O Teatro do Bairro Alto recebe este fim-de-semana, dias 6 e 7 de Dezembro, o evento “Da Roda Que Não Tem Fim – Imaginação Radical como Gesto Contínuo”, onde práticas artísticas, pensamento e som se entrelaçam.
Inspirado pelas cosmologias de Nêgo Bispo, pelos ritmos espiralares de Leda Maria Martins e pelas ficções visionárias de Octavia Butler e Ursula K. Le Guin, esta iniciativa propõe formar um espaço de criação partilhada que privilegia a não-linearidade, o encontro e a experimentação. A programação, distinta em cada dia mas em diálogo permanente, expande-se das artes performativas à música. Em ambos os dias haverá uma refeição conjunta preparada por uma cozinha convidada.
Ao primeiro dia, no sábado, 6 de Dezembro, sob o mote “Boda Especulativa: Palavra-Gesto no Tempo Espiralar”, o TBA reúne criações individuais e colaborações que convocam o corpo, o som e a ficção como motores de futuro. Entre os destaques estão DJ Nervoso, figura central da música de dança contemporânea, e performances de Odete, Moikana, G Fema, Wura Moraes, Mandi Kaibô, Sara Fonseca da Graça e Selma Mylene, além do desenho de luz do colectivo matéria leve. O programa propõe um ambiente cerimonial onde palavras e ritmos se tornam sementes, abrindo espaço à especulação como prática artística e política.
No segundo dia, domingo, 7 de Dezembro, o eixo desloca-se para um território mais festivo sob o tema “Carnaval: Órbitas e Desordem”. A programação convoca o maracatu combativo do Baque Mulher Lisboa, a voz da versátil cantora Carolina Varela e a força lírica de G Fema, contando também com as presenças de Isabél Zuaa, Joyce Souza, Cláudia Semedo, Eloïse Grace Winter, Joãozinho da Costa e o Frame Colectivo. Entre as propostas desta derradeira sessão está um dos momentos mais importantes de todo o ciclo: será criada uma assembleia para reforçar a dimensão comunitária e política deste encontro.
Yaw Tembe, programador do Teatro do Bairro Alto, respondeu a algumas perguntas lançadas pelo Rimas e Batidas como forma de antecipar este “Da Roda Que Não Tem Fim”.
O programa propõe uma ocupação de quatro horas, sem linearidade nem obrigatoriedade de permanência. Como é que esta lógica de “tempo aberto” e de circulação livre desafia o modelo clássico de receção artística? E que tensões antecipam entre essa liberdade e a necessidade de criar experiências com impacto sensorial e conceptual?
O programa “Roda que não tem fim – Imaginação radical como gesto contínuo” convida o público a uma estadia de aproximadamente quatro horas na sala principal do TBA, nos dias 6 e 7 de dezembro. Cada dia terá uma programação própria e um conjunto de artistas diferente, reunindo propostas artísticas de teatro, dança, performance, música e conversas, com um momento final de refeição partilhada. Serão sessões contínuas sem paragens entre as propostas e o público pode entrar e sair a qualquer momento. Sendo o TBA um teatro direcionado à experimentação e tendo este programa como uma das principais inspirações as ideias de Leda Maria Martins sobre performance teatral e tempo espiralar, pensámos a programação não como um bloco linear de quatro horas de apresentações (uma sequência de “começo, meio e fim”), mas como uma espiral temporal. Cada performance e artista não apenas sucede ao seguinte, mas ecoam e se entrelaçam ao longo do tempo, criando uma continuidade não linear em que passado, presente e futuro coexistem na experiência do público. A intenção, dirigida para quem cria e assiste, é que as diferentes intervenções se tornem ritos vivos, experiências de temporalidades múltiplas, de ressignificação e de reconexão. Pretende-se que a cena deixe de ser apenas espetáculo e torne-se espaço de consciência, memória e criação.
Reúnem-se criadores de disciplinas muito distintas — da dança à joalharia, da música à arquitetura. De que forma a curadoria articula esta heterogeneidade numa ideia concreta de “imaginação radical”? A multiplicidade de linguagens potencia uma visão comum ou arrisca fragmentar a experiência?
