“A inacção é o início da actividade da recuperação”: em palco, oito humanos perturbados sentam-se em círculo. Se a configuração da terapia de grupo — vulgo modelo Alcoólicos Anónimos — é um lugar-comum, renova-se em Could Be Worse: The Musical, onde é uma estase forçada.
“Uma reunião terapêutica de artistas anónimos” é a premissa do novo espectáculo do teatro Cão Solteiro, entre a insustentabilidade de ser artista no século XXI e o nonsense. PZ e Rodrigo Vaiapraia contribuem com música original, numa roda-viva de neurose, que é alumiada pelo néon da inquietação, e está em cena no Teatro Municipal São Luiz até este domingo.
“Olá, eu sou o Gonçalo e sou artista”: apresenta-se um bailarino em terror, em necessidade de imobilizar o pé, o culpado que lhe marca o ritmo. “Acho que nunca me tinha ido tão abaixo”, diz ao confessar a recaída: voltou “a contar tempos”, como quem quebrou uma década de sobriedade, ou fez uma linha. O arrependimento de Mariana, autora cujo ímpeto autobiográfico leva à crucificação familiar, é mais catártico. Expiou os pecados no desabafo, desde ter dormido com a mulher do irmão a ter “provocado uma gastroenterite aguda à [sua] sobrinha quando ela tinha cinco anos”. Prescrito o drama e rejeitados os pedidos de desculpa, ainda floresceu nela a ideia para um novo conto — e qual é o mal?
Há que cruzar os braços e dissolver a tentação, relembra o coordenador André, em igual medida paciente. Embora seja difícil, vai saber bem, prometem os axiomas da terapia. Momentos de tensão cortam-se com pausas para café, monólogos eléctricos convertem-se em canção. Afinal, já cantava Björk no malogrado Dancer in the Dark, “this is a musical”, onde nunca se deixa cair o corpo do colega.
“Se calhar podíamos só dar as mãos. Só por um bocadinho”, roga João, o novato que tenta ser a cola dum grupo que vem caindo em ruptura, enquanto ele próprio cogita ainda a razão para ali estar. O espectador pode comungar desse pensamento: o nervosismo-feito-tique e as espontâneas irrupções musicais são sintomas do quê? Um instinto criador deve ser, em vez de recompensado, causa para internamento?
Na peça do teatro Cão Solteiro e do realizador André Godinho, a analogia entre artista e adito serve (pelo menos) dois móbeis. Pode ser um preliminar para avaliar a conjuntura profissional: cantores, bailarinos, actores e dramaturgos são reduzidos ao denominador comum da precariedade. É aí que todos dão as mãos, num correctivo permitido pela solidariedade, a união da classe.
Visto por outro eixo, é uma chance para reflectir sobre a angústia e o prazer patológicos que decorrem da actividade artística. O processo de criar entremeia o êxtase com a descrença, resultando em obras que são próteses nossas naquele momento, e semanas mais tarde já são mementos datados. E é aí que se equaciona um senso humano de inevitabilidade: quando é que nos deixamos de consumir até ao osso? Tudo em nome dum produto que muitas vezes não nos sacia, e nos deixa em dívida com quem nos espera em casa — ou em dívida demasiado literal.
