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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/11/2021

Uma juventude sónica a lidar com as suas fatalidades.

Death Discs: quando a morte assombrou a pop jovem

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/11/2021

A par do amor, o único assunto transversal a qualquer ser humano é a morte. Se na discografia popular o primeiro é a temática mais frequente nas letras que conhecemos, entre as décadas de 50 e 60 existiu um estilo musical onde a fatalidade, apesar de não reinar, aterrorizou o mercado.

Nos primeiros passos da pop anglo-saxónica — ainda antes da Motown ou dos Beatles — um micro-fenómeno conhecido como “Death Discsno Reino Unido ou “Teenage Tragedy Songsnos Estados Unidos da América assombrou as tabelas: baladas desgraçadas em que a morte tragicamente separa o amor entre duas pessoas, normalmente causada por acidentes de viação, suicídios ou até afogamentos.

Aos olhos de hoje — e, infelizmente, com a morte próxima de nós pelo período pandémico que atravessamos — é um estilo musical arriscado de quantificar. Não há aparente associação entre os vários temas que compõem o ramalhete dos Death Discs para que lhe chamemos um movimento e, pelo que apurámos, apenas um momento na imprensa da época prova que o título não foi dado posteriormente como aconteceu com o freakbeat na Europa ou o garage rock americano conotados por DJs fora de época, enumerando sub-culturas esteticamente semelhantes.

Germinado nos Estados Unidos do pós-guerra onde o adolescente ganha pela primeira vez esta designação como intermediário entre a criança e o adulto, os Teenage Tragedy Songs brotam com a mais famosa morte da época: a do actor James Dean em 1955. Dean representava a rebeldia juvenil como ninguém e, a par de Marlon Brando, era o rosto inconsequente da geração com a premissa niilista “Live Fast, Die Young”.

Da mesma forma que a geração de hoje acompanha a evolução tecnológica digital, a juventude urbana da época fascinava-se com o progresso da velocidade motorizada. As motas libertárias, os carros velozes e até a acessibilidade ao início da aviação moderna estão na génese destas músicas esquecidas.

Enquanto Johnny Cash abordava a morte pelas armas, os Death Discs estavam mais sintonizados com os novos consumidores de música. Editados principalmente em pequenos discos de sete polegadas, estas músicas mórbidas destacavam-se pela sua sonoridade fresca, como autênticos hinos pop com técnicas musicais avançadas para a época, bem distintas das ambiências Halloween ou da novelty music de “Laughing Over My Grave” de Ray Stevens ou  o clássico “Monster Mash” celebradas num sem fim de compilações de música bizarra.



Em “Black Denim Trousers and Motorcycle Boots” dos The Cheers, de 1955, um tema composto pela dupla de vários hits da carreira de Elvis Presley, é notável a bateria apressada que acompanha um insubordinado jovem que, contra o alerta de perigo da namorada, decide fazer uma viagem nocturna perigosa em que colide com um comboio, transporte aqui interpretado sonoramente por uma secção de sopros, antes do aparecimento do Mellotron. “Teen Angel” de Mark Dinning é outro dos primeiros exemplos em que a voz feminina assume o papel fantasmagórico, cantada em paralelo com a masculina da cara-metade ainda viva. A melodramática “Tell Laura I Love Her” de Ray Peterson descreve um jovem que falece ao tentar vencer uma corrida de carros para comprar um anel de noivado. Uma canção que acabaria por ser rejeitada devido à sua “extrema tristeza” pela editora Decca, que destrói 25 mil cópias em vinil da canção. Manifestação semelhante — acrescida às várias proibições pela estação BBC — a outros discos deste mórbido estilo musical deram-lhe o título póstumo de Splatter Platters (em português “discos derramados”).



O malogrado génio Joe Meek, produtor famoso por inúmeras técnicas de captação que revolucionaram a gravação moderna, elevou a fasquia sónica dos Death Discs com “Johnny Remember Me”, interpretado pelo actor John Leyton. Reza a história que no seu estúdio caseiro tinha microfones em todas as divisões: o core da banda estaria na sala principal, os violinos nas escadas, os sopros no andar de baixo. Às vozes foram acrescentados ecos para obter o efeito fantasmagórico desejado, pois o personagem principal deste poema é assombrado pela namorada falecida.



Mas nem só artistas masculinos protagonizaram estas lamúrias: uma das formações mais bem-sucedidas da vaga girlgroup — onde artistas como Amy Winehouse e Duffy tanto foram beber —, as The Shangri-Las, foram o nome maior das Teenage Tragedy Songs. Com clássicos como “Remember (Walking in the Sand)” ou “Leader of the Pack”, é frequente na sua música o uso samplado de discos de efeitos sonoros, caso que nos arriscamos a descrever como “pioneiro” na pop e fora dos cânones da música concreta.

Outros exemplos deste leque mais próximos do leitor atento do Rimas e Batidas são “Terry” de Twinkle, tema revisitado pela alemã Anika no seu primeiro trabalho com o selo Stones Throw, ou “Last Kiss” de Wayne Cochran, imortalizado pelos Pearl Jam várias décadas depois.

Certamente muitos são os temas ainda em falta nas consultáveis listas deste micro-fenónemo musical sombrio que a sociedade americana criou, pois obriga a uma análise detalhada das letras. Mas antes de querermos completar o cardápio que nem uma caderneta de cromos, perguntamo-nos: será que a trágica pandemia que atravessamos poderá gerar um movimento musical semelhante de confronto criativo com as perdas que sofremos?


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