Ao reunir criadores de áreas tão distintas procuramos abrir um espaço onde diferentes vozes, perspetivas e sensibilidades possam coexistir, friccionar-se e fertilizar-se mutuamente. Essa diversidade, no nosso entender, não fragmenta a experiência; pelo contrário, amplia-a e expande-a. A multiplicidade de linguagens não é um desafio a contornar, mas, sim, a própria condição da imaginação radical e é isso que temos feito ao longo deste ano. Esta temática que atravessou a programação de discurso em 2025, alastra-se agora também à programação de artes performativas e música. Ao cruzar tantas disciplinas para este evento, estamos a nutrir espaços de escuta coletiva e de fazer-junto, onde o risco é partilhado e onde a possibilidade de mudança nasce precisamente desse gesto coletivo. A imaginação radical não é um conceito fechado; é um convite à expansão, à abertura de futuros diversos e ainda por definir. É isso que este encontro celebra. A arte é, para nós, um território privilegiado para o exercício do pensamento crítico e da liberdade, um lugar onde se questiona o presente e se arriscam outras formas de ver e de criar futuros. Quando colocamos estas práticas em relação, estamos a potenciar encontros que desafiam paradigmas, que geram fricções positivas e que criam condições para que novos modos de imaginar — e de imaginar-nos — possam emergir.
Este ciclo surge como o culminar de um ano dedicado à imaginação radical no TBA. Que aprendizagens ou fricções marcaram este percurso? E que diferenças surgem quando se tenta transportar esse debate das esferas discursivas para a materialidade do gesto performativo?
O gesto performativo já habitava a programação sobre imaginação radical ao longo deste ano. Nas assembleias, nas conferências-performances e nas conversas performativas, o gesto já se encontrava presente: a dimensão da palavra, do discurso, partilhava lugar com outras dimensões como o som, a performance e as imagens. O que agora acontece ao convocar a programação de artes performativas e música, juntando-a à temática que a programação de discurso tem vindo a desenvolver, é que ampliamos o campo: trazemos outras linguagens, outras complexidades e outras camadas, permitindo reunir mais pessoas, mais áreas e mais práticas. Essa expansão possibilita encontros inesperados e fortalece o carácter experimental do projeto.
O percurso deste ano mostrou-nos que a imaginação radical não existe apenas como ideia ou reflexão teórica — ela exige prática, relação e tempo partilhado. As assembleias, conversas performativas e conferências-performance permitiram nos perceber que imaginar futuros é também um exercício de escuta, de negociação e de reconfiguração das formas como habitamos o presente. A materialidade do performativo permite experimentar outras temporalidades e outras lógicas de fazer e pensar. Quanto às aprendizagens e fricções, houve várias: a dificuldade de imaginar para além do presente, o desafio de radicalizar a imaginação para potencializar a expansão, ou as diferentes leituras do conceito — ora de forma mais onírica e abstrata, ora de modo mais político e de ação. Consideramos isso positivo: a imaginação não é um conceito estanque, exige ação, prática e risco. Ao juntar todos estes modos de estar e fazer, potenciamos um território conceptual que é simultaneamente aberto, compartilhado e em constante transformação.
Há uma aposta clara em momentos de assembleia, convívio e refeição enquanto parte da proposta artística. Estas camadas comunitárias visam reconfigurar o papel do espectador? Estão a tentar desestabilizar o formato “espetáculo” rumo a algo mais ritual, social ou político? Que riscos também existem nessa aproximação?
