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Fotografia: Vera Marmelo / Gulbenkian Música
Publicado a: 09/08/2024

Dar ouvidos aos manifestos.

Darius Jones fLuxKit Vancouver (i​̶​t​̶​s̶ suite but sacred) no Jazz em Agosto’24: 4(+1) movimentos em permanência

Fotografia: Vera Marmelo / Gulbenkian Música
Publicado a: 09/08/2024

Os aguardados dias de palco para os manifestos artísticos de vanguarda, trazidos até ao nosso tempo, aí estão no festival que chama em Agosto a música e o jazz à Gulbenkian. Haverá ainda tempo de um  “Beatnik Manifesto”, que dieb13 e companhia transmutarão do movimento beat. Dos Beatniks como grupo social alargado, desde um modo de vida despojado do materialismo e feito da errância que questionou a arte do consumo, desafiando o conformismo, praticantes do radical e do selvagem na poesia, na pintura e na música, vindo o nome até da batida do ritmo no jazz que os alimentou no espírito. No decurso desses meados anos do século passado, vividos na ressaca de um marasmo pós-Grande Depressão, dum pós-Guerra Mundial, surgiria um transversal fluxo de inquietude artística. O que se tornou numa comunidade de artistas comunicantes, à escala internacional, partiu do Fluxus Manifesto de George Maciunas em 1963, com as premissas de “expurgar o mundo da doença burguesa, da cultura ‘intelectual’, profissional e comercializada. Expurgar o mundo da arte morta, da imitação, da arte artificial […]”. Isto através de práticas experimentais e performativas, que visam “promover um fluxo e uma maré de revolucionários na arte. Promover a arte viva, a anti-arte, promover a realidade da não arte para ser apreendida por todos, não apenas pelos críticos, diletantes e profissionais.” O manifesto Fluxus tornou-se envolvente e transversal como um movimento de vanguarda artística, contando com artistas como John Cage, Yoko Ono, Ben Patterson, Terry Riley ou LaMonte Young entre alguns dos maiores cultivadores na expressão musical do movimento.

A Darius Jones como pensador, compositor e saxofonista foi-lhe comissariada, pelo espaço Western Front de Vancouver, a escrita musical que celebrasse o movimento Fluxus. Jones reuniu um ensemble para interpretar e fluir a escrita do manifesto sob a forma de 4 movimentos, que são formalizados, além de Jones em saxofone alto, por Gerald Cleaver em bateria e um quarteto de cordas composto por Jesse Zubot e Josh Zubot em violinos, Peggy Lee em violoncelo e James Meger em contrabaixo. O que resulta no palco do Anfiteatro ao Ar Livre da Gulbenkian, no âmbito do Jazz em Agosto, é a primeira actuação europeia de fLuxKit Vancouver (i​̶​t​̶​s̶ suite but sacred), que foi desenvolvido por Jones ao longo de várias residências na Western Front entre 2019 e 2022 e gravado nesse último ano em Vancouver, no Canadá. Gravação essa que contou em 2023 com a colaboração editorial da Northern Spy de Brooklyn e com a We Jazz, editora de Helsínquia que Matti Nives tem velejado tão bem, trazendo aos escaparates o que para muitos foi considerado um dos fundamentais álbuns de jazz do ano.

Como em disco, também em palco o andamento da suite é composto por 4 movimentos. Neste dia feliz de encontro com a música de Darius Jones o ensemble serve o 1º movimento com “Fluxus V5T 1S1”. É um movimento frenético, desaustinado, que parte de um chamamento vital do saxofone alto — como se um pedestal houvesse. As cordas de violinos dão o mote dramático via staccatos para o violoncelo de Lee e, aliado à profundidade do contrabaixo de Meger, começa a acelerar o tempo, na urgência do movimento até o alto virar uma voz que reclama, meio enfurecida. Cleaver cuja mestria na bateria no dia anterior, junto a Brandon Seabrook, ficámos por entender, e serve aqui a razão do ritmo na genial e aparente simplicidade forma. Volta-se ao regime anunciante da música no final do movimento, é o fluxo a chegar… Brilhante começo a revelar um bálsamo sonoro que, assim sendo, sempre será recebido com toda disponibilidade que nos cabe. “Zubot” como 2º movimento, como um tapete feito de batidas baixas e impetuosas na bateria de Cleaver, que suporta a exploração de madeiras, entre tampos e costas em combinatórias de toques percutores nos violinos dos irmãos Zubot, e nisso entende-se a justeza do nome do movimento. O alto é discreto e leva mesmo Jones a retirar-se das luzes de palco, para que brilhem os espectros vindos dos jogos de fluxos sonoros das cordas dos violinos, em mecanismos energéticos feitos de ascensões de descargas, que o violoncelo de Lee medeia com coesão. Ouve-se com uma enorme dose de permeabilidade energética que suporta e reforça em vontade os movimentos por vir, num fluxo que está em curso.

Jones faz a sua locução a todos nós e espera a passagem sonora de mais um avião — “Isto é Fluxus”, refere-se condescendente à vibração escutada. Nesta intervenção que medeia o curso dos 4 movimentos, Jones enquadra o que se escutará de seguida em “Rainbow”, que dedica a uma mulher fundamental de Vancouver. É um tema carregado de emoção até ao fim. Nele sabemos que estão inscritas anotações que se inserem no que Jones refere como improvisação guiada. Recuperando citações do artigo “Acts of Creation” de John Morrison na revista The Wire, refere-se que, para a escrita de fLuxKit Vancouver (i​̶​t​̶​s̶ suite but sacred), foram compiladas fotografias de negros americanos mortos pela polícia em 2020: “Breonna Taylor, uma mulher de 26 anos que foi baleada e morta pela polícia em Louisville durante uma rusga sem aviso e Ahmaud Arbery, um homem de 25 anos que foi perseguido e baleado por residentes brancos na Geórgia enquanto fazia jogging.” Ainda que não explicitamente assumido em texto, em disco e em palco, colamos esse mote a este 3º movimento “Rainbow”, que transporta essa carga. Cleaver nele desponta uma rolante e múltipla bateria em mecanismos livres suportados nas anotações gráficas como guias e impulsiona o movimento até desembocar num fluxo desacelerado pelo andamento lento e sinistro do contrabaixo que nos permite imaginar a triste revolta sentida pelos músicos face às imagens descritas por Jones. As cordas dos violinos dos Zubot ouvem-se lamuriantes e Jones surge num amparo desafogado com o alto, vem mostrar melodias ricas em texturas e lirismos que embalam. Um movimento composto por dois ciclos, duas imagens, duas vidas subtraídas choradas em respostas emocionais pela instrumentação em livre desempenho, guiados pela linha condutora do contrabaixo. 

4º movimento e Jones volta a ser condutor maior na orientação explicativa do que se escutará. “Damon and Pythias” aborda a amizade e é dedicado a todos e a todas nós. Na mitologia, Damon e Pythias foram dois amigos que se viram envolvidos num castigo; Damon acabaria por ser condenado à cárcere e Pythias propõe ao rei ir na sua vez como prova de amizade maior. Esse acto redentor levou a que ambos fossem livres, e salvos pela arrebatadora amizade. “Algum de vocês conta na vida com um(a) amigo(a) assim?” Pergunta, esperançado, Jones. Fica dado o mote e o tema assume-se no propósito devocional da amizade, e por isso mesmo é de uma enorme riqueza textural nas vozes escutadas. Feito de plenas harmonias muito em torno de uma linha melódica complexa e rica. Lee serve um longo final perfeito de condução, num fraseado que se leva a assobiar para casa. Absoluto e redentor, de emoção nos píncaros pela beleza escutada que o alto de Jones desenha palco afora, indo de um lado ao outro, como que distribuindo a todos(as), numa emanação difusora, para que nenhum(a) de nós fique sem esse fluxo imprescindível.

Findos os 4 movimentos, mandamentos fundamentais, parecia nada mais haver a tocar em placo, perante uns mais que justificados e longuíssimos aplausos. Voltariam para tocar o que se ouviu como um verdadeiro 5º movimento, uma vez mais muito suportado pelo fundamental impulso criativo das anotações gráficas das partituras, emoções indicativas de um fluxo que se ouve e se toma como permanente, para a vida, para além da arte. Obrigado, Darius Jones, por este manifesto sonoro, inscrito na arte viva, vivido pela arte da música.


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