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Publicado a: 12/04/2015

Das abelhas e das borboletas: ideias sobre Kendrick Lamar

Publicado a: 12/04/2015

Voar como uma borboleta e picar como uma abelha! À tradução deste princípio filosófico enunciado por Mohammed Ali falta o flow e a rima contidos no original, em inglês: “float like a butterfly, sting like a bee“. É uma frase percussiva e melódica ao mesmo tempo. Musical. É uma frase que é música. É música. Palavras que são música. A mesma qualidade musical descobre-se em To Pimp a Butterfly, o ópus de quase 80 minutos assinado por K-Dot, Kendrick Lamar, rei incontestado da coisa hip hop no ano da graça de 2015. E por muitos e vindouros anos, suspeita-se. A menos que Kanye faça o que Kanye sabe fazer e aí poderemos ter uma verdadeira Guerra dos Tronos. Jigga vai andar ocupado com o Tidal por uns tempos e será mais observador do que player… A ver vamos.

Mas todos os olhos – e ouvidos… – em Kendrick, agora. O que vão ler por aqui não é uma crítica a To Pimp a Butterfly. Já saíram muitas. Antes algumas considerações, mais ou menos laterais, mais ou menos tangenciais, que audições recorrentes têm motivado. Como Marvin, Curtis, Stevie e Sly, como Trane, Miles e Herbie, como Slick Rick ou Rakim, como Jigga e Biggie, como 2Pac ou Eminem, também Kendrick mostra aqui que tem o ouvido colado ao carril que atravessa a América. E o que aquela vibração crescente, aquele rumble incessante, lhe diz é que o futuro se aproxima cada vez mais rápido. Mas Kendrick não nos traz nenhuma visão apocalíptica do futuro da América. A foto da capa diz tudo: um monte de irmãos a festejar no relvado da Casa Branca. Este é um disco pós-Obama. Um disco pró-Obama. Um disco carregado daquele tipo de esperança que se obtém quando alguém sabe que é dono do seu próprio destino. “We can’t be in the streets forever”, conta ele no artigo de capa da Rolling Stone de 26 de Março último. Nesse sentido, To Pimp a Butterfly é um álbum menos amargo do que o de D’Angelo, motivado pelos motins de Ferguson. Black Messiah é um álbum que grita ‘basta!’ e To Pimp a Butterfly, por outro lado, é um álbum em que se declara ‘eu acredito no futuro. Porque não podemos ficar-nos pelas ruas para sempre’. Ambos são informados pelo presente e pelo passado recente, ambos propõem o amor como via para a construção do futuro. Mas Kendrick soa menos zangado, menos magoado do que D’Angelo.



Uma palavra mais sobre D’Angelo e Kendrick: 2015 vai ficar para a história da música negra. Este presente é estimulante. E o ano ainda promete discos de Kanye, dos De La Soul. E, claro, Meow the Jewels… Incrível a vibração da música negra. Incrível esta capacidade de reinvenção. E não esquecer gente como Theo Parrish, como Shabazz Palaces, como THEE Satisfaction, por exemplo. Este é um dos mais vibrantes e entusiasmantes puzzles da música negra de sempre, com todas as peças a encaixarem-se de forma sublime. Passado, presente e, sobretudo, futuro em perfeita harmonia.

E To Pimp a Butterfly é um disco crucial por tudo o que promete. Cruza Flying Lotus com George Clinton, Thundercat e Robert Glasper. Cruza flows como peças de xadrez num jogo entre Kasparov e Hal 9000, cruza poesia, spoken word e jazz avançado. Na verdade, será até injusto olhar para To Pimp a Butterfly como um álbum de hip hop. O hip hop é apenas uma das especiarias usadas neste caril rico. O que aqui acontece, neste palco cheio de homens e de máquinas, é um gesto de ousadia estética com poucos precedentes (somos sempre obrigados a regressar a marcos como “What’s Going On” ou “There’s a Riot Going On” ou “Sign o’ The Times), um golpe de génio que ousa transformar o futuro em presente e os delírios em música, complexa e espessa, fazendo-nos sentir como se nadássemos num mar de geleia. E é um álbum que, umas boas vinte audições depois, continua a prometer coisas novas, revelando novas camadas, novos sentidos, novos sons, novas ideias em cada regresso.

 



 

E não há muitos discos assim: um disco em que se abandona a regra quase universal de incluir muitos convidados nas rimas (Dr. Dre telefona, Snoop imita Slick Rick e pouco mais…), um disco em que a interacção jazz substitui a ciência rítmica cozinhada nas mpcs, um disco em que o flow da spoken word marca o discurso, um disco de imagens verbais recorrentes, um disco em que se assumem inseguranças… Nesses sentidos, um disco muito pouco hip hop. Um disco desarmante e honesto. Um disco em que não se reclama estar-se a duzentos à hora num caminho “straight outta Compton“, mas em que se ousa querer transformar Compton. Não podes tirar o rapaz de Compton, nem Compton do rapaz, parece garantir K-Dot. O que também é pouco hip hop: essa é uma cultura de superação e de certa maneira de fuga: ‘vejam como consegui superar o bairro. É verdade que vim dali, mas é para acolá que eu vou’. Kendrick não quer fugir, quer reinventar. Na já referida entrevista da Rolling Stone, Kendrick até admite ter vontade de ir para a universidade, o que em si também é pouco hip hop – ‘as ruas oferecem as melhores lições, etc.’.

A porta está aberta, a borboleta pica como uma abelha e o mundo dentro do mais recente álbum de Kendrick Lamar não pára de crescer, como o universo desde o big bang. A história deste disco ainda está a ser escrita…

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