já fazia, comecei a escrever funk melody, mas não estava a resultar pra mim… Até que quando passou a Hilda Furacão na televisão, eu me inspirei e escrevi sobre o Baile Lado A x Lado B, sobre as meninas do apartamento – onde eu morava – e as meninas das casinhas. Não o fiz com a intenção de “atiçar” ninguém. No entanto, havia uma parte da letra em que mencionava o “Bonde do Fervo lá da praça do apê” (o fervo era tipo uma fofoca) – que não existia – mas as meninas das casinhas acharam que havia um Bonde do Fervo nos apartamentos que estava a escrever sobre elas, então as meninas do apartamento decidiram criá-lo mesmo e começaram a gravar. E depois surgiu o Bonde das Badgirl – as meninas das casinhas. Foi aí que se iniciou o corredor das meninas na quadra do Coroado, ao lado do apartamento da minha mãe. A partir daí surgiu um bando de bonde como o Bonde do Tigrão, Bonde das Descontroladas, Bonde Faz Gostoso. Este movimento fez com que uns montes de DJs de fora viessem ver do que se tratava, expandiu-se para outras comunidades e daí para a rádio. As gravadoras vinham até à comunidade para assinar contratos. Desde então essa minha escolha tornou-se uma referência que ‘tá aí até aos dias de hoje. 

Desde os Baile Charme até aos dias de hoje, considera que o funk sofreu muitas alterações? 

Mudou bastante. Aparece em plataformas digitais, há grandes investimentos nas produções e publicidades. Tudo isso abraça o funk e eleva o funk a outro patamar. Porém, isso também faz com que o funk acabe perdendo um pouco a sua origem da favela para o asfalto. Actualmente ser cantor de funk, para nós, é uma referência, principalmente quando as letras fazem sucesso. Eu que estou aqui há bastante tempo, vejo que está a sair fora da sua própria caixa. Isso não é ruim, ruim é quando o género de uma música é funk e por ser funk leva com um monte de discriminação e preconceito. Fico feliz com estas mudanças, mas espero que a comunidade não fique para trás. Entristece-me quando somos deixados de lado. 

Sente que com a maior exposição do funk ao mundo a comunidade foi deixada para segundo plano?

Antes o que tínhamos era um vídeo do MC cantando na Furacão. Aliás antes, no meu caso, comecei a gravar atrás da caixa de som, nem sequer tinha estúdio. De repente surge o estúdio, depois a música toca na rádio, depois o DVD da Furacão 2000 onde o foco eram os MCs no palco e, por fim, as mega produções da KondZilla. Essas grandes produtoras estudam a nossa origem antes de chegarem até nós o que faz com que ela não se perca nesse sentido, mas, infelizmente, nós negros continuamos a ter certas imagens associadas a nós então pode dar essa ideia errada. Óbvio que hoje muita gente que tem dinheiro investe no funk não só ao vir à comunidade assinar contratos com artistas, mas também lançando-se sozinhos – o que é mais fácil e prático do que gente da comunidade chegar a outro patamar sozinho. Ainda assim, a comunidade resiste ao continuar a ter bailes funk por cá. Quando essas mega produções aparecem é como se houvesse uma chance de acertar na música e ter uma hipótese dela bombar. Para mim é claro que as origens ainda estão lá.

Em 2017 surgiu um projecto-lei que pretendia criminalizar o funk. Existem nuances da cultura funk que não são entendidas por quem a vê de fora. O que é que o funk fez por si que contraria o que é dito sobre ele?

Bom, pra mim é nítido que o preconceito com o funk existe, principalmente pelo funk cantado e inventado por pessoas pretas e pobres. Então, o funk ainda é visto como um problema social onde se repercute total esse preconceito. E o que ele faz que contraria? Na verdade, ele traz uma essência pra gente, né? A essência de que é algo nosso, que não devemos nunca desacreditar, por mais que a gente passe por todo esse preconceito e até mesmo porque a gente tem essa visão, né? Eu tenho essa visão de que o funk é um património nosso, é um património cultural de favela e que no asfalto vale ouro. Ouro que pode ser até que a gente não conquiste, mas gera a auto-estima de saber que é nosso e isso já ajuda bastante a não desistir. Então, é isso. Eu acho que o preconceito no funk é devido ele ser também visto como um dos problemas sociais em relação à comunidade, fazer parte da comunidade. E outra que o funk é uma maleta de ouro, né? Uma maleta de ouro que enriquece e que pode mudar muitas vidas, principalmente dentro da comunidade.

Carrega nas costas o peso de ser mulher pioneira no funk, como é lidar com a responsabilidade? 

A responsabilidade é grande, mas fico muito feliz que tenham surgido outras mulheres. Na época só existia a MC Cacau a cantar rap melody. Era um ambiente muito masculino. O funk veio dar coragem para que mais mulheres, inclusive mulheres brancas cantassem e “entendessem’’ – digamos assim – o funk. Deu uma importância ao funk na boca do povo. O movimento estar entre mulheres é como uma voz, um eco que entra e fica. A mulher ter essa liberdade de ser sensual através das letras, da roupa, da fala é muito bom. É bom saber que não estou sozinha. 

