Em inícios de Setembro de 1980, nas vésperas do lançamento internacional de Scary Monsters (And Super Creeps) — álbum número 14 no que já era então uma opulenta discografia —, David Bowie estava relutantemente sentado no camarim do Blackstone Theatre, em Chicago, ao fim do dia, preparado para uma conversa com o jornalista Angus Mackinnon e para uma sessão de fotos com o fotógrafo Anton Corbijn antes de subir ao palco para, muito literalmente, se transformar durante um par de horas no Elephant Man, John Merrick. O resultado desse encontro seria publicado numa longuíssima peça nas páginas do New Musical Express a 13 de Setembro de 1980. E a Mackinnon, que se queixou do limite de uma hora que a assessora de imprensa de Bowie impôs à entrevista, a estrela de “Heroes” começou por confessar que se calhar nem seria preciso tanto tempo: “Bem, a razão pela qual eu nem dei praticamente nenhuma entrevista nos anos mais recentes deve-se, muito simplesmente, ao facto de eu me ter tornado muito privado. E também [pausa], para ser honesto, não me parece que tenha assim tanta coisa para dizer”.
Claro que tinha. David Bowie sempre teve muito para dizer. O que fez dele o artista brilhante que o mundo não se tem cansado de celebrar foi que a maior parte do tempo escolheu dizê-lo através de uma complexa e labiríntica obra que não se limitou nunca à música, mas que abraçou desde cedo outras formas de expressão — como a representação, a pintura, o coleccionismo de arte, a moda… — e que procurou sempre estender os limites do que é suposto uma estrela pop fazer. E pensar.
A segunda metade dos anos 70 representou um período muito agitado na vida privada e também na vida pública de David Bowie. Vestiu a pele de Thomas Jerome Newton no filme de Nicolas Roeg The Man Who Fell To Earth, em 1976, e a de um oficial prussiano em Just a Gigolo, a pouco memorável última aparição no cinema de Marlene Dietrich numa obra dirigida por David Hemmings que o próprio cantor-actor famosamente descreveu como “os meus 32 filmes de Elvis Presley concentrados num só”. Foi um tempo de excessos hollywoodescos, com Station to Station a ser gravado em Los Angeles no meio de uma alucinogénica nuvem de pó branco que quase o empurrou para o abismo: “Houve um ponto”, confessou Bowie nas páginas do NME, “em que eu quase fui arrastado para uma estreita visão da vida, a de encontrar na cruz a salvação da humanidade, no período em que trabalhei com o Roeg. Esse período que se estendeu até 1976 foi provavelmente o pior ano ou o pior ano e meio da minha vida”. Berlim, Bowie não se coibiu de o confirmar, foi de seguida o que de melhor lhe poderia ter acontecido.
Em 1976, a Europa continental oferecia a David Bowie não apenas uma rota de escape, mas também a promessa de um mundo novo, sobretudo essa outra Europa que se estendia para lá do muro e que se podia avistar do estúdio Hansa, onde o homem que em tempos se tinha confundido com Ziggy Stardust completaria as gravações de Low e faria as de “Heroes”. Em Maio desse ano, durante uma pausa na digressão que então se encontrava a fazer, de apoio a Station to Station, Bowie decidiu viajar de comboio com Iggy Pop até Moscovo. No regresso a Londres, uma foto tirada à chegada a Victoria Station parecia indicar que Bowie saudava as pessoas com o braço esticado, à maneira nazi, facto que prontamente desmentiu garantindo não ser fascista. Por esta altura, a vida de Bowie estava a atravessar uma fase extremamente complicada, com o seu casamento a desmoronar-se, apesar de uma última tentativa de encontrar com Angie uma casa para viver na Suíça, e os seus recursos financeiros nas ruas da amargura, havendo disputas com o management e uma grande incógnita sobre o futuro do seu contrato discográfico. Talvez para se distrair de tudo isto, Bowie investiu na produção de The Idiot, um álbum clássico de Iggy Pop que foi gravado em França no famoso Chateau d’Hérouville e terminado já em Berlim, com a ajuda de Tony Visconti.
Em Starman: David Bowie – The Definitive Biography, Paul Trynka relata o episódio da chegada do produtor a Berlim: “Foi por volta de 20 de Agosto de 1976 que Tony Visconti chegou ao número 155 da Hauptstrasse, um ‘altbau’, ou apartamento de época, situado numa rua de sentido duplo ladeada por árvores em Schöneberg, um bairro anónimo no sudoeste de Berlim. Bowie tinha-lhe dito que Iggy estava a viver com ele; Visconti bateu à porta, abraçou o seu velho amigo, disse olá à Coco, que ele conhecia do período ‘esquelético’ de Young Americans. Depois o David disse, ‘este é o Jimmy!’. Por isso apertei-lhe a mão, olhei em volta e disse, ‘Boa – e onde está o Iggy?’ Toda a gente se riu, aquilo quebrou o gelo.”
