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Publicado a: 08/08/2016

Debaixo da Língua com Marcelo D2: “Sou o Woody Allen da Lapa”

Publicado a: 08/08/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

Marcelo D2 é o artista que se segue nas entrevistas incluídas na edição original do livro Debaixo da Língua, um projecto do festival O Sol da Caparica, que iremos republicar por aqui. O Sol da Caparica, entretanto, regressa já nos próximos dias 11, 12, 13 e 14 de Agosto e tem no cartaz deste ano nomes como Mundo Segundo & Sam The Kid, O Rappa, Orelha Negra, Jimmy P ou, entre tantos outros, Djeff Afrozila.

 


Marcelo D2 é um veterano. Nascido em 1967, era adolescente quando o hip hop começou a dar os primeiros passos discográficos nos Estados Unidos com pioneiros como os Sugarhill Gang ou Afrika Bambaataa. Ganhou notoriedade como parte integrante dos Planet Hemp e em 1998 lançou uma bem sucedida carreira a solo com Eu Tiro é Onda, registo que precedeu o clássico À Procura da Batida Perfeita, fusão perfeita entre a cultura nascida no Bronx e o som dos morros do Rio de Janeiro. Breaks e samba. Flow e ginga. Nada Pode Me Parar é o trabalho mais recente deste rapper que também carrega com muita coisa debaixo da língua.

Muitos MCs portugueses referem que ouvir os rappers brasileiros a cantar em português  foi determinante para abraçarem a nossa língua no rap em Portugal. Tinha noção que tinha sido o rap do Brasil a inspirar os MCs portugueses a rimarem na sua própria língua?

É engraçado, é o caminho inverso. O Gabriel, O Pensador é uma espécie de Pedro Álvares Cabral. É engraçado ver como o rap brasileiro acabou por inspirar os rappers portugueses a cantar em português. Aqui nem podia ser de outra forma: o rap brasileiro fala mal português, quanto mais inglês.

Imagino que o primeiro hip hop que ouviu tenha sido o norte-americano. Como foi a primeira vez que tentou escrever em português?

Foi difícil, a língua portuguesa é muito complicada, toda a construção das frases não é simples, muito menos quando têm de ser rápidas e curtas para cantar. Comecei a fazer rap quando tinha 20 e poucos anos, mas escrevo deste pequeno, e a primeira vez que ouvi rap foi Afrika Bambaataa e fiquei impressionado. O primeiro rap que ouvi em português foi Thaide e DJ Um e foi aí que resolvi escrever rap. A poesia em português é muito bonita e, assim que encontrámos forma de a escrever [musicalmente], todos os rappers que cantam em português começaram a soltar-se. Isto ainda é muito novo, costumo dizer que o rap português ainda tem um caminho muito longo a percorrer, há muita coisa para descobrir dentro da própria língua.

 



Os antepassados directos do hip hop americano apontam para os blues e o funk. Onde é que os rappers brasileiros foram buscar inspiração?

Isso terá vindo dos repentistas, porque eram quase rappers, esse grupo de artistas foi dos primeiros a rappar em português. Mas, dentro da cultura hip hop, o Thaide e o DJ Hum são para mim a grande referência do rap português no Brasil.

Há alguma rima na sua obra que sinta particular orgulho?

Há 10 anos atrás, quando o Rio de Janeiro e o Brasil estavam muito violentos e eu via todos os meus amigos a morrer nas favelas, cantei o seguinte na música “Qual é”: “vai-me dizê que você prefere o ódio ao amor? Qual é?”. Deu-me orgulho proferir esta frase naquele momento, até porque muitas pessoas reflectiram sobre esse discurso e passaram a dizer “não, vamos lutar pelo amor e não pelo ódio”. É um artista causar uma reacção nas pessoas com aquilo que expressa.

 



Quando aborda a escrita de um novo disco, pensa primeiro nos temas que quer abordar ou o processo é diferente?

Sempre gostei de fazer discos temáticos. O À Procura da Batida Perfeita é sobre o acordar todos os dias e as coisas que me atraem e me fzem concentrar na minha música. Este último disco é mais um agradecimento à cultura hip hop. Começo sempre por pensar os temas. Eu sento-me, anoto um assunto que quero falar e aí vou retirando camadas e camadas até chegar ao tema que pretendo falar.