Esta liberdade também se verifica logo na primeira faixa do novo álbum, “Sururu das Meninas”. Curiosamente foi lançado no dia da visibilidade bissexual. Foi propositado?

Sim! Quando fiz a pausa na minha carreira por questões de saúde apercebi-me de que estava praticamente vendada em relação à vida e deparei-me com situações que me levaram para novos horizontes, novas sensibilidades, outros quereres e só fazia sentido sair nesse dia.



Que músicas destaca do álbum? Porquê?

“Monalisa”. Ela já explica essa emoção. “Sururu das Meninas” explica a importância do dia 23. “Sobrevivente da Rave”, principalmente na fala, “diz o que tu achas de mim, filho da puta/ isso é o que pensas que sou/ nem todos os filhos foram feitos com amor” e tenho um carinho especial por “A Mãe Tá On”, que mostra a minha revolta de ter vindo lá de trás e ter chegado até aqui, os “tu é foda” mas depois em certas situações eu não fui contratada…

Do trap ao pop, este álbum conta com imensas colaborações. De onde surgiu esta necessidade?

O funk é uma música electrónica que vem do miami bass e tem essa ousadia dos grandes DJs de fazer essa mistura. Mistura-se com o pagode e sertanejo hoje em dia. A minha voz dá-lhe essa pegada meio rock. O trap é uma referência à minha escrita antiga, dos tempos em que ouvia MV Bill, então escrevi “A Mãe Tá On”; “Bondage” pensei no vogue e numa continuação que servisse de referência a “Sadomasoquista”. Quis puxar essa lembrança das pessoas; em “Monalisa” pensei em arte contemporânea e sensibilidade das artes plásticas, de botar essa suavidade tanto na voz como na produção. O JLZ é um DJ muito sensível, Badsista nem tenho palavras para ela. É muito foda. O Francês Beats é meu vizinho na comunidade, tem pouca visibilidade e eu queria que este trabalho fosse com moradores da comunidade. Queria dar essa visão que os meninos aqui malham muito na produção musical e dar visibilidade para além de mim.

De repente, há um mashup da sua música “Sadomasoquista” com a música “S&M” da Rihanna a tornar-se viral no TikTok. Como é conquistar um novo público?

Quando estou a escrever, eu penso numa emoção e na liberdade pela qual luto. A minha escrita vem de um pensamento afro-futurista para alcançar o além e estar sempre mais à frente. E com o envolvimento das plataformas digitais era impossível uma música minha não estourar, só não imaginava que fosse essa, escrita em finais dos anos 90. “Sadomasoquista”? Deixou-me bem impressionada e ainda para mais por ter sido com uma música da Rihanna, sou muito fã da ousadia dela.

Qual foi a maior dificuldade de regressar ao meio artístico? E a maior alegria?

Foi o sentimento de não estar pronta para acompanhar toda esta tecnologia. Encarar os comentários do povo sobre a minha idade, achar que não iam entender a minha persistência. Mesmo assim não tive medo porque o mundo é e tem de ser livre e as pessoas têm de entender que não há idade para começar de novo: viver, pintar o cabelo, usar uma roupa, sair do armário. A maior alegria foi, sem dúvida, ter concluído este álbum. Estou nas nuvens. 

A idade é um fator importante tendo em conta todas as imposições que vão surgindo com ela. Muitas das letras das suas músicas contém um cariz sexual, isso já lhe causou constrangimentos?

Tive um processo de “preciso de falar sobre isso”. Eu passei por uma situação na Europa, um DJ brasileiro disse-me que não podia cantar putaria, para eu ver onde a gente tinha chegado e entender que não levava a lado nenhum cantar música com essa letra. Mas, depois, eu parava e pensava: as minhas músicas estavam a fazer sucesso lá. Quando o público brasileiro me olhava e via uma mulher brasileira, ali a cantar funk e pensava, “porra, ela é foda, como é que teve essa coragem?”. E este DJ quando voltava para o Brasil era no coroado que ele ia procurar artistas. Foi triste principalmente por vir de alguém do meio que já tinha usufruído bastante desse tipo de música e depois aparece com essa opinião, mesmo sem abrir mão da liberdade que essa escrita e esses artistas lhe deram. 

Com o seu regresso, que mais podemos esperar de si? O que ainda nos falta ver? 

Com o meu regresso o que vocês podem esperar são as performance musicais. Também novas escritas e principalmente a minha biografia. Esses são os projectos mais próximos que a gente já está querendo lançar pra ontem, o mais rápido possível.

Decerto que o tempo afastada da indústria musical lhe ensinou lições importantes. Se tivesse de deixar um conselho sobre tudo o que tem aprendido até agora, qual seria?

Eu diria que a paciência é a alma do negócio. Sei que é tudo difícil, mas tenha paciência e não desista. Principalmente, não desista de viver. Esse é um dos conselhos.


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