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Fotografia: Geert Braekers
Publicado a: 31/12/2022

Um corpo estranho em permanente mudança.

Dälek: “A minha música aponta muito do que está mal, mas não é niilista. É sobre construir o futuro”

Fotografia: Geert Braekers
Publicado a: 31/12/2022

A propósito da visita a Portugal para apresentar Precipice no Amplifest 2022, o Rimas e Batidas encontrou-se com MC dälek para falar do novo disco e perceber como se recomeça um projeto de rap consciente nuns EUA à beira de eleger Donald Trump e de terrenos socialmente inclinados com base em preconceitos e tons de pele.

Cada medalha tem o seu reverso — a do hip hop tem brilhado de formas muito positivas e diversas, projetando vozes que relatam quotidianos distantes das narrativas mediáticas normativas e criando novas formas de expressão, técnicas e estéticas. Por outro lado, estas formas de expressão, ao serem apropriadas pelo mainstream, foram-se cristalizando e fechadas num arquétipo redutor de todas as possibilidades encapsuladas pelo género nos anos 90. Era esta uma forma quase dadaísta de criar que dispensava o instrumentismo tradicional, uma nova forma de liricismo que complexificava as fórmulas pop do cantautor em cadências, motivos e entoações linguísticas cada vez mais intrincadas, que não descuravam no significado.

Um dos nomes que, desde então, melhor tem demonstrado o que o rap também pode ser é Dälek, epíteto do grupo liderado pelo rapper nascido Will Brooks. Começados na reta final dos 90s, os Dälek mostram desde então que os métodos do hip hop são, em essência, filtros para criações sonoras cujos resultados diferem, em muito, da fonte usada para alimentar o sampling. Se a norma era a caixa de ritmos com recortes de jazz, soul, funk ou qualquer outra variação da criatividade negra, as batidas de Dälek eram povoadas com paredes de noise, punk, dissonâncias e tiradas de som apocalípticas que melhor se acompanhavam um discurso de rap consciente e corrosivo (mas onde nas entrelinhas se lê, com clareza, as mensagens do MC).

Não é, por isso, obra do acaso que o grupo tenha feito parte do aguardado regresso do Amplifest, um festival já histórico na cena da nacional da dita música extrema e que reabriu, depois de várias edições bem focadas nas guitarras e nas variações aceites neste circuito, o cardápio à experimentação mais irascível. Isto não é novidade no evento portuense, mas esteve em suspenso desde meados de 2014 e permitiu-se a receber, em 2022, nomes mais fora do baralho como Prison Religion, The Bug, Clothilde, Luís Fernandes, Fennesz ou Scúru Fitchádu. Foi, aliás, graças a isso que a entrevista entre o Rimas e Batidas e Will Brooks aka MC dälek aconteceu. Uma conversa em que se aborda o que é o hip hop enquanto metodologia, a sua aceitação a conta-gotas fora da comunidade, a sua infiltração noutras tribos, as motivações artísticas dos Dälek, a vida nuns Estados Unidos da América pós-Trump e a esperança inerente ao negrume da sua música.

Desde 1998 que Dälek sempre foram um corpo estranho na cena hip hop, algo bem sabido pelo próprio timoneiro da banda: “Eu gosto é de como o meu hip hop soa. E acho fascinante que cada artista crie a sua cena e siga a sua direcção. É a beleza do género e é por isso que acho a cena entusiasmante hoje em dia”, diz-nos Brooks. Esta ideia é inerente ao que ouve e à música que cria — de resto, condições que não separa na sua postura. “Eu sou um fã de música acima de tudo. Adoro música genuinamente. E adoro ouvir vinil, adoro fazer digging e adoro ir ver concertos. Eu alimento-me disso”. É por isso, também, explica que, por muito que tentem “meter música em caixas” (“é um bom passatempo”, escarnece), no fim do dia só há uma em que ele se sinta confortável.

