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Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 26/04/2021

Um jogo de sedução a dois.

David & Miguel: “Há aquela ideia bastante portuguesa de que não é preciso assim tanto luxo para ser uma coisa romântica”

Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 26/04/2021

Estes dois senhores não precisam de apresentações. Se sozinhos já davam que falar, a primeira vez que se juntaram foi o suficiente para se querer mais. David perdeu o Bruno e Mike voltou a ser Miguel. Ambos oficializaram o compromisso e apresentam-se como a dupla romântica mais contemporânea da música portuguesa, David & Miguel.

O resultado desta parceria foi apresentado na passada semana com o título Palavras Cruzadas e o Rimas e Batidas, que não rejeita um bom jogo, foi ao encontro de ambos. A localização para a conversa foi num dos sítios mais emblemáticos do Porto, O Piolho. Numa esplanada, e como mandam as regras, o duo contou como foi a criação deste projecto, as suas referências, e o futuro desta relação.



Depois do sucesso de “Interveniente Acidental”, a partir de que momento é que se tornou claro para vocês que um disco em conjunto fazia sentido?

[Miguel] Para mim, uma colaboração mais extensa fez sentido logo a partir desse tema. A facilidade com que o tema foi feito foi tanta que senti que era um sitio bastante confortável para estar a colaborar. Na altura, a versão final até era diferente da versão que eu enviei e o David disse-me, “aqui eu sou o decisor criativo porque é o meu projecto em que estás a participar, mas depois quando fizermos uma coisa os dois juntos logo opinamos 50/50”. Com o pretexto de me ter mudado para o Porto, senti que era o momento certo para ligar ao David e dizer “olha, ’tou cá, vamos fazer alguma coisa, já podemos estar os dois juntos a criar” e assim começou, basicamente.

Palavras Cruzadas é um disco que fala de histórias de amor, desamores, sofrimento, e mais importante, “paixão à portuguesa”. O que é que a paixão portuguesa tem de diferente das outras paixões?

[David] [Risos] Essa é uma boa pergunta.

[Miguel] Os pormenores, as vocalizações, os sítios onde acontecem as coisas… e aquela ideia, também bastante portuguesa, e de uma certa humildade, de que não é preciso assim tanto luxo para ser uma coisa romântica…

[David] é mais baratinho…

[Miguel] é mais baratinho… [Risos]

Existem novelas ou temas mais antigos que remetem para esta ideia de paixão portuguesa?

[David] Sabes que há uma telenovela chamada Palavras Cruzadas.

[Miguel] Do Nicolau Breyner.

[David] Sim… Não é que tenha sido uma grande referência.

[Miguel] Só descobrimos depois, o que foi engraçado.

[David] Mas diria que, assim de início, a grande referência para fazer este disco foram as duplas românticas: André e Miguel, Lucas e Matheus, Leandro e Leonardo… Mas Lucas e Matheus [foi a] maior, a nossa capa do disco é um remake de uma capa do Lucas e do Matheus, que faleceu recentemente de COVID, que contraiu em Portugal. Mas diria que foram essas duplas. E em termos de instrumentais, foi à volta do universo dos cantores latinos, e sobretudo do México, os Tony Carreiras de lá — muitos [são] a grande inspiração do Tony Carreira…

[Miguel] Influência… não é byte, tem influência… [Risos]

[David] A influência do Tony Carreira… Se fores a ver, o Tony Carreira é muito inspirado na imagem deles, aqueles homens de meia-idade muito charmosos.

[Miguel] Mas posso dizer que há dois temas portugueses desse género, que sempre estiveram comigo e que agora vieram ao de cima no universo mental, que é do Miguel e André, “Preciso Desse Amor”, e dos Além Mar, “Deixa-me Olhar”. Aquela balada rock romântica.

Então é na base desse imaginário que surgiu Palavras Cruzadas?

[Miguel] A decisão sobre o caminho estético e o caminho sonoro e visual foi todo à volta do apogeu da música romântica ligeira dos anos 80 e 90.

[David] E, claro, isto depois adaptado às nossas referências, já dá uma volta grande e transforma-se numa coisa diferente, com mais identidade.

