pub

Publicado a: 26/03/2015

De onde vem e para onde vai Panda Bear?

Publicado a: 26/03/2015

Torna-se injusto observar de perto a imensa década musical passada sem deixar de admirar algumas constelações cujo brilho se tem revelado acentuado até hoje. Algures nesta galáxia estarão os Animal Collective, referência absoluta para toda uma geração que viu neles a concentração ideal de sons, imagens e fantasias pop. Noah Lennox, pessoa por detrás da personagem de Panda Bear, foi um dos fundadores da banda norte-americana, que mais tarde evoluiu para quarteto e actualmente para trio. A par de uma dezena de discos com a banda, não cessou de traçar novos e diferentes rumos para um auspicioso caminho a solo (e outras encarnações paralelas e mais obscuras como Jane ou Together). Tem sido uma procissão quase milagrosa o simples facto de poder acompanhar o crescimento de alguém artisticamente fascinante, capaz de nos demonstrar que na música, tal como na vida, o segredo para preservar um brilho intenso reside no grau de honestidade e de liberdade a que cada um se propõe.

De resto, a sua obra tem vindo a espelhar esse pensamento. Do álbum homónimo, de 1998, até ao mais recente Panda Bear Meets the Grim Reaper, Noah sempre manteve uma assumida busca do seu intuito de eterna amálgama sonora. Ao início, de modo acústico e gradualmente a entregar-se à expressividade textural da electrónica. A alma com que se entrega em cada registo permanece todavia intocável, como convém. Talvez sejam poucos os que hoje procuram explorar o conceito de beleza de uma forma assim universal e, porém, difusa ou ainda tão estranhamente familiar.



Miúdo crescido em Baltimore e adulto vivido em Nova Iorque e agora em Lisboa, o seu contacto com a música começa desde cedo quer em casa dos pais (onde existia um sintetizador da família), quer em aulas de piano e na participação num coro. Tais experiências levaram-no aos primeiros documentos caseiros num gravador de quatro pistas, naquele que seria então o ano zero de vida enquanto Panda Bear. Chegou a frequentar um curso de estudos teológicos na Universidade de Boston, não pela filiação religiosa, mas sim pela abordagem filosófica do papel e significado da figura de Deus. De facto, parece existir algo de espiritual no que faz; pelo menos, no modo como as suas composições buscam um determinado desapego ao mundo comum numa partida à suspensão da realidade e à constante fusão de sensações numa confortável espiral. Tome-se o exemplo da dimensão catártica presente em Young Prayer (álbum inteiramente dedicado ao pai que entretanto falecera) que reflete a importância do elemento emocional para o qual a união vocal e instrumental em muito contribui, esbatendo fronteiras entre ambas as componentes.

Por outro lado, o plano de repetição de uma palavra, de uma batida ou de uma melodia cria uma espécie de ondulação à qual o ouvinte não é realmente alheio, mas sim um convidado insuspeito. O ponto de perfeição destas e de outras descrições possíveis terá sido então materializado em Person Pitch, disco que o consagrou junto do público e da imprensa internacional. Tal conquista deve-se ao imenso e luxuoso frenesim de cor e expressão, transparecendo nele simultaneamente uma série de acontecimentos pessoais marcantes (o casamento com a designer de moda portuguesa Fernanda Pereira, a paternidade de duas crianças e, claro, a mudança para um novo país e as respectivas implicações no dia-a-dia). Do sol prometido dos The Beach Boys ao eco incandescente do dub de King Tubby, o espectro resultante desse caleidoscópio foi ganhando tonalidades mais vívidas, na altura já bem definidas em Animal Collective — recorde-se que quase um par de anos antes, o grupo editara o muito celebrado Feels. Daí que Tomboy tenha dividido opiniões pela sua toada mais monocromática e esparsa do que nunca.