“Quando eu estava a crescer, toda a gente nos tentava colocar em caixas. E o que o pessoal nunca entendeu quando eu dizia que fazia hip hop é que o hip hop é a minha cultura. Não interessa o que eu faça, será sempre hip hop. Se eu trabalhar num disco de metal, será hip hop. Se trabalhar num disco de jazz, será hip hop. Hip hop corre-me nas veias”. Não é uma ideia peregrina, mas a forma como a música dos Dälek se faz ouvir é singular. Paredes de ruído sobre cadências lentas. Já o MC dälek cospe rimas sobre rimas carregadas de camadas de significados, de interpretação múltipla, mas sempre a descrever a decadência patente numa sociedade à beira do colapso (e que, para muitos, nunca representou senão um falhanço).

Esta á uma diferença-chave na música dos Dälek. Os beats mecanizados, oleados a noise e catastrofismo, esvaziam-nos de qualquer possibilidade de vislumbrar a luz ao fundo do túnel. É para esses lugares que o liricismo de Brooks nos conduz também. Há tiradas mais duras do que outras, mas as suas barras são, muitas vezes, a voz de um desespero herdado (lá iremos). Ouça-se, por exemplo, na abertura do seminal Absence, em “Distorted Prose”, em que MC dälek cospe realidade em modo spoken word antes de entrar na cadência da torrente noise que se avizinha:

“Broke stride as last of men realized their deep deceit
This troubling advance of half-assed crews crowd these streets
Never mind of who I am, son, just listen when I speak
Broken paragraphs hold wrath of a hundred million deep
Bleak circumstance led masses to only want to dance
A bastard child of Reaganomics posed in a b-boy stance
Make our leaders play minstrel, Left with none to lead our people
How the fuck am I gonna shake your hand, when we never been seen as equals?
Deemed evil by those housed in church steeples
False prophets read backwards from broken tablets to the feeble
I seen you!”

Em “Boycott”, do mais recente Precipice, as tiradas não são menos duras:

“This a new Age
Turnt page burnt as offering
Not many prospering
Preach your false doctrine
Perceived posturing Oct
Reach in your chest piece to make your heartbeat stop
Embark emboldened by my soldiers
Remnants of our past still smolders
Art forms advance displace weight off shoulders
We all seek closure”

Há, contudo, e cada vez mais, algo que distingue o pensamento K. Dickiano de Brooks dos seus pares distópicos: “A minha música aponta muito do que está mal, mas há sempre um pouco de esperança em tudo o que crio. Não é niilista, não é sobre eu dizer que se foda esta merda. É sobre construir o futuro, sobre garantir que o pessoal não se esquece do que está a acontecer”. Esta é uma diferença essencial, que se materializa noutros lugares da sua música, como em “A Heretic’s Inheritance”:

“What We lost is time wealth and answers
We see heroes in Panthers
Hold myself to a higher standard
Don’t give a fuck if your gods are angered”

Esta materialização não se encontra apenas na evidente alusão ao Black Panther Party, mas também na necessidade de se ser melhor a cada dia. No universo por onde Dälek se move, e onde o negrume é linguagem partilhada, isto pode ser singular, mas não é no do hip hop. Nas suas influências aponta repetidamente Public Enemy, Boogie Down Productions, EPMD, nomes incontornáveis do boom bap e precursores do que hoje se diria ser rap consciente — todos eles com as mesmas influências, com os mesmos métodos, com o mesmo dedo na ferida. Destaca-se mais, no rol de inspirações, KRS One, onde a poética se sobrepõe ao panfletário. O jogo “sempre foi sobre poesia, mas os factos estão todos lá”, diz-nos.

