Pontos-de-Vista

João Castro

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Som, imagem e performance em dois eventos distintos na capital portuguesa.

De Nivhek a Fritz Lang: tangentes às percepções visuais

Na sala ao lado. 1148 canas. O canavial. “O Canavial: memória metamorfose de um corpo ausente” de Alberto Carneiro. Embrenharmo-nos nele. A ausência e a metamorfose. A metamorfose ansiada. Transportar cada uma das canas e espeta-las uma a uma no palco do grande auditório da Culturgest. O concerto de Nivhek. A massa sonora e sons emitidos pelas imagens. Certamente que seria através delas. Um universo industrial. Indústria pesada e tudo com ela relacionado. Os caminhos de ferro. Cinzento serrado. Os gases constantes. Asfixiante, até certo ponto. Nem os ratos se atrevem a sair da toca. Não é volume. Decididamente não é volume. Não é persistência na nota. Não é repetição até ao limite de uma existência exaurida. O esgotamento vem da ausência. A ausência de nós próprios. O espaço permitido a uma imaginação sombria. Recordar título do álbum — After its own death / Walking in a spiral towards the house [Auto edição – 2019]. Recorrer às palavras de Liz Harris — “Não preciso de pensar em tudo o que faço criativamente, apenas algo me diz que devo fazê-lo.” Uma força que nos impele para o desconhecido. A imagem no ecrã. A imagem cinzenta em projecção. Constante. Onde se encontra o limite do que vemos? O que pretendemos ver? Sobretudo o que nos negamos a ver. Uma sociedade a caminho da sua autodestruição? Certamente que sim. Um afastamento profundo entre o humano no que lhe é raiz? A natureza é cada vez mais construção mediada. Negamo-nos a ver a nós próprios. A nossa incapacidade. A negação na pele. Nivhek e Takashi Makino. Som e imagem. E imagem e som. A ordem completamente arbitrária. É corpo unitário. Ambas emissoras — inquietude. A apresentação ao vivo. O concerto como necessidade vital. Ao excesso contrapõe nada. Imagem sobre imagem, com música e música. NADA. Raro as nuvens correrem depressa.



Metropolis. Marco cinematográfico universal. Explorados e exploradores. O muro social. Intransponível. A riqueza alimenta-se da pobreza, de muitos. Os jardins dos privilegiados, nutridos de fome e miséria de pais e crianças. Na opressão, o poder perpetua-se. As referências bíblicas — Maria e o eleito. Joana d’Arc e a queima das bruxas. Os delatores com chicote na mão. A ciência e a clonagem. Os falsos profetas. A ignorância em procissão. A sabotagem como acto de resistência. 1927 — realidade premonitória. 2023 — realidade ignorada. 

Metropolis de Frizt Lang, objecto de múltiplas leituras. A transição entre o cinema mudo e o sonoro. Um filme várias vezes concerto. Em 2010, no Auditório ao Ar Livre da Gulbenkian — música composta para esta versão de Martin Matalon, no âmbito do programa “Próximo Futuro“. Mais recentemente no LEFFEST’23, Teatro Tivoli, Lisboa, com o trio constituído por Gabriel Ferrandini [precursão], Hernâni Faustino [contrabaixo] e Rodrigo Amado [saxofone]. Uma tradição. Concertos na programação do festival. Desde as primeiras edições, 2007, com Julee Cruise e Victoria Abril, Putcheros do Brasil, no então denominado European Film Festival Estoril, no Casino do Estoril.

Exercício sempre arriscado e de monta. Que nova leitura se pode conferir a um filme que a maior parte dos espectadores já viu? Intensificar determinados momentos narrativos? Criar momentos sonoros que decorrem, de certa forma, paralelamente ao que se visiona? O critério — dos músicos. O trio, de conhecimento profundo entre cada um e com desenvoltura neste tipo de exercícios optou por uma solução a meio caminho. Silêncio no momento da aparição do robô — clone. O contrabaixo de Faustino a marcar o início da narrativa. O saxofone de Amado aquando da referência ao jardim, de propriedade e para deleite da classe dos exploradores. Um solo de bateria já próximo no final. Ponto alto da noite, refira-se. Ao longo de quase duas horas desta versão de Metropolis, um entrecruzar entre imagem e som. Vezes, demasiadas, em que não havia correspondência entre o que se via e o que se escutava. Desfasamento. Intencional? Recordar Nanni Moretti e a cena do seu último filme Il sol dell’avvenire. Questiona outra personagem, esta também no papel de realizador, e a nós por consequência, como será possível fazer uma cena de violência depois de Krzysztof Kieslowski o ter tão magistralmente filmado em “Não matarás“? Nas palavras de Moretti, nós vimos. Fomos passageiro, estrangulador e coveiro. Fomos taxista, vítima e sepultado. Fomos espectadores na impotência e incomodidade.

Nesta versão sonora de Metropolis os padrões sobrepuseram-se à observação. Observação e reflexão ainda são dos poucos redutos que nos resta. Que podemos reclamar — propriedade! Observação foi esparsa e reflexão inexistente. Quem, conhecedor do filme, não acrescentou novas leituras. Quem desconhecedor, não teve o melhor encontro.

Duas noites – Nivhek e Fritz Lang. Relações tensas entre imagem, som e apresentação ao vivo. No aparente apagamento de Nivhek e Takashi Makino reforçou-se ideia. Lugar à reflexão. No visionamento de Lang, o preenchimento sonoro subtraiu vigor.

A ausência e o canavial. É aí que queremos estar.


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