Na verdade, depois de um período em que Bowie viveu de cabeça extremamente quente, a “trilogia” Low, “Heroes” e Lodger representou no conjunto da sua agitada carreira uma espécie de idade do gelo, mais fria, cerebral e calculada em termos artísticos, com a estrela a assumir uma atitude quase asceta e a forçar-se a explorar novas linguagens, novos contextos criativos, procurando inspiração na vanguardista vaga de fundo representada pela escola de rock alemão encabeçada por bandas como os Neu! ou os Can e Kraftwerk. Em entrevistas, Bowie reforçou essa ideia atribuindo ao formalismo musical uma importância em termos de “mensagem” tão decisiva quanto a que tradicionalmente se deposita nas palavras: “A música carrega a sua própria mensagem. As letras podem nem ser necessárias, porque a música carrega uma mensagem implícita”. Esta terá, certamente, sido uma das lições aprendidas ao lado de Brian Eno, figura decisiva no período de Berlim, que Bowie descreveu na entrevista concedida a propósito da edição de Scary Monsters (And Super Creeps), como “uma das mentes mais brilhantes que conheço nesta área — penso que alguma da música que ele gravou em Another Green World foi mesmo, e não me ocorre melhor palavra, transcendente. Penso que posso dizer que haveremos de trabalhar de novo”.
De facto, David Bowie, que concluiu na Suíça o seu processo de divórcio de Angela em Fevereiro de 1980, procurava na época uma nova mudança, uma nova transformação, talvez uma nova escapatória. Angus Mackinnon, no remate da sua longa entrevista de 1980 para o NME, garantia que o seu encontro em Chicago com David Bowie tinha revelado um homem “inteligente, articulado e fascinante que continua a escrever mensagens para si próprio e a selá-las em garrafas”. A metáfora referia-se, obviamente, aos discos. “É um processo obsessivamente privado que, por razões óbvias, ele oferece para escrutínio público”. Mais adiante, o repórter concluía que David Bowie era então um homem marcado pela solidão, “que o envolve como um manto”.
Sem Brian Eno ao seu lado, era nítida a ideia de que Bowie procurava com Scary Monsters encerrar um ciclo: esse seria o seu derradeiro álbum para a RCA, concluindo aí uma relação que se tinha iniciado em 1971 com a edição de Hunky Dory; por outro lado, Tony Visconti salientou em entrevistas posteriores que a sua abordagem criativa se tornou mais assertiva, com a estrela a passar longos períodos ao piano a trabalhar em cada um dos temas de um ponto de vista composicional não se limitando a confiar nos “acidentes preparados” em que muitas das sessões da era de Berlim se tinham baseado, improvisos colectivos a que depois se colavam palavras quase de gestação automática; as gravações também decorreram numa nova cidade, Nova Iorque, que se tornaria depois a casa oficial de David Bowie.
Nos famosos Power Station Studios de Tony Bongiovi — o primo de Jon Bon Jovi que produziu Ramones ou Talking Heads —, Bowie reuniu uma renovada equipa criativa que no entanto não descartava totalmente o passado: Carlos Alomar manteve-se à frente da banda base; Robert Fripp voltou a fornecer diferentes abordagens à guitarra em mais de metade dos temas do álbum; Roy Bittan, o pianista da E-Street Band de Bruce Springsteen, regressou ao circulo depois de ter originalmente participado em Station to Station; e, claro, Tony Visconti, o produtor, dirigiu, juntamente com Bowie, todas as sessões. Houve também algumas novidades importantes: Pete Townshend, guitarrista dos The Who, tocou em “Because You’re Young”; Andy Clark, braço direito de Bill Nelson nos Be-Bop Deluxe e Red Noise, tocou sintetizadores em quase metade das canções; e Chuck Hammer, notório experimentalista na guitarra sintetizada, com currículo construído em vários álbuns de Lou Reed, ajudou a fazer de “Ashes to Ashes” um objecto artístico absolutamente singular e a peça central do álbum.
O single “Ashes to Ashes” precedeu o lançamento do álbum e foi acompanhado de um visionário videoclipe, mais uma evidência da capacidade de David Bowie antecipar o futuro, um par de anos antes do lançamento da MTV, o canal de TV de música que haveria de causar uma revolução na indústria discográfica e de que Bowie foi um dos primeiros grandes beneficiários entendendo como ninguém, e como acreditava firmemente, que de facto as “mensagens” não precisavam de ficar limitadas às letras e que tudo — arranjos, música, vídeos — era passível de transmitir ideias.