A sua poesia é, por isso, particular devido ao pensamento que aponta para uma certa arte de viver para a geração nova. “Sinto cada vez mais que o meu papel, enquanto envelheço, é não me atravessar no caminho das novas gerações. Estou cansado de viver num mundo em que um velho de 70 e tal anos me diz o que vai ser o futuro. Um cabrão que não vai viver nem mais 20 anos. Prefiro ouvir de uma pessoa que ainda tem 60 ou 70 anos pela frente sobre como vai ser o futuro, porque eles têm muito mais em jogo, estão mais investidos. Interessa-lhes muito mais corrigir o que está mal.”

Não se coíbe, claro, de fazer a sua parte: “Eu não acho que tenha alguma resposta. Tenho ideias. Tenho algumas sugestões, de cenas que valham a pena tomar atenção, mas não sou eu que vou resolver esta merda. Eu sou o gajo que te diz que a casa está a arder, não sou o bombeiro”. E isto é transversal ao que ouve na música hoje em dia, em que destaca o trabalho da “Moor Mother, que anda a fazer cenas ridículas [de boas]”, ou de rappers como Fatboi Sharif. E arrisca mais: “Eu acho que estamos a atravessar uma daquelas épocas douradas, mesmo, onde há tanta cena boa a aparecer e a acontecer. Vivemos uma era em que o género de música importa cada vez menos. É cada vez mais sobre expressares-te, criares com o que quiseres e criares arte. E eu acho isso lindo, meu.”

Essa sempre foi a sua ideologia, de resto, apesar das caixas em que tentaram fechar Dälek ao longo dos anos: “até com os nossos fãs isso acontece, mesmo que a nossa cena seja abstracta e sobre explorar novas direcções. Há N gente que vem ter comigo a dizer que curte o Absence e a perguntar porque não faço mais cenas assim. Eu também gostei de fazer o disco, mas eu mudei, quero fazer cenas novas. Se gostaste do disco, boa, ele existe e podes ouvi-lo quando quiseres também. Enquanto artista, quero continuar a avançar, a explorar e a crescer. Não tenho interesse em fazer coisas que já fiz há 20 anos.”



[Precipício e método]

Ao longo de mais de 20 anos, “o que é esta merda” é possivelmente a frase mais ouvida num concerto de Dälek. Essa ou o clássico “isto é o tipo de hip hop de que eu gosto”. É uma situação contextual, acima de tudo, mas que só é possível graças à toada específica de Brooks e companhia, que os levou a ser aceites em comunidades menos dadas ao rap. Foi assim, também, que chegaram a fazer digressões com Tool (“a grande maioria odiava o nosso som, mas havia sempre um grupo de pessoal que nos sentia”), ou fazer primeiras partes de artistas tão díspares quanto os pesos pesados mais elásticos dos últimos 30 anos Melvins, os Tomahawk de Mike Patton ou os Pharcyde (que, apesar de serem históricos do hip hop west coast, cumpriam melhor as expectativas sonoras do género). É também um currículo que lhes permitiu ir ao Amplifest sem levantar sobrolhos, dado o invejável currículo que construíram em mais de duas décadas de estrada. “Eu sei que o nosso som bate mais para alguma malta que curte música pesada, mas também acho que sempre fomos aceites por alguma malta que vem de tribos diferentes. Para mim é simples: quem quer que curta a nossa cena, eu estou bem com isso.”

O denominador comum é o de Dälek destoar sempre, de uma forma ou de outra, mas de aqui e ali ir captando atenções. O mesmo acontece quando colaborações com os krauters Faust se proporcionam e elevam a fasquia ao ponto de nomes como Vindsval, timoneiro principal do grupo de black metal francês Blut Aus Nord, os apontar como colaboração de sonho em entrevistas. Aí, os horizontes do hip hop, e da sua maneira de o fazer, se expandem cada vez mais: “Eu quero entrar no máximo de ouvidos possível, tocar para o máximo de pessoas possível. E fiz muitos concertos em que putos perguntavam mesmo ‘que merda é esta’. Essa é a parte divertida de tocar. Para mim, é sempre um desafio, lançar-me para a frente das pessoas, encontrar a minha tribo… tocava para dezenas ou centenas de pessoas, e se calhar só cinco é que curtiam. E ‘tá-se bem, essa é a ideologia a que sempre me agarrei.”