Falando dos vossos projectos individuais: o rap é um registo musical em que, grande parte das vezes, se exige alguma atitude – “real” e  “durão” são duas palavras a que associamos isso, por exemplo. Tanto um como o outro têm humor na vossa música desde há muito tempo e aqui, em Palavras Cruzadas, este humor torna-se mais sublinhado. Sentiram essa pressão de não se poder brincar no rap ao longo da vossa carreira?

[David] Só uma coisa… achas que os cantores românticos também não são durões? [Risos]

[Miguel] [Risos] Durões e reais!

[David] Queres mais durão que o Michael Bolton em cima de uma pedra com uma águia a passar atrás dele e chamas? É um durão diferente…

[Miguel] É um durão com sentimentos… Mas sim, a atenção que durão e real não são sinónimos, muito menos no hip hop. Muitas vezes acontece o contrário, ou o contrário de real, ou o contrário de durão. Mas eu sempre senti que não queria que isso fosse regra. Mesmo a fazer música hip hop, não queria que isso fosse regra, pelo contrário. Já existe tanto disso, vamos fazer outras versões disso. E quando o hip hop nasce, nasce em contexto de festa, de celebração e não de dureza e realidade, isso só vem mais tarde. Contexto era esse, mas a mensagem na música não. E aqui, pelo menos no meu caso, abdiquei quase 100% da faceta rapper, estava completamente à vontade para ser o que eu quisesse.

Aproveitaste essa liberdade para explorar outras facetas?

[Miguel] Já tentava ter essa liberdade a fazer rap, mas sempre que não estou a fazer rap ainda mais liberdade tenho.

E de que modo é que foram perdendo a vergonha de o fazer ao longo dos anos?

[David] Eu já perdi essa vergonha desde o início. Mesmo com Corona nunca existiu, no meu caso, essas regras. Que te vou dizer que é uma coisa muito do Porto, sabes. Não obedecer a regras. Só por dizer que os reis nunca tiveram uma casa no Porto e que o regicídio foi feito por um homem do Porto. Ou seja, no Porto as pessoas são muito propícias a não respeitar regras nenhumas. E eu na minha carreira toda, as pessoas com quem trabalhei — não foi de propósito — sempre tiveram muito esse espírito: Corona, o próprio PZ, foram sempre pessoas que não seguem regras nenhumas…

[Miguel] Mas também há muito o manter das regras aqui em cima.

[David] Também há muito, mas também há muito a cultura de cagar para as regras, muito mesmo. Eu, pelo menos, na minha carreira nunca tive e nunca senti isso e sempre fiz o oposto até. Até o próprio Corona seguiu isso, com uma coisa diferente. Com David Bruno é um pouco na linha do que estamos a fazer aqui. E diria mais, que neste projecto quem se adaptou mais e teve que mudar mais o que fazia até foi o Miguel e não eu. Sinceramente, penso que ele diz que as coisas foram feitas muito rapidamente, mas uma das coisas boas de trabalhar com o Miguel é que parece que ele já faz isto há muitos anos também. De facto, havia uma sede nele para fazer qualquer coisa diferente.

Explorar novos limites, dirias?

[Miguel] Sim, sem dúvida. Para mim, o confronto com essa cena foi muito cedo. Quando comecei a fazer rap queria abraçar essa persona do mauzão e não sei quê, mas muito rapidamente fui confrontado com os verdadeiros “mauzões” que estavam a descredibilizar o facto de eu poder ou não fazer aquilo. Que eu estava a ser um mauzão ilegítimo e então quis-me deslocar daí. Sempre procurei trabalhar com pessoas que me permitiam ter esse espaço, que falavam a mesma linguagem que eu, que é “olha, eu gosto desta estética musical, mas eu não sou um durão e eu não venho de um background tão difícil como outras pessoas de música urbana fazem”. Portanto, ok, compreendemos, falamos a mesma língua, tenho espaço para eu fazer o que eu quiser sem censuras aqui, então óptimo, é para seguir.

Estávamos a falar dos registos do Porto, mas neste álbum não se cingem a uma só localidade, vamos de Arouca até ao Algarve e ainda passamos por Peniche. Existe uma vontade de tornar este imaginário ainda mais colectivo?