“Esta foi a minha primeira realização”, explicou David Bowie ao jornalista do NME a propósito do videoclipe de “Ashes to Ashes”. “Os outros três que foram feitos para Lodger foram co-realizações no sentido em que eu dei ao David [Mallett] controlo total sobre o que eu queria que aí constasse. Mas para este eu tratei de fazer um storyboard detalhado, frame a frame. Ele depois montou-o exactamente como eu pretendia e permitiu que eu possa agora afirmar publicamente que esta é a minha primeira realização. Sempre quis faze-lo e esta é uma óptima maneira de começar — conseguir algum dinheiro de uma editora e depois ir por aí fora e brincar um bocadinho com ele”. Na verdade, nunca foi uma brincadeira para Bowie que até ao fim — vejam-se os vídeos preparados para The Next Day (“Where Are We Now”, por exemplo) ou Blackstar (o tema título) — sempre depositou enormes cuidados criativos na tradução visual das suas canções.
O caso de “Ashes to Ashes” foi sintomático. Antecipando um gesto que outros notórios “vampiros” pop tornariam comum anos mais tarde (pense-se em Madonna, por exemplo), David Bowie sentiu o pulso ao momento integrando no clip a participação de um vanguardista grupo de agitadores pop que à época se concentravam no clube Blitz de Londres, berço e laboratório dos new romantics, uma nova tribo pop encabeçada por Steve Strange, figura que viria a encontrar popularidade nos Visage, grupo do clássico “Fade to Grey”. A imagem de Bowie, transfigurado como Pierrot — uma das últimas máscaras que o camaleão envergou, antes de assumir uma imagem mais convencional com Let’s Dance, um par de anos mais tarde — a marchar ao lado dos Blitz Kids em frente de um bulldozer, é uma das mais icónicas dos anos 80.
Sobre a recuperação da figura de Major Tom, Bowie não escondeu a perversa satisfação na base de tal impulso: “O subtexto de ‘Ashes to Ashes’ passa muito obviamente pelo apelo quase de canção de embalar do tema, mas para mim é uma história de corrupção. É também o mais subversivo que se consegue ser no âmbito da música popular, já que eu adoraria ter uma música tocada na BBC que contém a palavra ‘junkie’. Penso que o consegui [risos]”. Em termos mais sérios, Bowie haveria explicar que a ideia original na base da criação da figura do Major Tom tinha tudo que ver com a ideia do Sonho Americano, com o poderio tecnológico da maior superpotência do planeta a ser capaz de colocar um homem em órbita, um homem que percebeu depois que tudo se desmorona, até os sonhos feitos de conquistas científicas: “Na verdade, é uma ode à infância, se quiserem, uma canção de embalar pop. É acerca de astronautas se poderem tornar drogados [risos]”. O tema há-de ter tocado num qualquer nervo geracional já que se instalou no topo das tabelas britânicas, tornando-se o seu mais sério caso de vendas até esse ponto da sua carreira.
Mesmo no final de 1980 — na verdade, no número da Rolling Stone que chegou às bancas no dia de Natal… — Debra Rae Cohen rendia-se ao novo trabalho de Bowie com uma crítica de 5 estrelas: “Em Scary Monsters ele sai a lutar. Fundindo as texturas metálicas da trilogia de Eno com algo mais negro e denso, Bowie foca a sua atenção no mundo que ele mesmo ajudou a criar”, escrevia a jornalista, acrescentando depois que o novo álbum “apresenta Bowie arrebatado pelo desfile da vida: modernos normalizados, trendies e bufos apresentados em 360 graus de gritante e assustador Panavision”.
Três anos mais tarde, já com Let’s Dance nas ruas, Bowie explicava ao mundo que começava a conformar-se com o amadurecimento e que estava a gostar de ter 36 anos: “Mentalmente e emocionalmente há grandes mudanças, sobretudo se formos submetidos a uma observação massiva e popular”, explicava o músico. Em Scary Monsters, no entanto, argumentava o jornalista Chris Bohn, o camaleão ainda se encontrava em diálogo com a massa adolescente. “Foi essa a ideia que passou?”, começou por questionar Bowie. “Isso é interessante. Talvez tenha soado assim por causa da instrumentação, dos próprios efeitos dos instrumentos e da qualidade da produção… bem, eles estavam a incorporar todos os sons que são radicalmente parte da cultura musical juvenil. O epíteto do som da new wave na época, dos sintetizadores borbulhantes às guitarras erráticas e pouco ortodoxas. O álbum tinha todos os elementos que, por definição, se atribuem a uma maneira mais jovem de tocar música”. E sob este aspecto, portanto, Scary Monsters foi também o adeus definitivo à juventude, por parte de um homem que contava então 33 anos e que sabia que não poderia travar o tempo.
*Texto originalmente publicado na revista Blitz e hoje recuperado para as páginas do Rimas e Batidas a proposito do 45° aniversario de Scary Monsters (And Super Creeps).