Isto é parte do processo e do método Dälek. Também não é diferente daquilo que ensina a cultura hip hop. “Claro que o hip hop se tornou um produto comerciável, mas é uma árvore com tantas ramificações… é por isso que eu digo: o que eu faço é puramente hip hop, porque fazer hip hop é pegar no que te rodeia e criar algo de novo. Quando era puto, o pior que te podiam chamar era ‘biter’, alguém que estava a copiar o estilo de outra pessoa. Tinhas de inventar as tuas próprias merdas.”

Isto levou a que Dälek se tornasse num corpo disforme e único, muito enformado pelas circunstância em que criavam. “Quando comecei, eu não entendia sampling, não percebia como funcionava e não tinha um conhecimento musical profundo o suficiente para saber onde é que os meus artistas preferidos iam buscar as cenas deles. Não sabia que eram bocados de discos jazz incríveis, porque eu não era versado em jazz. Só bem mais tarde é que comecei a ouvir essas cenas e tinha aquele momento de ‘espera lá, isto é Freddie Hubbard. É a parte toda da música dele naquela malha”. Quando cheguei a esse ponto, eu já estava a criar e a produzir à minha maneira. Eu não tirava loops, tirava pequenos sons e mexia-lhes até criar a minha cena com eles. E ainda bem que não samplei da maneira dita correcta.”

Precipice chega num momento de especial para a carreira de Brooks, que se encontra num ponto de acesso à tecnologia, conhecimento e cultura ideal para fazer os melhores trabalhos possíveis. Não seria eufemismo dizer que, apesar de uma carreira de qualidade ímpar, o mais recente disco é o melhor da banda. “Parte da definição do nosso som foi a nossa experiência e o processo a criar, a outra parte foi tecnológica. Estamos no ponto ideal, nesse aspecto”, explica. “E, claro, a minha voz também me soa melhor agora do que alguma vez soou. Tudo isso é uma combinação de material e conhecimento, onde temos cada vez menos obstáculos para criar a nossa música à nossa maneira. Estou cada vez mais satisfeito com os resultados do que fazemos. Agora parece que soa tudo em 3D, e a música envolve-te. Tenho muito orgulho nisso.”

Se a cena de DJ Screw era o chopped and screwd, a cena de Dälek, segundo o próprio, é “skewed”, ou torta. Pela forma como sempre foi tudo feito, do sampling errado às fontes de inspiração, que iam do metal, ao shoegaze, na própria duração das suas canções, ora com malhas de 10 minutos, ora com paisagens noise e ambient de mero minuto, e até na forma como os discos eram feitos. “Lembro-me de quando lançámos o primeiro álbum, o pessoal dizia que era um EP. Só tinha 35 minutos, era o argumento. E os Slayer? Os álbuns deles duram 30 minutos, estás a perceber? Olhem os discos de punk todos. Malhas de 2 minutos, dizes a tua cenas, entras e sais, e está feito. Duração não me interessa. Um álbum, para mim, é um conceito. Não de ser uma colecção aleatória de canções. Cada peça está lá por uma razão.”

O próprio processo usado em Precipice demonstra uma certa plasticidade na maneira de estar de Dälek que lhes permite esta evolução constante. O próprio Brooks diz “não [estar] casado com nenhum método específico”, interessando-se menos por créditos, mas por resultados e pelo que “encaixa globalmente no álbum”. Este disco em particular viveu duas fases separadas pela pandemia da Covid-19. Da primeira para a segunda sobreviveu o trabalho lírico de MC dälek e pouco mais: “Foram dois anos sem podermos trabalhar juntos. Quando nos juntámos, o álbum não soava ao que devia, então recomeçámos o processo, partimos o disco todo e começámos a juntar as peças de novo. No fim, tudo acabou por ser feito no estúdio ao longo de dois dias.”

