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Fotografia: Agnes
Publicado a: 15/09/2020

Jovem, negra e orgulhosa.

Cookie Jane: “Se for para subir, eu vou fazê-lo sozinha, mas não vou dar o meu corpo para me meterem no topo”

Fotografia: Agnes
Publicado a: 15/09/2020

O que é que as mulheres negras precisam do hip hop em 2020? Essa é a pergunta colocada por David Dennis Jr. numa peça que dá voz a quatro mulheres americanas, todas elas envolvidas em partes diferentes da cultura. “É certo que o rap, tal como muitos outros produtos culturais, é um reflexo do resto do mundo. Mas enquanto nalgumas áreas estão a acordar — ou a serem obrigadas a acordar — para a misoginia que está profundamente enraizada, o hip hop tem evitado uma verdadeira reflexão. A razão mais fácil e óbvia para isso é que, na maior parte dos casos, as mulheres que sentem a ira dos piores traços do rap são negras. As menos apreciadas, protegidas e valorizadas entre nós”, lê-se na introdução do texto.

Em Portugal não será certamente diferente, mas há uma nova geração (jovem, negra, feminina e orgulhosa) a aproximar-se a passos largos do centro da discussão: Nenny e Cíntia são os nomes mais sonantes, ambas com menos de 20 anos, assumindo-se com autoridade, apesar da idade, num círculo hiper-masculinizado. Cookie Jane, com menos visibilidade mas igualmente a rondar as duas décadas de vida, também anda à procura de um lugar ao sol e, tal como muitas das suas colegas, não tem visto a vida facilitada.

“Eu sou uma pessoa que observa muito. Enquanto crescia, muitas vezes fui obrigada a não me defender e a ficar calada, e isso me ajudou a observar mais e calar. Desde que entrei nesta indústria musical observei várias coisas. No que toca a ser uma mulher black existe muito colorismo. Muito preconceito com dark skin women, e isso é triste. Muitos dos homens que me fazem esse preconceito também são blacks. Acontece muito. Também acontece homens darem a dica nas mulheres, ‘ah, tu queres subir? Ok, vamos nos envolver. Se tu me deres a tua pipoca, eu te meto no topo’. Isso também acontece muito. É triste. E eu não preciso de dar o meu corpo para subir. Se for para subir, eu vou subir sozinha, mas não vou dar o meu corpo para me meteres no topo. Não preciso da tua ajuda. E já houve pessoas lá de cima a fazerem isso”, conta em franca e desarmante conversa com o Rimas e Batidas a rapper nascida na Tapada das Mercês e criada na linha de Sintra. “É difícil entrar na indústria musical, há muitas pessoas que dizem que te vão ajudar, mas depois não vão fazê-lo. As pessoas têm que ser persistentes. Eu tive que meter na minha cabeça que não podia contar com todo o mundo, mas também não podia desistir. Se é aquilo que eu quero, tenho que ser persistente e ir à luta.”



“Trudumtumtum”, single lançado em Abril — o videoclipe chegou em Julho –, foi a carta-de-apresentação mais vistosa de Cookie até aqui, um “happy drill” ancorado na sua voz juvenil e na frase “o vosso flow foi atropelado”. No meio do turbilhão de reacções, principalmente no Twitter, Agir foi logo um dos artistas que se chegou à frente para trabalhar com ela:

“No início foi uma coisa muito estranha para mim, porque foi tipo do nada a reacção das pessoas. Teve muitas pessoas que me deram apoio, e tem muitas pessoas que me estão a dar apoio. Claro que tem pessoas negativas, que não curtiram da minha música, mas uma cena que eu não entendo nessas pessoas é: tu podes não curtir da minha música, mas não significa que não possas curtir da minha pessoa. Música e carácter são coisas diferentes, mas ok. No que toca a ajudarem-me em projectos musicais, eu digo que não, sou independente, estou no hustle sozinha. Tem pessoas que me dão a dica, ‘Cookie, tenho aqui uns beats‘, mas nada daquela cena de ter labels ou algo a sério para meter no topo. Não, uma gaja está sozinha na corrida.

O Agir curtiu da minha cena, produziu uns beats, deu-me aquela moral. Só sei que ele disse, ‘Cookie, queres vir no estúdio?’ E pull up, fomos. Ele fez uns beats com que eu me identifiquei bastante. Teve muitas pessoas que deram hate no que toca ao Agir me dar apoio, essas pessoas não queriam que o Agir me desse apoio. Vi tweets de pessoas a dizer, ‘ah, porque é que o Agir está a dar apoio na Cookie se há pessoas que cantam melhor que ela e têm mais talento?’ E eu na minha cabeça estava, ‘ok, tu podes ter talento, mas tu não precisas de tentar apagar a minha luz para tu brilhares, porque se for para tu brilhares, vai chegar a tua hora, então deixa-me brilhar e fica no teu canto’.”

