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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/02/2021

Não foi o primeiro álbum da diva, mas agiu com a força irrevogável de uma borracha. Há 35 anos, Janet Jackson apagou um passado inócuo de estrela juvenil — e reescreveu-o com a magnitude de uma artista realizada.

Control: o álbum que inventou Janet Jackson

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/02/2021

Só há uma forma de arrancar a celebração de quando, há 35 anos, uma das maiores autoras pop se revelou ao mundo – infelizmente sem reproduzir a magnitude desse petardo. Vamos lá: esta é uma história de controlo. O controlo de Janet Jackson; controlo sobre aquilo que nos tinha para dizer, controlo sobre aquilo que tinha de fazer. Fê-lo à sua maneira e, é certo, esperando que gostássemos. Mas a instalação de um novo paradigma já estava em curso, muito além do que pudéssemos dizer.

No friso da família Jackson, Janet quebrou a simetria. Enquanto o investimento de todos os irmãos – especialmente Michael e os Jackson 5 – era feito na voz, Janet fez-se actriz televisiva em sitcoms-telenovela. Um enredo que a levou a ser castigada pela mãe ficcional com um ferro de engomar, por exemplo, pode mapear a vocação de Janet pelo drama – apenas não prevê o seu desejo emancipatório. Essa pulsão terá vindo da sua vida fora do guião: saturada do seu papel na série Fame; à beira da ruptura com o seu marido secreto (James dos DeBarge, um grupo vital do r&b oitentista), mas também com o seu infame pai, manager que só aceitava ser chamado pelo primeiro nome: Joe. 

Foi por imposição de Joe Jackson que Janet tomou a via musical – que, portanto, ainda não havia encarado como um escape artístico. Não que o disco homónimo e Dream Street, de 1983 e ’84, soassem apenas a obrigações contratuais: a parte de leão pautava-se por pop motorizada e funk levíssimo, tristemente anónimos. Competentes, mas inócuos discos, dizem o consenso que rasura essa que é a pré-história de Janet Jackson. Pode ser um olhar impiedoso, mas é verdade: quando a mediocridade não é apaparicada, o arrojo vence. 

A História escreve-se com grossos pingos de tinta. Era preciso um borrão original: uma propulsão mais radical, um som nem brincalhão nem severo, até uma moda mais desafiante. Janet poderia ter requisitado os serviços de um Luther Vandross ou um Quincy Jones, comandante do irmão Michael em dois dos maiores discos da época, Off the Wall e Thriller. Mas John McClain, o crânio da A&M Records no que tocava à música negra (no departamento de artistas e repertório), decidiu enviá-la por estradas sem pavimento. “Tudo o que queria era fazer dela a artista mais excitante da altura”, disse à revista Black Enterprise em 1987, numa artigo de auditoria à marca Janet Jackson.

Janet não teve medo de segurar a sua pena sobre o livro do r&b contemporâneo: bem educado, romântico, temperado. Face ao sistema, tinha duas boas razões para ser temerária: graças a McClain, ganhara dois produtores que eram, no fundo, boa companhia. Naturais de Mineápolis, eis Jimmy Jam & Terry Lewis: de amigos do liceu a colegas de banda nos The Time. Depois da cisão com o grupo criado por Prince (sim, o Prince, ocorrências normais da vida), os seus nomes passaram a identificar um dos duos mais reputados de composição e produção musical. “Vocês são de Mineápolis?”, perguntou-lhes uma vez o pai de Janet – perdão, Joe. “Não ponham a minha filha a soar a Prince.”

Joe bem tentou supervisionar o processo, ao exigir que as sessões decorressem perto da casa de família em Los Angeles. Falhou: em guerra aberta, os adversários fincaram o pé. Janet não se tornou uma filha do Purple One, mas é interessante cruzar amostras do que fez Prince em 1986, no hipercinético Parade, e do fruto de Janet, Jimmy e Terry desse mesmo ano. Pelo menos, regista-se algum ADN comum: refrões líquidos a verter por entre um tecido poroso de batidas e fanfarra; pop pegajosa com um pulso quase violento, especialmente em “You Can Be Mine”. Mas não há necessidade de misturas. Prince é inqualificável; já a nova tríplice de Mineápolis vinha propor um novo movimento.