[David] Para te dizer a verdade, nós nunca combinámos isso… Eu não podia fazer um álbum com o Miguel só a fazer coisas sobre Gaia, nem podia fazer só coisas sobre Lisboa. Era fixe encontrarmos um meio termo em que os dois falávamos sobre coisas… Acho que todos os sítios que falamos [são sítios que] conhecemos, e assim cada um avança a meio da ponte e damos a mão a meio da ponte.

[Miguel] É exactamente isso. Eu também não poderia vir aqui e adaptar-me a 100% ao universo do David porque não o conheço tão fundo, então eu fui um bocadinho ao universo dele, ele um bocadinho ao meu. E temos temas sobre zonas aqui muito perto do Porto, e outros temas sobre Lisboa e Loures. Mas o que se verifica no fim é que esta coisa da portugalidade que tanto se fala não é regional, é total. Existem cenas específicas e cenas de todo o país, não só de uma região, e as coisas engraçadas que esse tema da portugalidade nos traz são unânimes.

E quem é a “Sónia”? E a “Rosa”? Duas sonoridades distintas. Quem são estas mulheres que fazem estas letras tão sofredoras?

[David] Quem serão…? Fica à interpretação de cada um. Será que elas existem ou foram só invenção?

[Miguel] Acho que como os próprios nomes indicam, a Sónia tem mais a ver com uma coisa se calhar moderna, mais 80s, a apontar mais futurismo, e a Rosa uma coisa mais clássica, mais latina. Acho que foi mais por aí, do que quem são as pessoas.

[David] A Sónia também é bem latina, deitada no areal de Peniche…

[Miguel] Sim, sim, mas mais sofisticada e a Rosa mais clássica. Acho que é mais o que os nomes evocam, do que quem são as pessoas porque o tema feminino pode ter qualquer nome, neste caso são nomes míticos e nomes que soam bem.

[David] Chamavas a uma filha tua Rosa ou Sónia?

[Miguel] Penso que não…

[David] [Risos]

[Miguel] Mas são nomes clássicos…

David, o teu registo é inconfundível no que toca a sampling, assim como as guitarradas do Marco Duarte. Como produtor, quais foram as vantagens desta parceria com o Miguel?

[David] As vantagens da parceria com o Miguel foram que o espaço todo que eu tinha nos meus instrumentais, em que fazia música mais de registo instrumental, e tentava fazer uma coisa muito sumária… eu fazia o sumário da aula, e agora tenho o sumários e os apontamentos, que é o Mike El Nite. Ou seja, consegui fazer instrumentais com espaço para encaixar as minhas rimas, poucas, para encaixar as guitarras e para haver o Mike El Nite e, sobretudo, acho que [consegui] fazer músicas mais completas e mais dinâmicas. Há mais coisas a acontecerem.

Sentes que houve um maior exercício de construção?

[David] Houve, há mais coisas para encaixar, mais legos para encaixar e isso envolve mais trabalho e acho que nunca tinha feito músicas com tantas coisas, percebes? Por exemplo, no tempo de Corona se calhar tinha músicas igualmente preenchidas com voz, rimas, aqui tens uma parte cantada de uma maneira, aqui uma ponte cantada de outra maneira… Há muita dinâmica e essa parte foi mais desafiante, foi uma coisa que nunca tinha feito. Acho que depois disto estou preparado para trabalhar com o Tony Carreira, por exemplo.

[Miguel] [Risos]

Em termos de composição, foi uma coisa pensada ou foi surgindo naturalmente?

[David] Foi na mesma lógica dos anteriores. Ou seja, eu falei com o Miguel, acertamos assim mais ou menos o mood, um tema, romântico, etc. e depois eu disse, “ok, vamos trabalhar”, depois acertamos o tema. Mas eu fiz o habitual: criei um pacote de instrumentais e depois mostrei ao Miguel para ver se ele gostava daquilo ou não. O exercício meu foi daí para a frente, construir aí.

[Miguel] Para mim foi o exercício inverso de se calhar estar mais habituado a dirigir muitas coisas e a ter o meu espaço, e eu escolher dar o espaço a outra coisa. Aqui foi mais preencher o espaço na melhor medida possível para servir a música e para dar espaço ao David e ao Marco para todos brilharmos em igual parte. Ou seja, pensar mais na música em geral e pensar menos em mim como artista, pensar num projecto em que tu não és 80% ou 90%, és 40% ou 50%. É um processo diferente e muito enriquecedor e dá-te uma maneira nova de trabalhar.