O resultado é muito Dälek, claro, mas com algumas surpresas — e não exactamente novidades — nomeadamente na guitarra a tomar um crescente espaço no espectro sonoro do álbum. Inclusive, Adam Jones, guitarrista dos Tool, empresta as suas cordas para este disco, mas sempre numa forma insofismavelmente dälek, e de acordo com o que sempre foi a forma da banda criar som. “Nós tratamos as guitarras como qualquer outra fonte de som que usamos na nossa música. É sobre manipular sons e criar sons novos. Às vezes nem consegues perceber se o que ouves é uma guitarra ou um synth de tanto que manipulámos a cena”. Brooks ainda nos conta ao ponto a que vão com o tratamento de som, que pode passar por gravar um trecho para uma música, samplá-lo, retrabalhá-lo e só depois incluí-lo na mistura final. Porventura, neste disco, a forma de trabalhar o som foi menos óbvia, resultando em camadas mais claras de cordas. De resto, este mesmo tratamento foi dado a Jones. “[O Adam] acrescentou umas cenas noise de guitarra, alguns synths, mas soa tudo a Dälek. Apanhei pessoal online a queixar-se de que nem sabem o que ele toca… o propósito é esse mesmo! Para que é que servia ter o Adam Jones de Tool a fazer um solo dedilhado de guitarra numa malha de Dälek?”



[Sobre heranças roubadas e recomeçar na era pós-Trump]

“Recomeçar Dälek foi algo orgânico”, conta-nos. “A malta vinha aos gigs de iconAclass [projecto boom bap que Will Brooks começou aquando do hiato de Dälek] e pedia-nos para tocar malhas de Dälek. Eu não aceito pedidos, mas a certa altura, num ou outro encore, começámos a tocar algumas cenas e isso despertou algo em mim. Eu adoro estas músicas, e sentia falta do ruído, do peso todo, da experiência e diálogo que envolve a cena”. Foi num concerto de The Bug em Nova Iorque que o reencontro com DJ Octopus, principal produtor da primeira vida de Dälek, e o diálogo sobre reerguer a parede de som deu-se. Se Octopus já estava numa frequência diferente, a de Will Brooks mantinha-se fiel ao espírito de Dälek. “ [O Octopus] percebeu que era uma cena que eu queria fazer, e sabia que eu não o ia fazer de uma forma que não fosse respeitosa para o que criámos juntos. Começou tudo bem.”

Deste reerguer em 2015 e agora acompanhado de Mike Manteca na produção, surgiu Asphalt for Eden, disco que saiu no ano da eleição de Trump. “O disco saiu antes da eleição desse pedaço de merda. Nós começámos a tour de promoção do disco no dia a seguir às eleições. Lembro-me de entrar na carrinha e de olhar para o resto do pessoal… nós nem queríamos acreditar. ‘Que merda é que está acontecer?’ Essa digressão foi uma loucura. Sentir o clima do país nessa altura… nós vivíamos em Nova Jérsia, em Nova Iorque. Era uma bolha, não tem nada a ver com o resto do país. Fazer uma digressão nessa altura e ver o que se passava lá fez todo o sentido. Percebi que sim, não era tudo sobre esse merdas. Havia malta que de repente se sentiu validada por ele. Houve muito dessa merda na tour. Foi muito, muito pesado. E vimos sítios muito feios.”

Os discos que se seguiram foram, por isso, mais informados pela experiência de viver numa era validada pelo agora antigo presidente americano, em que desinformação, ignorância e preconceito passam a ser validados pelas mais altas instâncias governamentais, assim como pelos meios de comunicação americanos. Endagered Philosophies e este novo Precipice são, por isso, mais afiados e direcionados na linguagem que usam. “Eu sempre disse que os meus discos são mais como terapia para mim do que outra coisa qualquer.”