Esta proposta surgiu a partir do formato de “assembleia” que o programa de discurso do TBA tem apresentado sempre que inicia um novo ciclo temático. A intenção de integrar propostas artísticas com momentos de caráter mais discursivo, de convívio e de partilha de uma refeição nasce do desejo de ampliar o conceito de teatro como espaço comum. Ao colocar público e artistas em círculo, elimina-se a lógica frontal e hierárquica do espetáculo tradicional. Essa configuração, tanto espacial quanto simbólica, procura não apenas reconfigurar o papel do público, deslocando-o de uma posição passiva para um espaço de criação de relações, mas também afirmar o encontro como matéria artística em si. Um bem compartilhado, que se pretende simultaneamente afetivo e disruptivo. Como sugere Mandi Kaibô na sua proposta para este evento, um excerto do texto da Andreone Medrado: “Con.fiar, que vem de com fiar, fiar o tecido dos vínculos, construir a rede de afetos, tecer o (im)possível, fiar a vida. (…) Comfiar pede vontade, presença, desejo e afeto.” O risco ocupa uma posição central nesta proposta. Trabalhamos com a ideia de que o risco de falhar, de quebrar expectativas e de não se adequar a modelos conhecidos é um dos motores de criação. Queremos colocá-lo no centro, não como acidente, mas como condição produtiva, algo capaz de expandir a experiência coletiva. Acreditamos que o risco permite que o comum deixe de ser apenas uma imagem harmoniosa e se torne um campo de fricção, de negociações e de transformações.
A programação evoca estruturas espiralares, cosmologias alternativas e referências a imaginários especulativos. Como é que esta dimensão utópica se relaciona com as realidades concretas — de identidade, raça, género, classe — dos artistas envolvidos e do público? Onde é que situam o gesto político desta “imaginação radical”?
Essas estruturas espirais, cosmologias e imaginários especulativos fazem parte das realidades concretas de quem as convoca e procura. No entanto, devido ao desenrolar de várias forças hegemónicas na história do mundo ocidental, como a supremacia do pensamento lógico-verbal, o colonialismo, a prevalência de estruturas patriarcais e a compartimentalização social, enquanto sociedade temos suprimido o acesso a essas formas de imaginação. Por isso, é natural que encontremos o exercício dessa imaginação em contextos alternativos que procuram desconstruir noções rígidas e fixas de identidade. A espiral surge, então, como metáfora de um movimento contínuo; experienciar o mundo a partir dessa fluidez é um gesto político.
Cada dia do programa é irrepetível, com colaborações e encontros que só existem naquele instante. Como pensam o legado desse carácter efémero? A ausência de um arquivo fixo é um gesto deliberado ou um risco inevitável? E de que forma esperam que estas micro-comunidades temporárias sobrevivam para além do momento performativo?
Cada pessoa ou coletivo convidado possui um percurso consistente, profundamente ligado ao contexto e às comunidades em que atua, muitas vezes em lugares onde existir e resistir são sinónimos. Tratam-se de existências porosas e fluidas, que valorizam o encontro. O gesto curatorial aqui consistiu, sobretudo, em aproximar contextos, tanto através de uma lógica de continuidade e proximidade proposta pelo evento, como pelo convite à colaboração entre diferentes artistas. Exemplos disso são as colaborações que reúnem a rapper G Fema, a atriz e dramaturga Isabél Zuaa, e a cantora e performer Carolina Varela: três artistas interessadas em narrar histórias da presença da diáspora africana em diferentes territórios, a partir do olhar de várias mulheres. Outro encontro é o das coreógrafas e bailarinas Selma Mylene e Moikana com o DJ Nervoso, focado na tradição rítmica africana transportada para a pista de dança, na sua relação com o clubbing, o kuduro e a batida, espaços que têm a capacidade para nos transportar para outras dimensões suprassensíveis. Há ainda a parceria entre a artista e educadora transdisciplinar Joyce Souza e o grupo Baque Mulher Lisboa, coletivo ancorado na tradição musical e ritual afro-brasileira do maracatu, que, na sua performance, evocam outras perspectivas sobre a ideia de fim. Se pensarmos no título que dá forma e movimento a este evento-celebração “da roda que não tem fim” parte de uma frase do mestre quilombola Nêgo Bispo, para quem o fim é circularidade, continuidade, recomeço. Como Nêgo Bispo disse: “Nós somos o começo, o meio e o começo”.