[Antes eram só croquetes]
“Não vejo outra forma de ser artista”, conta PZ — o ressonante pseudónimo de Paulo Zé Pimenta — ao Rimas e Batidas. Do primeiro disco (Anticorpos, de 2005) ao mais recente (Do Outro Lado, de 2019), o músico portuense atesta às tribulações vividamente plasmadas em Could Be Worse. Um trabalho que age como “forma de terapia constante com contornos sado-masoquistas. Que o diga o nosso ego…”
Tal como José Maria Vieira Mendes foi recrutado para o texto, a voz de “Croquetes” e “Olá” recebeu o convite do Cão Solteiro para conceber a música da peça “há volta de dois, três anos”. Questões de financiamento deixaram a “reunião terapêutica de artistas anónimos” em suspensão, até que, um ano depois, um telefonema despertou o cantautor. “Fiquei logo entusiasmado,” conta, rematando com uma espécie de frase feita do mundo artístico contemporâneo: “Até porque já nem estava a contar com esse trabalho…”
Trabalho esse que não foi só uma extensão do seu ofício natural, mas um compromisso. “Deram-me liberdade e queriam que eu fizesse músicas à PZ, mas ao mesmo tempo [que as adequasse] às personagens e à história.” Poucos solavancos com a companhia e muito “espírito construtivo” enformaram um cancioneiro diferente, onde há de tudo menos grandes números musicais.
Textualmente, são prototípicas “músicas à PZ”, num embrulho de new wave sebosa à anos 80. A balada trip-hop de “Sincericídio” emprega uma tessitura erótica para lamentar um tipo debilitante de honestidade. O caótico tema “Devaneios” palmilha as irritações do artista na sua aborrecida intimidade (“O meu quarto está um esterco”, a título de exemplo). Uma meditação sobre síndrome de impostor (“Será que fico ou que vou?”) ou, porque não, um revoltoso manifesto da food artist Paula (“Antes eram só croquetes/ Agora é frutas e canivetes”, séria candidata à mais orelhuda música portuguesa de 2020) aportam em cápsulas de funk escorreito.
Anti-showtunes que decompõem a panorâmica gloriosa e decadente que o tema-título invoca logo ao início — e, como qualquer ciclo vicioso, recupera no final: “Mas eu já sei, não vou perder o controlo de mim, senão começa de novo outra vez”. São todos assinados pelo artista da Meifumado, com a excepção de “Jubilante”, que ficou a cargo do seu intérprete.
[Cantar e destruir]
Para PZ, trata-se do seu primeiro musical. No portefólio de Rodrigo Vaiapraia, artista interdisciplinar mais conhecido pelo trabalho musical com As Rainhas do Baile, já é o terceiro projecto em que compõe para teatro (a estreia, em 2013, ao lado da brasileira Helena Fagundes). Além disso, ele mesmo puxa duma cadeira, assumindo o papel mais explosivo da peça; uma das didascálias no guião é “Rodrigo canta e destrói”.
Composta com Rui Antunes e Violeta Azevedo, “Jubilante” sonoriza esse processo: ondeia pelas praias do punk, antes de se resolver num drama pop. “Eu queria algo com mais sintetizador, texturas mais electrónicas e menos guitarra”, exprime ao ReB. “Acho que o tema latente da letra da música é o sentimento de frustração por uma liberdade que é constantemente adiada.”
Fervilha em palco — e nos balcões, e onde Vaiapraia conseguir chegar. E essa cena, uma apologia dessa alegórica dependência, constitui uma sugestão. “Acho que todas as forças trabalhadoras, artistas inclusive, devem fazer do seu queixume e mal-estar um motor para a acção colectiva. Pensar criticamente, puxar os limites, ter a coragem de sair da complacência e exigir os seus direitos. Atirar o barro à parede. Se ele cair, atirar-se outra vez. Organizar é mais frutífero e difícil do que destruir tudo.” Da “desarmonia” inicial, como escreve Pedro Faro na folha de sala, não nascerá somente “pungência” e instabilidade a pataco. Virá “tremor e beleza queer”.
Em Could Be Worse: The Musical, as artes merecem um debate mais subcutâneo, por quem ocupa esse lugar de fala. “Acho que todxs xs envolvidxs nesta peça já consideraram desistir de criar, sair e mudar, mas não encontrámos outra alternativa ainda.” A assumpção de Vaiapraia amplifica o fado do artista, que vai sempre contemplar a possibilidade de sair, mas não tardará a gravitar para a realidade: nunca haverá reabilitação que lhe valha.