David Lynch era, em muitos sentidos, um polímata. Dotado em diversas frentes, como a pintura (a sua primeira experiência com o mundo da arte), o cinema e a música, sabia conjugá-las com a propriedade dos grandes mestres, devolvendo com frequência o que Wagner e Trahndorff apelidavam de gesamtkunstwerk: obras de arte totais. Não era um músico, dizia, mas sabia que o casamento entre som e imagem podia dar origem a coisas belas. Fê-lo por diversas vezes: no Club Silêncio de Mullholland Drive; no radiador de Henry Spencer em Eraserhead, ao som de “In Heaven”; na música que paira no Red Room e nas muitas performances que tiveram lugar no Roadhouse de Twin Peaks. Na grande tela, ajudou a resgatar as carreiras de Chris Isaak (“Wicked Games” só se tornaria um êxito depois da inclusão no filme Wild At Heart, um anos após o seu lançamento), Roy Orbison (memorável a versão de “Llorando”, cantada em espanhol por Rebekah del Rio) e Bobby Vinton.
Tal como John Carpenter, o realizador falecido na última quinta-feira, 15 de Janeiro, vítima de um enfisema pulmonar, integra o elenco restrito de criadores que assumem simultaneamente a direção e composição das trilhas que acompanham as suas criações, partilhando com a música o peso da sua visão autoral. As primeiras experiências com o som remontam a 1966, ano em que publicou a sua primeira curta-metragem, Six Men Getting Sick (Six Times). Já nessa altura escutávamos o fascínio pelos ruídos industriais, pela sobreposição de fragmentos, pela aplicação de texturas sobre um pano de fundo rítmico e maquinal. Sons que, de resto, foram formativos na definição do ambiente exasperante que habita Eraserhead, a estreia de Lynch no formato longo, já em 1977.
Do fascínio por “Song to the Siren”, versão de Tim Buckley que a escocesa Elizabeth Fraser imortalizou em It’ll End in Tears, o primeiro álbum dos This Mortal Coil, nasceu um dos mais belos monumentos da discografia associada a David Lynch: “Mysteries of Love”. Foi a primeira colaboração com o compositor Angelo Badalamenti, um dos maiores cúmplices de Lynch, e a primeira vez que o mundo parou para escutar a voz flutuante de Julee Cruise, no noir atmosférico de Blue Velvet (1986). Dessa triangulação prodigiosa acabaria por nascer ainda um álbum, Floating Into The Night (1989), e uma canção, de título “Falling”, que acabaria por servir de genérico para a série Twin Peaks, também ela musicada por Badalamenti. Em 1993, os três voltam a juntar-se para mais um disco, The Voice of Love, com letra de Lynch, arranjos e composição de Badalamenti e voz de Cruise. Estavam criadas as bases do som lynchiano: planante, ambíguo, construído sobre camadas de atmosfera e ambientes telúricos.
A relação com Badalamenti acabaria por se tornar proveitosa, mantendo-se firme até ao último filme de David Lynch, Inland Empire (2006). Desde então, o homem que sempre recusou ver-se como músico deixou os rolos e as bobines de lado, aproximando-se de uma ideia mais consensual de intérprete. Conhecedor profundo das raízes norte-americanas, jurou fidelidade ao blues e curvou-se perante os fundadores do rock’n’roll, primeiro com “Ghost of Love”, e depois com os dois álbuns que lançou em nome próprio, Crazy Clown Time (2011) e The Big Dream (2013). Colaborou com Trent Reznor (foi ele que montou e produziu a banda-sonora de Lost Highway), Karen O., Lykke Li, Flying Lotus e Danger Mouse (no álbum Dark Night of the Soul, com os Sparklehorse). Formou uma aliança com Chrystabell, uma das suas musas. Dessa parceria nasceram um EP e dois álbuns — o último, Cellophane Memories, saiu no ano passado. Antes, recriou composições do século XII ao lado da cantora Jocelyn Montgomery (1998, Lux Vivens: The Music of Hildegard Von Bingen); conferiu eletricidade ao blues com o guitarrista John Neff (2001, BlueBob) e explorou o campo infindável do drone com o designer de som Dean Hurley (2007, The Air Is on Fire), responsável, aliás, pelo trabalho de sonoplastia no regresso de Twin Peaks à televisão, em 2017.
David Lynch inspirou, mas também foi capaz de se deixar inspirar. Soube absorver referências sem perder a identidade, devolvendo ao presente os sons que o encantaram no passado (e nunca escondeu a obsessão que nutria pelos anos 50). Foi sempre assim: na música, na pintura e no cinema. A sua obra não será esquecida. Vemo-nos do outro lado?