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Publicado a: 26/11/2018

Conjunto Corona: “O humor está na cabeça de quem ouve”

Publicado a: 26/11/2018

[TEXTO] João Marques [FOTOS] Beatriz Santos

dB e Logos são duas identidades artísticas diferentes que têm em si Corona, a personagem fictícia que dá forma aos estereótipos e lendas urbanas da cidade do Porto. O “protagonista” viveu na baixa do Porto, entrou em desintoxicação e abriu um bordel para agora, no novo projecto do conjunto, se mudar para Santa Rita e descobrir a religião.

No próximo sábado, dia 1 de Dezembro, o Conjunto Corona apresenta Santa Rita Lifestyle no Musicbox, em Lisboa, e, uma semana depois, repete a dose no Hard Club, no Porto. O Rimas e Batidas esteve à conversa com a dupla e falou sobre o processo criativo, a relação entre o humor e a música e a personagem Corona.

 



Conseguem dizer quando é que começaram a compor este álbum? Foi uma coisa sequencial depois do Cimo de Vila?

[Logos] O dB produziu tudo entre talvez Dezembro de 2016 e Janeiro de 2017. E eu comecei talvez a escrever a partir de Abril de 2017. Ou seja, ele já está pronto há algum tempo, mas como o Cimo de Vila Velvet Cantina correu muito bem e teve muitos concertos acabámos por querer potenciar um bocadinho mais o número de concertos, até porque estávamos a receber uma data de convites. Normalmente [os álbuns] têm sido um por ano. Este teve um espaçamento de dois anos, mas foi por causa do quão bem correu o Cimo de Vila. Tivemos muita actividade depois com concertos.

Abrem o álbum a samplar aquele vídeo do YouTube do miúdo metaleiro a comer o sundae. De onde vem a ideia? Como é que isso surgiu?

[dB] Todos os álbuns de Corona têm essa parte. Skits, são músicas que não são bem músicas. Basicamente eu sou um grande explorador do lado merdoso da Internet, e antes perdia mesmo muitas horas. O meu chat de Facebook está sempre a piscar todos os dias com janelas com merda.

De pessoas que não conheces? Amigos?

[dB] Sim, de pessoas que não conheço também que dizem “devias samplar isto, devias samplar aquilo”. E este eu já conhecia. Tem uma coisa muito boa, depois eu guardo porque normalmente eu samplo só, e a única excepção foi este senhor, porque eu samplo não só coisas portuguesas, mas do Porto. O que lhe dá aquele aspecto regional, e esta já há muito tempo que eu queria samplar. Mas nos outros álbuns não havia contexto para isso. Este como é sobre religiões, cultos e etc. fazia todo o sentido. Então fui lá à minha lista de coisas pendentes para samplar um dia e estava lá a dona Dorinda Gandra de Gondomar, estava lá o metaleiro, estava lá toda a gente. Estava lá também o filme que é de onde eu samplei o “Delírios Místicos”. É do filme Pára-me de Repente o Pensamento, que é um documentário do Jorge Pelicano no Hospital Psiquiátrico Conde Ferreira, no Porto, onde há um actor que passa lá um mês. Aquilo é uma conversa entre dois utentes, dois pacientes lá do hospital, que estão a ter essa conversa sobre estarem curados.

Portanto, é tudo coisas sobre o Porto que eu tenho lá listas infinitas. Isso depois em cada álbum vejo o que é que faz mais sentido.

Onde é que este álbum encaixa e desenvolve a história da personagem fictícia Corona?

[Logos] Nos outros álbuns o Corona é do centro do Porto, da Baixa do Porto mais precisamente. É um personagem muito típico dos bairros antigos do Porto, do casario antigo mesmo, da zona histórica da cidade. No segundo álbum [Lo-Fi Hipster Trip] teve aquela recaída, esteve no hospital psiquiátrico. No terceiro [Cimo de Vila Velvet Cantina] volta à zona onde cresceu e planta o negócio em Cimo de Vila, a casa de alterne. E agora com esta gentrificação…

[dB] … e o negócio correu-lhe mal. Meteu-se com pessoas erradas, com o Alvy Vegas.