“Queríamos conceber um álbum que estivesse em todas as casas negras [dos EUA]… almejávamos o [maior] álbum negro de todos os tempos.” É o que Questlove confirma, em 2021, ao vê-lo à mesma luz que Bitches Brew, Let’s Get It On ou Talking Book. Mal a primeira agulha caiu sobre a explosão da faixa-título, Control já era um marco. O manifesto não se reduz à declaração de independência dócil, que ainda deixa a adivinhar o tom de uma rebelião jovem contra os pais: está na pancada que baralha compassos, está nas linhas vocais e harmónicas que flanqueiam o ouvido de todos os lados, está nos intervalos de swing em que cabe a ginga mais decidida e espampanante. Swing, é isso: o movimento do new jack swing. Conforme escreve C.L. Williams, esse som foi para os jovens de 1986 a 1994 o que a Motown tinha dado aos pais dessa geração. Janet não teve medo ao segurar a sua pena sobre o livro romântico de uma r&b elegante, juvenil e bem educada — com a supervisão dos braços direitos. 



Com Jimmy e Terry, divertindo-se em piqueniques à beira-lago, arquitectou uma cidade sonora de perigos e paixões, empurrões de afirmação e toques de aproximação. Qual é o grande feito aqui, para além do supremo prazer de a ouvir? É que, em nenhum momento, soa gélido ou industrial. Por ser desprovido de instrumentos reais, este disco não estava em desvantagem: muitos dos anos 80 são, afinal, caixas de ritmos e teclados em matrimónio. Talvez o protagonista tenha sido o teclado Ensoniq Mirage, um dos primeiros samplers construídos – que, nas sessões de Control, tornou redundante qualquer teclado ou trompete. Estará em certa disputa com o LinnDrum, a fonte da percussão neste álbum: escolhido no lugar típico de uma drum machine DMX, foi a mãe de todos estes pontapés a que o trio chamou êxitos.

Sim, trio: Janet só seria considerada produtora principal e nomeada para um GRAMMY no LP seguinte, mas já em Control compôs e programou em nome próprio – um desafio ao machismo paradigmático da indústria pop. “Cumprimentos, Janet”: assim poderia acabar cada faixa do lado A, tal não é cada tiro balístico. Uma das melhores fantasias é imaginar como é que, em 1986, o ouvinte médio recebeu o ultimato de “What Have You Done for Me Lately”, com a irrupção pneumática que anuncia um dos melhores singles de todos os tempos. Uma faixa antes desse ataque a um namorado inerte, está uma denúncia de maior escopo: “Nasty”, responsável pela frase emblemática de Janet, desculpem, Miss Jackson, que, a caminho do estúdio, se impôs perante o perigo de dois predadores. No fim, até os nasty boys já domou, reduzidos ao groove.

São momentos em que a (merecida) soberba parece obliterar a necessidade de escrever canções de amor, pelo menos na acepção mais cliché. A galopante, festiva “You Can Be Mine” – o único não- single – é tal e qual o que diz no rótulo: um aceno generoso a um tipo robusto e dedicado, um selo de aprovação sem fazer caso, e não uma súplica. De resto, Janet conserva-se sempre decisora. Vale para apregoar a abstinência em tempos da epidemia de HIV/SIDA (o tenro slow “Let’s Wait Awhile”) ou para se demarcar de um parceiro incompatível (o aguerrido manifesto de “The Pleasure Principle”, já dizia Freud).

Mas também cede à luxúria (a minimal “Funny How Time Flies”, presença ubíqua ainda hoje nas rádios quiet storm dos EUA). E não há problema quando cede ao amor puro, na luminosa “When I Think of You”, ou mesmo o devaneio adolescente de “He Doesn’t Know I’m Alive”. Um diário quase sem caprichos, cada página assinada com orgulho, prepotência, honestidade e um estímulo de vida ou morte.

Revisitemos os ingredientes de Miss Jackson, então. Temos a aptidão conceptual que a levaria a rejeitar fazer uma sequela para Control, enveredando antes pela epopeia pop de Rhythm Nation 1814; a pulsão experimental com que traria infusões de ópera e outros grãos de areia no sucessor janet.; a dureza com que já olhava para o mundo, eventualmente voltada para dentro da sua flora, na odisseia The Velvet Rope. Bastou que Janet tomasse as rédeas da operação. 

Pelo caminho, fabricou uma das maiores bombas sonoras da história. Melhor: fabricou um novo curso para a própria história da pop. As décadas passam e a explosão continua bravia.


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