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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/04/2017

O segundo álbum da banda foi lançado há 20 anos. Manuel Rodrigues assina o ensaio.

Da Weasel – 3º Capítulo: uma questão de identidade

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/04/2017

“Desculpa lá, dread, se não nasci no gueto. Desculpa lá se a pele da minha cara é muito clara para me achares um verdadeiro preto”. As palavras de Pacman em “Cachimbo da Paz”, tema que encerra 3º Capítulo numa toada spoken word, ajudam-nos a perceber o cariz do discurso que percorre o álbum de ponta a ponta. Carlos Nobre não cresceu num bairro degradado, apesar de ter vivido numa cidade com os seus naturais problemas em torno da delinquência e toxicodependência, por isso, não seria de esperar que o seu discurso fosse o de um jovem oprimido e marginalizado, como era comum encontrar em grande parte do rap oriundo de zonas como o Miratejo e Arrentela. Quando ouvimos “Casos de Polícia”, canção que nos conta a história de um jovem que foi espancado pela polícia por ter sido apanhado a urinar na rua, muito dificilmente a associamos a um clima de tensão de gueto, mas sim à estupidez de um agente da autoridade que decidiu descarregar a raiva sobre um rapaz que infringia a lei. E essa é uma condição inerente ao bairro e à grande cidade.

3º Capítulo, ao contrário de Dou-lhe Com a Alma, é um álbum bastante maduro nas temáticas abordadas. De modo geral, coloca de parte os chavões “yo”, “confirmar”, “representar” e “na área”, próprios de quem ainda procura uma posição nas suas letras, para arriscar questionar e criticar a sociedade em temas como “Toda a Gente”, canção que, por mais anos que passem, continua a fazer sentido. O seu carácter intemporal é, aliás, assustador. Cafés virtuais onde muito se fala e pouco se faz, povoados por soldados de teclados e monitores em riste; preocupações e indignações caducas que em muito fazem lembrar a unanimidade duvidosa da “situação em Timor” que a letra da canção nos fala; e a vontade de nos adaptarmos aos tempos modernos sem procurar descartar a mentalidade tacanha e conservadora que em muito nos distingue. No próprio videoclipe do tema, que nos traz à memória os tempos do canal Sol Música, há uma cena em que podemos ver Pacman a sacar de uma polaroid para tirar uma selfie, acção essa que vai ao encontro do presente e de toda a manifestação do eu nas redes sociais. Assustador, não é?



Todavia, e apesar de ser possível descobrir em 3º Capítulo vários retratos da sociedade, sempre com um sentido crítico e observador, não é apenas disso que o álbum versa. Nele, podemos encontrar várias canções que evidenciam a capacidade de Pacman divagar por entre temáticas abstractas, como servem de exemplo “Contador de Histórias”, “Para a Nóia” e “Pregos”, que nos cola o ouvido ao viciante refrão “pai nosso que estais no céu, sei que falo contigo do lugar do réu / mas preciso de algo para sarar a minha chaga, já agora diz-me: tens aí alguma vaga?”. O seu à vontade a nível de rima, métrica e flow é também notável, separando-se do esquema mais básico e directo presente em Dou-lhe Com a Alma, e aproximando-se, assim, da identidade que o episódio seguinte, Iniciação a Uma Vida Banal – O Manual, coloca em evidência. “(No Princípio Era) O Verbo”, canção que abre o terceiro álbum de longa-duração do colectivo, é uma evolução clara desse exercitar da palavra.

Regressemos a 3º Capítulo, mais precisamente a “Dúia”, provavelmente o maior cartão de visita para as restantes músicas do álbum. Foi através desta balada, guiada essencialmente pela voz de Virgul (talvez a sua primeira grande aventura nos meandros da soul…), que muitos conheceram os Da Weasel – terá sido, igualmente, através desta balada, que muitos casais cimentaram as suas relações. Ainda hoje, os compassos das baquetas de Guilherme Silva, nos primeiros segundos da música, são inconfundíveis e trazem consigo os acordes da guitarra de Quaresma e do Fender Rhodes de João Gomes (participação especial), a harmonia do baixo de Jay Jay e a melodia de trompete de Laurent Filipe (participação especial), numa miscelânea que não é hip hop nem reggae nem soul. É a combinação perfeita entre rima, ritmo e refrão – uma mistura que conseguiu contagiar tudo e todos (não foram poucas as vezes que “Dúia” integrou os alinhamentos da doninha nas sua digressões por esses palcos de norte a sul de Portugal).



A faceta indefinida dos Da Weasel que, ao longo dos seus dezassete anos de existência, levou a que fosse quase impossível engavetá-los nas categorias mais generalistas da música, está bastante saliente em 3º Capítulo, principalmente no segundo disco, o de remisturas. Enquanto “Dúia (remix)” explora sonoridades – essas sim – claramente ligadas ao reggae, “Para a Nóia (remix)” dá asas ao imaginário industrial do colectivo, com direito a experimentações rítmicas e melódicas (Armando Teixeira nas máquinas?). Se juntarmos a isto tudo os baixos distorcidos de Jay Jay, que facilmente nos transportam para universos rock, obtemos uma salada complexa que vai buscar ingredientes aos mais variados estilos, sem nunca procurar uma categorização apenas. O mesmo acontece com os temas abordados. 3º Capítulo é, por isso, uma obra bastante heterogénea, pois consegue, de modo exímio, varrer todo ou quase todo o universo latente no código genético do colectivo. More Than 30 Motherf***s e Dou-lhe Com a Alma serviram de alicerces à identidade da doninha, mas foi apenas em 3º Capítulo que ela se edificou. Um simples exercício de quiromancia à capa do álbum diz-nos isso mesmo. Experimentem.


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