[Logos] Exactamente, o negócio também não correu muito bem. Tudo lhe estava a fazer um bocado de confusão e ele decidiu mover-se mais para os arredores da cidade, para os subúrbios do Porto. Montou ali uma seita, um culto de pessoas que seguem as ideias do Corona.

 



O Corona é um personagem fictícia. É baseado em alguém em específico?

[Logos] Não. São vários. São várias histórias, memórias, conversas… é infinito, há sempre coisas a acrescentar a este personagem.

[dB] O Corona é tipo a voz do Chewbacca. É uma mistura de muitas outras vozes. O Corona é uma mistura de uma série de pessoas. Eu posso dizer meia dúzia deles que toda a gente no Porto conhece. Há o senhor do cabelo branco que anda sempre a pedir moedas de um euro, com o saco todo de moedas de um euro, é um clássico. Há a senhora que pede sempre umas quantias estúpidas de 75 cêntimos, um euro e vinte para pagar uma sopa. Olha, há o senhor monarca que tem as barbas e anda sempre com a pasta que está a preparar agora um novo golpe para voltar a monarquia. É meia dúzia de pessoas que existem no Porto, e que toda a gente conhece, tornados num só.

[Logos] São as pessoas que a sociedade em geral considera lunáticos só porque não estão de todo inseridos na sociedade normal.

[dB] Não percebes. A sociedade não os percebe.

E a festa na Repsol para ouvir o álbum. Falem-me disso.

[dB] A festa na Repsol foi uma festa de última hora até do irmão do Edgar. Normalmente quando lançamos um álbum preparamos sempre uma cerimónia mais ou menos privada. No álbum anterior fui numa casa de alterne em Cimo de Vila, para mais ou menos 70 pessoas.

[Logos] É a casa mais antiga em actividade no Porto.

[dB] Eu por exemplo a solo fiz um concerto num shopping abandonado em Gaia. Nós gostamos muito deste conceito. Para este aqui estávamos a pensar no que é que fazia sentido. A primeira escolha era um restaurante que é o Rafael 24/7, que está na letra. “24/7 eu ’tou no Mac / No Rafael a comer um pastel com o Zé Miguel”. É um restaurante que está aberto 24 horas por dia e que tem lá concertos de sei lá… Sérgio Rossi, Marante…

[Logos] Karaoke também.

[dB] O teu irmão já contou várias vezes histórias dos ciganos que vão para lá às 3 da manhã, metem-se em cima da mesa a tocar guitarra e a comer [risos].

[Logos] É um café que está sempre aberto. O ano todo, sempre aberto.

[dB] Só que aquilo agora está fechado porque está em obras. Estão a remodelar o espaço. E pronto… agora vão fazer um takeaway 24 horas também. Se quiseres ir buscar um frango no churrasco às 3 da manhã no Porto [risos].

Agora já sei onde é que se vai.

[dB] Entretanto como não havia… não sabíamos muito bem o que fazer, estávamos num impasse e o irmão do Edgar lembrou-se e disse ‘epá, o álbum é sobre a rotunda de Santa Rita, porque é que não fazem, em vez de um concerto, uma pré-escuta? Metem lá o carro, abrem as portas e janelas, põe nas colunas e ouvimos o disco’. E assim foi. E lançámos aquilo muito em cima da hora.

[Logos] Esta ideia foi numa sexta e o evento foi no domingo. Tínhamos 400 e tal pessoas com interesse no evento, surgiram mais ou menos 100, 150 pessoas

[dB] E tivemos lá o carro com as malas abertas a ouvir. A melhor parte foi a reacção dos locais. Porque aquilo é uma bomba de tunings.

[Logos] Todos os dias param ali pessoas à noite. Está sempre ali alguém a mostrar o carro a um domingo, a uma quarta-feira… todos os dias.

[dB] Estou-me agora a lembrar daquele Civic que estava la de manhã quando fomos ver o espaço, estava à noite outra vez.

[Logos] Apanhámo-lo lá de manhã com os filhos. Um gajo com uns filhos, pequenitos, levou-os a passear de manhã à Repsol – deixou a mulher em casa. À noite estava lá o gajo outra vez, sozinho já.