Contudo, Panda Bear Meets the Grim Reaper volta a acrescentar um brilho garrido aos seus cantos, revelando uma fase de provável maturidade apontada pelo artista numa recente entrevista para a conceituada revista The Rolling Stone. Liricamente forte e ritmicamente contagiante, aglutina em si algumas das melhores qualidades do músico e afirma-se como um conjunto vigoroso e inspirado de “canções-postal” em tons de néon. É certo que entrar de modo tão prematuro neste tipo de avaliação se assume sempre inconsequente, porém — e dado o grau de entusiasmo em seu redor — é neste momento um dos fortes candidatos a melhor disco do ano.

Ao longo deste percurso, Noah tem vindo a receber diversas propostas para colaborar com gente de naturezas díspares como Atlas Sound, Panta Du Prince, Zomby, Ducktails, Teengirl Fantasy ou ainda dos icónicos Daft Punk para o tema “Doin’ it Right”. Por sua vez, convidou Pete Kember, senhor Sonic Boom e ex-Spacemen 3, para a produção de Person Pitch e do último álbum. Não foi certamente repentino, mas a velocidade e solidez com que se transformou numa entidade influente na música de cariz independente apenas confirmou o valor que já irradiava de si. Uma posição de destaque que, em certa medida, contrasta com o perfil discreto, não exatamente tímido, percepcionado nas entrevistas. Contudo, este é um daqueles casos curiosos em que o objecto musical acaba por dizer tudo (ou quase tudo) sobre o seu autor. Estão lá samples de uma África encantada, excertos de filmes de terror de série B e uma mão cheia de sons captados reforçando a máxima de que a música pode ser encontrada em qualquer local e em qualquer ocasião. A evocação de um ruído purificador e a construção de harmonias inusitadas resultam então em micro-rituais, sob forma de canção híbrida, ligando diversos ângulos geográficos e temporais. E é normal que a maioria dos seus discos seja concebida de modo transatlântico entre Portugal e os Estados Unidos da América, o que torna efetivamente real essa sintonia espacial. Lado a lado, paira uma dose generosa de doçura em cada pormenor, compensada pela acidez necessária para conferir um toque alienígena às suas criações que com frequência se apresentam em metamorfose contínua.



Neste sentido, Noah já referiu em diversas ocasiões o papel essencial que as atuações acabam por deter no processo criativo de um álbum, numa perspetiva de work in progress. É uma forma de pensar e de trabalhar a música que, na verdade, encontra pontos em comum com contemporâneos como Black Dice, Excepter ou Gang Gang Dance com quem também estabelece uma relação de amizade há largos anos (como se comprova também pela participação de alguns destes mesmos nomes na mítica noite Green Ray, programada por Noah, na discoteca Lux Frágil, em Dezembro de 2013).

É por isso natural que os concertos se assumam igualmente como um pequeno laboratório ao vivo em que as composições muitas vezes tomam diferentes direcções e se encontram predispostas a eventuais mutações genéticas que possam surgir no momento. A finalização dá-se a partir do instante em que são gravadas no estúdio, adquirindo uma identidade definitiva; isto, claro, até serem novamente reconstruídas por manobras de remisturas, mash-ups ou versões ― e já se contam os casos assinados por Actress, Phaseone ou XXXchange. Em suma, a beleza da renovação constante das coisas, segundo a lei química de Antoine Lavoisier.

São vários os motivos para celebrar a sua relevância na atualidade, mas talvez os maiores aplausos sigam para o simples facto de Panda Bear conseguir instituir um magnetismo directo, umbilical mesmo, entre estas canções de aspecto incomum e quem o escuta — uma audiência em crescimento, de álbum para álbum. De certo modo, parece que um dos seus intuitos recentes passa pela tentativa de encontrar uma legítima essência orgânica na extensa panóplia de samples e programações com que tem revestido a sua obra. Proporcionar sonho, originar escape ao mundano, permitir a contemplação sem culpas e emitir mandato sério de explosão de pigmentações, quando assim é devido, tornam-se elementos-chave no plano-mestre deste autêntico estratega da pop periférica dos tempos que correm.

Panda Bear | Facebook | Twitter

*Texto gentilmente cedido pelo Teatro Maria Matos na sequência do concerto de Panda Bear naquele espaço a 11 de Março de 2015.

pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos