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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/02/2024

O ex-vocalista dos CAN morreu aos 74 anos.

Damo Suzuki: “Se estiveres a fazer o mesmo tipo de música todos os dias, com as mesmas pessoas, é stressante”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/02/2024

Kenji Suzuki, mais conhecido por Damo Suzuki, morreu com 74 anos. Não foi divulgada a causa da sua morte, mas sabe-se que o músico travava uma batalha contra um cancro no cólon desde os anos 80.

O lendário artista japonês mudou-se para a Europa ainda durante a sua juventude, tendo passado por vários países até se sediar na Alemanha. Foi por lá que conheceu Holger Czukay e Jaki Liebezeit, dos CAN, que o convidaram a integrar os quadros da banda pioneira do krautrock em 1970. A estadia de Suzuki no grupo germânico durou apenas até 1973, tempo suficiente para participar nos três mais aclamados discos do conjunto — Tago Mago (1971), Ege Bamyası (1972) e Future Days (1973).

Após essa brilhante aventura, o cantor nipónico afastou-se da música para se dedicar à família e à religião, mas o diagnóstico de cancro e a consequente difícil batalha contra a doença motivaram-no a regressar ao activo, tendo tocado em diversos países através da Damo Suzuki’s Network, um conceito que o levava a juntar-se aos artistas locais dos sítios por onde passava de forma totalmente improvisada. Foi com este formato que passou por Portugal em algumas ocasiões, e a propósito de uma dessas vezes, em 2004, foi entrevistado por Vítor Junqueira, conversa que foi originalmente publicada na Número Magazine e, posteriormente, no blogue Juramento Sem Bandeira. Com a autorização do seu autor, o Rimas e Batidas publica hoje uma tradução dessa entrevista em jeito de homenagem a Damo Suzuki.



Fugiste da casa dos teus pais quando tinhas 16 anos.

Era muito necessário sair do Japão. O Japão perdeu a II Guerra Mundial e por isso tinha muitas coisas para desenvolver. Eu tinha muita curiosidade em conhecer outros países, pois tinha muito jeito para a geografia. Se vivesses na Irlanda, Inglaterra ou Japão, terias esse sentimento de querer ver outros países. É diferente do que acontece aqui. Bem, ok, os portugueses eram um povo bastante sentimental, com Vasco da Gama, mas era diferente. E hoje tens informação. Não tens de viajar para lado nenhum.

Depois foste para Moscovo.

Sim, mas antes estive na América e na Ásia. A primeira vez que vim à Europa foi em 1968. Desde então, tenho vivido na Europa. É muito importante para mim.

Alguma vez voltaste ao Japão e ficaste mais de uma semana?

Sim, mas não mais de um mês.

Sentes-te mais japonês ou europeu?

Não gosto de ter qualquer tipo de responsabilidades e se estiveres ligado a uma nação, sentes algum tipo de responsabilidades, como eleições e assim por diante. Mas eu não tenho esse tipo de sentimento porque nenhum país do mundo é suficientemente bom para mim [risos]. Talvez esteja a ser muito arrogante [risos]. Acho que é muito melhor não ter qualquer tipo de nacionalidade.

Ainda assim, encontraste algo a que possas chamar casa, na Alemanha?

Não, não é a minha casa. Tenho três filhos, por isso é aí que tenho de ficar, como responsabilidade de pai, mas isso não é muito importante, porque “casa” é uma espécie de resposta que ainda estou à procura e talvez não a consiga encontrar. Para mim, “casa” não é um lugar geográfico. Tem muito mais a ver com coisas espirituais.

E depois, o Damo conheceu os CAN. Podes descrever o que aconteceu no dia em que conheceste o Holger Czukay e o Jaki Liebezeit dos CAN?

Foi em 1970, em Abril ou Maio. Eu costumava trabalhar numa peça musical, em Munique. Estava lá apenas para arranjar dinheiro para voltar para casa.

Essa peça era Hair da Broadway, certo?

Sim, trabalhei durante três meses. Cantava, dançava e fazia esse tipo de coisas. Mas não era um trabalho agradável. Fi-lo apenas pelo dinheiro, porque era realmente muito aborrecido todos os dias. E um dia — eu estava habituado a fazer música de rua — estava a tocar e os membros do Can estavam lá, sentados num café e a observar-me. Vieram dizer-me que não tinham cantor e que tinham um concerto nessa noite e perguntaram-me se podia juntar-me a eles. Eu não tinha nada para fazer, por isso “ok, posso juntar-me a vocês”. Foi divertido, porque, para além de fazer música na rua, nunca tinha pensado em fazer da música a minha vida.

O que aconteceu nessa noite pode, de alguma forma, estar relacionado com o que fazes hoje em dia? Quer dizer, vais para um local, não conheces as pessoas com quem vais tocar…

Hoje [esta entrevista foi feita antes do concerto de Lisboa], não conheço dois deles. Bem, conheci-os no soundcheck… Mas não faz mal, é a nossa comunicação.

Como é que funciona? Como é que fazes esses alinhamentos? Escolhes as pessoas com quem vais trabalhar?

A maior parte das vezes, não as escolho. Às vezes é o local que pede às pessoas para virem tocar. Outras, como quando toco em aldeias pequenas, onde não há músicos que possam improvisar, peço a algumas pessoas. Tenho uma lista dos “portadores de som” — chamo-lhes “portadores de som” porque é melhor do que a palavra “músicos”. Não tens de seguir a teoria ou os sistemas da música. Somos livres quando fazemos som no momento.

Não tens medo de não ter esse tipo de comunicação numa noite?

Não, de certa forma, é ser sempre bom. Só que és diferente. Por exemplo, em Portugal estou a tocar muito mais com músicos experimentais ou de free-jazz, mas se tocar em Inglaterra, vou ter muito mais música rock. Portanto, é sempre diferente. E é por isso que não me sinto cansado. Se estiveres a fazer o mesmo tipo de música todos os dias, com as mesmas pessoas, é stressante… É como teres um emprego normal. Não gosto disso. Os nossos concertos são liberdade. Podes fazer coisas muito mais criativas.

E como é quando tocas desta forma com ex-membros dos CAN? É diferente?

Não é diferente, mas é como um jogo de futebol. Se já jogaste com alguém, sabes como ele se move. Por isso, é muito mais fácil. Mas eu não gosto de estar sempre a fazer esse trabalho fácil. Gosto de viver aventuras na minha vida. É muito bom entrar numa aventura quando não tens um conceito. Cada momento que crias é algo. Se estiveres a tocar coisas antigas compostas, não consegues encontrar isto. E também os erros: aqui não é um erro, podes arranjar outra forma de criar; na música composta, um erro é um erro. O ser humano não é perfeito. Toda a gente comete erros. E é importante que aceites as outras pessoas que também cometem erros.

Como é que as pessoas reagem aos teus concertos?

De lugar para lugar, é muito diferente. Nalguns países, as pessoas estão a ver um pouco longe de nós. Noutros, as pessoas estão a dançar desde o início. Mas não posso dizer “este sítio é bom” ou “este sítio é mau”. Na verdade, em todo o lado é bom.

Quando deixaste os CAN, também te afastaste da música…

11 anos. Não fiz nenhuma música durante esses 11 anos. Estava a curtir a família e não gosto muito de cultura pop. Estávamos a ficar bastante famosos na Alemanha e também em Inglaterra. Nessa altura, conheci uma rapariga alemã e casámos. Para mim, a família era, de repente, muito mais importante do que a própria música. Estava farto da música. A última gravação de CAN que fiz foi Future Days e foi para mim o melhor LP. Foi fácil para mim deixar a música porque pensei que não podia fazer melhor do que aquilo. Então porque é que havia de continuar?

Neste livro CAN, lançado há dois ou três anos, o falecido Michael Karoli diz: “Não há dúvida de que o Damo se tornou mais profissional à medida que íamos trabalhando mais com ele. Quando nos deixou, depois de Future Days, estava no ponto em que se poderia ter tornado um cantor fantástico e espantoso.”

Não sabia disto. Isto é mesmo bom. Ele já não está cá e é muito bom recordá-lo.

E o que te fez voltar à música?

Oh, foi uma história horrível. Tive um cancro. Nessa altura era Testemunha de Jeová e fiz todas as operações sem transfusões de sangue. Na primeira operação, as hipóteses de sobreviver eram de 30% com sangue de outras pessoas. Eu fiz a operação sem sangue. Sobrevivi, mas três dias depois correu mal e o médico disse que só podia dar 15% de possibilidade de viver. “Com ou sem transfusão de sangue, não importa; não tens tantas hipóteses de viver.” Foi uma situação muito difícil, mas sobrevivi, sem a transfusão de sangue. Desde então — há cerca de 18 anos — tenho-me sentido muito bem. Até tive a sensação de que gosto de me ferir [nota de edição: depois percebi porque é que ele arrancou os filtros dos cigarros] e de fazer as coisas que realmente quero fazer, por isso é que voltei à música. E, para além disso, gosto de ajudar as pessoas, contando-lhes como sobrevivi a esta situação má. Se puder partilhar a minha energia com as pessoas, então é muito bom. Para mim, a música sempre foi uma forma de comunicação. Se estivermos numa sala com o público, o público não sabe de nada, assim como o músico, como vai acontecer esta noite. Estamos no mesmo palco. Estamos a viver o tempo juntos. Por isso, é muito importante para mim voltar a fazer música. E eu gosto de chegar mais longe do que a música, especialmente agora, com todos estes materialismos. Gostava de mudar um pouco as coisas. Chama-se “Never Ending Tour”. Não sou só eu. Gostava de continuar a fazer isto para sempre, mas no dia em que for para debaixo da terra, talvez haja novas pessoas que possam assumir isto. Agora, no século XXI, temos tanta informação… Por exemplo, quando eu tinha 13 anos, não tinha tanta informação como o meu filho. Eles têm de mudar o mundo de uma forma melhor. Mas podemos fazer uma espécie de pedra — como quando construímos uma casa — e depois, geração após geração, podemos mudá-la. Com a música, penso que é possível, mas só se fizeres música improvisada, porque a música não é comunicada através da indústria. Noutro tipo de música, o sistema já existe para obteres sucesso, para te tornares popular, para teres bom aspecto ou qualquer outra coisa.

Ouves música em casa?

Ouço. A maior parte das vezes, música clássica. A partir de hoje, só ouço a minha música. Gravo todos os concertos, por isso há material suficiente. Só ouço gravações ao vivo.


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