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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 28/05/2025

Uma cartografia sónica entre minerais raros e paisagens em dissolução.

Cristalizações Invisíveis de Emil Saiz

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 28/05/2025

[1. As primeiras fissuras do quartzo emocional]

A música de Emil Saiz é uma forma de geologia afectiva. Nela, cada acorde reverbera como se estivesse a ser libertado de uma fenda tectónica interior, onde a pressão emocional sedimentada durante anos encontra por fim um canal de fuga. Assim como os minerais raros se formam em condições extremas de calor e pressão, também os sons que Saiz extrai da guitarra eléctrica nascem de um lugar de tensão meditativa e catártica.

[2. Geometrias de ressonância: drones e melodias em erupção]

No álbum Cycles of Disappearance, as faixas surgem como estruturas metamórficas, onde a forma é constantemente desfeita e recriada. O som comporta-se como uma massa magmática em mutação, por vezes mineralizando-se em drones colossais, outras vezes sublimando-se em melodias evanescentes. A guitarra não é aqui um instrumento, mas um sismógrafo emocional, registando os abalos internos do corpo e da mente com minúcia cristalina.

[3. Silêncios tectónicos e placas em atrito]

Os momentos de quietude são como zonas de subducção: superfícies enganosamente calmas onde, debaixo da pele sonora, se acumulam forças latentes prontas a deslocar-se. Esta dinâmica é a chave para entender a visceralidade cinética da sua obra, onde a energia contida é libertada em vagas de distorção granulada, como se um feldspato auditivo se fragmentasse ao contacto com o tempo.

[4. Rubis invisíveis no lodo digital]

A edição de Cycles of Disappearance pela Ruby Harvest não é apenas um gesto editorial, mas uma declaração alquímica: transformar o som em rubis. A rubescência aqui é simbólica, invocando a raridade, o brilho oculto sob a superfície turva do quotidiano. Emil Saiz propõe um garimpo auditivo, onde cada ouvinte é convidado a mergulhar em camadas de ruído, reverberação e textura para encontrar as suas próprias gemas sensoriais.

[5. Cartografias subaquáticas: a coreografia dos minerais em suspensão]

Em The Dance of the Witches, a performance audiovisual com filmes de Jean Painlevé, Saiz transforma o palco num aquário cristalizado. Os sons movem-se como particulados minerais em suspensão, numa coreografia invisível entre a luz e a densidade líquida do ecrã. A guitarra torna-se um organismo bioacústico, um ser híbrido capaz de comunicar com ecossistemas sonoros desconhecidos.

[6. A rarefacção como forma de presença]

“AFFECT/REFLECT” é o primeiro testemunho registado desta filosofia do som. Uma meditação de 18 minutos onde cada frequência age como uma impureza deliberada no cristal auditivo, provocando desvios, dispersões e reflexos inesperados. A obra refuta a ideia de perfeição, preferindo uma estética de falha sólida, onde o som não se fecha, mas se expande por fendas e fracturas.

[7. Um atlas de ocorrências raras: colaborações como minerais nativos]

Emil Saiz não actua em isolamento. As suas colaborações com artistas como Niño de Elche, Christina Rosenvinge ou Suso Saiz são como cristalizações espontâneas de elementos nativos que partilham condições geológicas semelhantes. Em palco ou estúdio, o que emerge são formações inéditas, paisagens de som erigidas por afinidade vibratória, por mineralogia emocional partilhada.

[8. Museus e abismos: onde o som ecoa entre os veios do tempo]

Ao actuar em instituições como o Guggenheim, o Reina Sofía ou o MACBA, Saiz inscreve a sua obra numa geologia cultural. A sua presença não é apenas musical, mas tectónica: desloca os veios do que se entende por performance, misturando o efémero com o permanente, a instalação com o concerto, o ritual com a experiência. A sua música é uma câmara magmática de possibilidades.

[9. Mineralogia do porvir]

A obra de Emil Saiz aponta para uma musicologia por vir: uma ciência do som que não se baseia na harmonia, mas na fricção; que não se ancora em escalas, mas em estados de matéria sensível. Como os minerais raros, a sua música desafia classificações, desloca-se entre categorias, dissolvendo as fronteiras entre composição, improvisação e instalação sonora. O que emerge é uma arte sólida e volátil, como uma ametista prestes a vaporizar-se.

Emil Saiz não toca guitarra. Ele mineraliza o ar.



[Crítica Musicológica-Poética a Cycles of Disappearance, de Emil Saiz]
Entre a erosão e o éter, um disco que se desfaz enquanto nos molda

Há discos que se ouvem.
Outros que se atravessam.
Cycles of Disappearance é geologia em evaporação — uma travessia por terrenos onde o som é mineral e o tempo, areia fina entre os dedos da consciência.

Emil Saiz não compôs um álbum: escavou-o. Cada faixa é uma jazida de matéria sonora em mutação. Como mica exposta ao vento, as guitarras resplandecem, fragmentam-se, reencontram-se noutro estado de agregação. Não há forma definitiva. Tudo se desfaz. Tudo é retorno ao magma da dúvida.

[“Mirror Reverse”]

Começa como um espelho líquido que reflecte a dúvida do corpo. A guitarra ecoa como um sussurro que já foi grito, ou um grito que nunca chegou a sê-lo. Saiz faz do reverso o seu habitat: o som aqui inverte-se, curva-se sobre si mesmo como uma serpentina de cristal a derreter no silêncio.

[“Resonare”]

“Resonare” não ressoa — ressurge. Há algo de sismológico neste segundo movimento: as cordas são placas em atrito, deslizando com lentidão cósmica. É um canto de fricção, de combustão controlada. Um ritual onde o som se torna calor, e o calor se torna memória. Cada nota é um vestígio, um fóssil auditivo deixado ao acaso num leito de feedback.

[“Sometimes the Moon”]

Aqui, o tempo é uma maré de melancolia. Saiz constrói uma canção lunar que parece ter sido escrita por um satélite em órbita, a sussurrar canções de embalar a um planeta em febre. Os harmónicos soam como pedras polidas por séculos de ausência. A guitarra não fala — insinua.

[“Grounding Phase”]

Curto, mas telúrico. Esta fase de “aterramento” não se fixa ao chão — afunda-se nele. O som aqui é denso como hematite, com uma massa que arrasta o ouvinte para dentro de si. Tudo ressoa com uma gravidade subterrânea, como se escutássemos a electricidade de uma rocha viva.

[“All Gates Open”]

O último portal abre-se como um precipício lento. Esta faixa não fecha — desintegra. Saiz dissolve a música em estática, como se o ruído fosse a linguagem original do cosmos. A guitarra torna-se um espectro, movendo-se entre campos magnéticos esquecidos. O ouvinte, já sem corpo, é apenas um ouvido flutuante, entregue ao fulgor final.

[Conclusão: Sedimentação em solução de éter]

Cycles of Disappearance não é apenas um álbum — é um ensaio sobre a ausência, uma mineralogia do efémero. Emil Saiz trabalha o som como um alquimista tímido, escondido numa caverna digital onde o tempo escorre pelas paredes.

Cada faixa é um fragmento de âmbar sónico, a aprisionar instantes de introspecção num mundo demasiado ruidoso. E nós, escutando, desaparecemos um pouco. Para nos reencontrarmos depois — mais dispersos, mas talvez mais puros. Como um diamante que se perdeu de si mesmo.

Se este disco fosse um mineral, seria uma forma líquida de obsidiana.
Negra, cortante, brilhante — e impossível de segurar com as mãos.


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