Depois de decidir o assunto, tem tendência a pesquisar sobre o tema enquanto escreve a letra?

Tenho revistas, livros, a televisão ligada, música a tocar, tudo ao mesmo tempo. É um mundo que monto nos locais onde trabalho. Normalmente demoro cerca de uma hora a escrever uma letra, não gosto de ficar a escrever e a remexer dias e dias nas letras. Normalmente nem entendo o que estou a escrever, só quando leio após terminar é que sei que assunto abordei. Sai mais de dentro, como meditação.

 


https://www.youtube.com/watch?v=qQe_X4T64B8


Costuma estudar poetas? Há poetas portugueses ou brasileiros que costume ler?

Gosto de Fernando Pessoa, mas não é o tipo de literatura que mais leio. Nunca fui um grande fã de poesia, fui sempre mais de biografias, porque permite absorver o que uma pessoa superou em determinadas situações.

Há alguma biografia particularmente inspiradora nas prateleiras lá de casa?

Há várias, mas acabei de ler uma agora que é de Lucian Freud, o pintor que morreu há pouco tempo e que era neto de Sigmund Freud, cuja história é muito boa. Uma biografia em português que gostei muito foi a do Tim Maia.

 



No momento de, como se diz no hip hop, cuspir a palavra escrita tem o papel à frente ou memoriza primeiro e depois grava?

Até ao Nada Me Pode Parar escrevia e gravava a ler. No último disco memorizei porque a performance fica melhor, falas mais do coração, ficas menos tenso. Prefiro memorizar a letra e depois cantar com verdade.

E nesse processo de memorização, entre o texto escrito e falado, surgem alterações?

Bastantes, umas vezes escreves umas coisas, mas na hora de falar não sai tão bom. E eu gosto muito de cantar para os meus amigos e perguntar-lhes como soam as letras.

 



Tem uma palavra favorita na língua portuguesa?

A palavra “saudade”. É única. O português tem esse trunfo, “saudade” noutra língua não é igual. E rima com verdade.

Alguma vez se deparou com alguma palavra que não conseguisse rimar?

Faço isto há 20 anos e é engraçado como ainda é muito difícil rimar com D2, o meu próprio nome. O D2 agarra-se muito ao “depois”, “ora pois”, tudo “ois”. É mais fácil com palavras terminadas em “a” ou “i” ou “or” porque rimam quase sempre, mesmo junto de palavras com terminações diferentes.

 



O Marcelo tem 20 anos desta cultura. Como é que as novas gerações o inspiram, principalmente quando trazem palavras e expressões novas?

Tenho um filho de 20 anos que está num grupo de rap e ele escreve muito bem. Isso é inspirador, adoro ler as letras dele. A cultura hip hop tem essa característica de batalha, de superação e ouvir alguém a fazer um bom rap é sempre inspirador, dá vontade de fazer melhor, de mostrar a nossa batalha, é isso que me inspira na cultura hip hop. E ainda só vimos a ponta do icebergue: como o hip hop é uma música visionária, cada vez mais pessoas procurarão dentro das suas áreas o que são referências para si para fazer esta música. Nos anos 90 pensava que nada mais ia aparecer para me surpreender, mas hoje em dia oiço rap americano como A$AP Rocky ou Joey Bada$$, que estão a levar o jogo para a frente.

O que é que vem aí para o futuro?

Acabei de escrever e vou realizar uma curta-metragem e vou fazer um disco audiovisual. Para o “Nada Me Pode Parar” fiz um clipe para cada música e gostei muito dessa experiência. O próximo disco chama-se “Amar É Para Os Fortes” e é um projecto com a banda Matuto. Tenho muita vontade de fazer coisas novas e fascina-me ter algo mais que um disco [para oferecer]. A música é maior que apenas um disco, é feito para ter tocada ao vivo, para o cinema, para estar em todo o lado, então estou à procura de novos caminhos. Sou o Woody Allen da Lapa (risos).

 


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