Antes do tema que já leva cerca de 50 mil visualizações no YouTube, houve “Enemies Aplaudem” e “Putiana“, uma “brincadeira” que acabou por ser o início de algo mais sério:

“Eu só tomei a decisão [de começar a cantar] no ano passado, mas desde 2017 que fazia uns vídeos a cantar de leve [risos]. Depois apagava porque tinha vergonha. Eu na altura fazia Vines, então as pessoas não me levavam muito a sério — sempre fui assim engraçada nas músicas –, mas no ano passado foi quando decidi realmente começar a fazer a sério: comecei a dar assim uns freestyles no Instagram e as pessoas começaram a partilhar. E disseram-me, ‘Cookie, porque é que não começas mesmo a cantar? Força, tens potencial’. E eu, ‘why not? Vou seguir o meu sonho.’ [Risos] Foi assim que eu saí da caixinha.”

A sua versão de “Thotiana“, faixa de Blueface, foi, diz-nos a própria, uma maneira de “chamar a atenção”. Uma estratégia para ter o seu nome em rotação antes de se atirar a voos maiores. Apesar das suas músicas soarem leves e cruas, há planeamento e ponderação no que Cookie faz, começando pela exploração dos seus dois lados, o Yin e o Yang, que servem para distinguir as suas duas personalidades através da forma de vestir ou da forma de falar:

“Quando estou Yin, eu escrevo umas letras mais pesadas e profundas. Se eu estiver Yin quando escrevi aquilo, eu tenho que ir gravar quando estou Yin, não quando eu estou Yang. Se eu estiver Yang e for gravar uma música que foi feita quando eu estava Yin, não dá certo. Uma coisa curiosa: eu tenho muita atenção nas datas em que eu lanço as músicas, e à hora também. Por exemplo, quando estou Yin lanço no dia 6, 16 ou 26, às 16 horas. Já sabes são evil things. A Yin a mandar negativo, então não consigo controlar isso. Quando eu estou Yang, é dia 7, 17 e 27, às 19h. Por exemplo, o ‘Trudumtumtum’ foi um pouquinho de mix de Yin e Yang, só que a Yin só disse ‘o vosso flow foi atropelado’ e acabou, mais nada. Essa música foi lançada no dia 6, às 19 horas. 6 de Yin e 7 de Yang. Interessante, não é? Eu gosto de explicar porque as pessoas às vezes não entendem a minha vibe e julgam por não entender. As pessoas julgam tudo aquilo que é diferente, mas depois imitam. “

De uma família que “sempre teve nesse meio musical”, a menina que cantava em frente à TV com a pasta de dentes a fazer de microfone, “a fingir que estava a cantar em palcos”, foi formada pela velha escola, nomeadamente Biggie, Tupac e Eazy-E, mas também atirou Ghostemane e Trippie Redd para cima da mesa: “eu ouço um pouco de tudo, aprecio todos os géneros musicais, desde jazz a rock, fado a música clássica (Mozart e Beethoven).”

O projecto de estreia está no horizonte: “Eu estava a pensar em fazer um EP e dar mais a conhecer da minha história e trazer versatilidade e géneros diferentes. Antes do EP, vou lançar um som que vai ser outra vez um happy drill [mas] um pouquinho mais pesado, noutra vibe. Eu sou uma artista que não mete músicas no baú. Eu não fico a coleccionar gravações. Tem que ser momentâneo. Eu tenho que ir no estúdio e gravar. Porque se gravar e guardar, eu depois, passado um tempo, já não curto daquela cena que gravei. Eu sou assim, momentânea. Em relação a outros géneros, eu sou versátil, e as pessoas vão ver. Comecei no drill, mas isso não significa que eu vá ficar no drill. Eu gosto de sair da minha zona de conforto e explorar um pouco de tudo. “

Nessa lógica de nos colocarmos em sítios que não seriam os mais óbvios, levámos a Cookie Jane para o Museu Nacional de Arte Antiga*, em Lisboa. Em frente à pintura espanhola tenebrista, ao São Sebastião de Gregório Lopes, aos presépios barrocos e às imagens de santos medievais, Cookie encarnou o seu Yin e Yang na sala de museu. Numa simbiose entre a cultura moderna da Nova Lisboa e a arte do passado, a artista assumiu-se enquanto figura do presente.


* (O Rimas e Batidas quer expressar o seu sincero agradecimento ao Museu Nacional de Arte Antiga por ter autorizado esta sessão fotográfica).

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