Há nessa frase (que foi seguida pelo fascínio que Brooks sente pela conexão que as letras podem criar com um outro) uma dose de realidade que já se encontrava na vida passada de Dälek, uma série de experiências que descrevem a sua relação com a sua cultura, com a sua geografia, e com realidades distintas. “Dentro do capitalismo, podes criar uma vida maravilhosa para ti e para a tua família, mas dentro de um estado que foi criado em torno de estruturas esclavagistas e racistas… o dinheiro só te pode levar até certo ponto. Não compra as outras pessoas olharem para ti como um ser humano. Eu não consigo fazer um branco racista olhar para mim como sendo igual a ele. Isso está na cabeça deles e não tem nada a ver com dinheiro ou com classe. Concordo que a raça é uma construção social para dividir as pessoas, mas já estamos bem além desse ponto. A quantidade de dinheiro que tens no banco não muda o facto de a polícia te mandar parar pela tua cor antes de saber quem és. Esse segundo em que apontam a arma para ti, antes de saberem qual é a tua conta bancária, e te gritam para mostrar os documentos, mãos ao ar. Continuas a ser um gajo negro nos Estados Unidos.”

E esta realidade transita para outros tantos aspectos da vida na América e da cultura de Brooks. “Essa é a história de toda a música negra que se tornou grande nos Estados Unidos. Ser retirada das comunidades negras e latinas — porque o hip hop começa em Nova Iorque criado por negros e latinos. Até certo ponto, eu não estou chateado com a cena toda. Parte da criação de um ‘produto’ é necessária para a música florescer e crescer. Senão, é só uma cena de bairro e ninguém teria ouvido hip hop. O facto de a cena se ter tornado num fenómeno corporativo mundial é incrível, para mim. O lado mau é que esse dinheiro não ficou na comunidade, vai para operações que são conduzidas por malta de fora da comunidade. É um problema americano, provavelmente, mas é absolutamente um problema capitalista. É assim com todos os géneros. Toda a música criada foi explorada e transformada em pop, basicamente.”

“Lembro-me de que nas primeiras vezes que vim a Portugal e Espanha o pessoal agia como se não houvesse racismo aqui. Como é que alguém pode pensar algo assim? A única razão porque falo espanhol é por causa do colonialismo. Eu não falo espanhol porque sou espanhol. A minha família é das Honduras. Lembro-me de estar nos Países Baixos e de a malta agir como se não tivesse nada a ver com o comércio transatlântico de escravos. Não dá para apagar estas merdas O pessoal quer fingir que não aconteceu”, atira sem hesitar. “Há uma razão para nós estarmos na situação em que estamos, e é por causa de tudo o que aconteceu antes. Não tiveste escravos? Quem disse que tiveste? Isso nem interessa. O que interessa é admitir que a posição privilegiada em que te encontras foi construída sobre uma estrutura esclavagista. E que a riqueza acumulada foi tirada de um povo e filtrada para outro. Não importa que sejas rico, ou não, simplesmente quer dizer que tens muito mais oportunidades do que alguém diferente, ou vindo de outra comunidade.”

Contudo, como já havia dito antes, Will Brooks permanece um tipo positivo. “Durante a pandemia, com a cena do George Floyd e toda a violência policial nos Estados Unidos, eu e a minha mulher fomos a uma das manifestações que estavam a acontecer por todo o país. Fui a uma em Union City, Nova Jérsia. Tinha umas 100 pessoas, mas também não era uma grande cidade. Foi organizada por miúdos do secundário, basicamente, que no final da marcha discursaram. Eu fiquei deslumbrado, meu. A eloquência deles, o quão maduras eram as ideias, o conhecimento do mundo no geral que as palavras deles tinham… eu virei-me para a minha esposa e disse: ‘eu acho que vamos ficar bem’.”


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