[David] É um conjunto, amigo.

[Miguel] Exacto. Eu adoro esta dinâmica.

E durante essa dinâmica, houve momentos de confronto?

[Miguel] Foi mais ou menos tudo fluído. Obviamente que há um ou outro ponto que há discordância, mas no fim das contas temos um produto final com o qual concordamos os dois e isso é que interessa.

[David] Olha, acho que nunca houve confronto. Houve, às vezes, discussão saudável em certos pontos, “gostava de alterar esta parte, um bocadinho aqui…” mas nunca houve confronto. Até porque vou-te dizer uma coisa: o processo que segui com o Miguel foi o mesmo que eu sigo com Corona ou quando trabalho com outras pessoas, que é assim: eu gosto muito do instrumental, o Miguel não gosta? Esquece. Eu gosto muito do instrumental, o Miguel gosta muito da letra, eu não gosto? Esquece. Ou estão os dois de acordo com aquilo que foi feito à primeira ou então não vale a pena estar a discutir e estar a forçar os outros…

[Miguel] Acho que só houve uma música em que voltámos, uma segunda e uma terceira vez, que foi a “Rosa”, de resto, foi tudo mega fluído.

[David] Mas lá está, nunca foi um não de início, foi tipo, “sim, mas ainda não está”.

Era objectivo atingir um certo grau de exigência?

[Miguel] Um grau de satisfação, é mais isso.

[David] Satisfação, sim. Aquela coisa de ouvires à primeira e “yes, ’tá aqui!”

[Miguel] A maior parte foram assim, [mas] essa foi mais de não ficar à primeira e ir lá ao fim de três ou quatro tentativas. E é incrível como de repente a música que dava mais problemas se torna a preferida. Foi também a última a ser feita, então finalmente conseguimos parir isto..

[David] É como tudo. Quando és tu que compras a casa e reconstróis com as tuas próprias mãos e compras os teus próprios materiais vai ser sempre mais espectacular do que comprares já feita. Trabalhaste lá, dás-lhe mais valor.

E Miguel, para ti, o quão desafiante tem sido trabalhar com o David? Em que aspectos é que sentes que ele explorou caminhos que ainda não tinhas explorado.

[Miguel] Eu sinto que o desafio foi exactamente aquele que eu quis impor a mim próprio, porque ele deixou-me tão à vontade que, basicamente, eu senti espaço para fazer o que quisesse. O desafio estava em mim próprio. Até onde é que eu quero ir aqui? O que é que eu quero explorar aqui? E, tal como dissemos, quase sempre a primeira ideia foi “eish, isto está brutal, vamos embora”. Não houve essa cena de “olha acho que aqui devias fazer mais isto”, ele dizer-me a mim ou eu dizer-lhe a ele. Não, foi mesmo natural, um processo tão fluído que o limite era aquele que nos impúnhamos a nós próprios, basicamente.

Será um bromance com futuro?

[David] Eu acho que sim.

[Miguel] Por mim, sim!

[David] Os palcos também é que decidem isso.

[Miguel] Exacto, o sucesso do projecto o decidirá, mas eu estou pronto para outra!

E a escolha do palco do Tivoli para apresentação do disco, como é que foi feita?

[David] Vou ser honesto contigo, nos tempos que correm, os palcos estão muito limitados, e se tu quiseres tocar numa lotação minimamente decente, considerável, tens de arranjar espaços muito grandes, para uma lotação a meio, não é? E eu já lá tinha feito um concerto no final do ano passado com David Bruno, correu bastante bem e o Miguel também lá foi tocar e gostámos. E à procura de espaço agora, e como já tinha sido feito o negócio há pouco tempo, foi só procurar o número e “ainda gostam de nós, podemos ir outra vez?” e foi assim..

E a escolha do dia 13?

[David] Havia uns dias mais disponíveis, mas claro quando estás a ver a lista…

[Miguel] Quando apareceu o 13 de Maio, foi do género “isto é intervenção divina”

[David] Tem que ser este…


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