[dB] Esse pessoal todo que à noite estava lá. Sei lá uns 10? 10 carros?

[Logos] Sim.

[dB] Hondas Civic, Ibizas… aqueles clássicos do tuning apanharam lá cento e tal pessoas de público e começaram a “mandar um show”. Se fosse combinado não era melhor! Começaram todos a fazer drifts ali, a ir para a rotunda um à vez. Houve lá um que ia batendo contra um carro que estava a entrar na rotunda e o homem a quem iam batendo envolveu-se num bate-boca com 100 pessoas a assistir.

Coisa à Fast & Furious.

[dB] Completamente

Mas neste, tudo ao som do Santa Rita Lifestyle.

[dB] Foi tudo ao som do Santa Rita! A ideia foi muito bem conseguida. As pessoas foram para lá, ouviram o disco, viram aquele ambiente, perceberam o que é que aquilo era… há muita gente que já conhecia mas quem não conhecia ficou a conhecer. Aquilo acabou às 11, o álbum saia à meia-noite e as pessoas foram para casa, carregaram play e aquele vídeo, depois do que aconteceu, tem um significado completamente diferente.

 



Tu, dB, já tinhas trabalhado com o PZ. O PZ é a nova colaboração deste álbum. Ele ainda não tinha entrado em nenhum dos outros.

[Logos] Esteve para entrar em todos mas nunca entrou em nenhum.

Porquê?

[Logos] É fácil. Ele diz que temos uma velocidade criativa que ele não consegue acompanhar. Somos muito rápidos só, quando chega a hora já está pronto. E desta vez como houve um tempo de dois anos já teve tempo e conseguiu finalmente. É que ele quer entrar desde o primeiro e nós também fazemos todo o gosto disso. Ele é o CEO da nossa editora, só desta vez é que conseguimos.

Ele é uma espécie de vosso mentor?

[dB] Eu posso dizer que ele, para mim, é uma referência a utilizar a música com humor. Mas a coisa que eu gosto muito no PZ, e acho que Corona tem um bocado disso, é a mistura de música com humor, mas nós não estamos a tentar ter piada. O humor está na cabeça e nos ouvidos de quem ouve. Eu não estou a fazer macacadas para as pessoas rirem. Estou a relatar coisas que, de facto, são cómicas, mas se as pessoas quiserem interpretar isso como sendo a sério é algo que para mim é válido. E o PZ é mestre nisso. Toda a gente se ri da música dele menos ele. Nunca o viste a rir-se da música dele.

[Logos] Sim sim, ele faz aquilo seriamente. A música fica aberta à interpretação de cada um e acho que isso é que é o bonito. E acho que no nosso caso acontece o mesmo.

Porque é que a faixa com o mesmo título do álbum só vem no meio do disco?

[Logos] Normalmente, depois de estar tudo gravado, eu sento-me a ouvir as faixas e a imaginar um alinhamento; seja pelos beats ou pelas letras. Obviamente depois o dB aprova.

[dB] Este álbum começa com um skit a rejeitar completamente deus e termina com uma pessoa a dizer que está completamente curada e em paz. As músicas vão nesse sentido. As primeiras músicas: “187 no Bloco” — matança, “Perdido na Variante” — assassínio…

[Logos] … o “Eu Não Bebo Coca Cola Eu Snifo”…

[dB] … e as últimas músicas são completamente em paz. O “Isto Não Pagas Com Part Times Só”… já são de redenção.

[Logos] Isto pelo menos na nossa cabeça, não é.

 



Tu, dB, também fazes rap. Neste álbum tens mais espaço.

[dB] Foi o Edgar que decidiu. Ele é que decide as participações.

[Logos] As participações são fáceis. Eu ouço o instrumental e digo logo “aquele gajo vai ficar bem ali”. Nunca é propositado ou forçado. Imagino a voz de alguém e digo que fica bem. Neste álbum imaginei que o dB ia ficar bem naquelas duas.

[dB] Eu fiz aquela letra enquanto ele gravava a parte dele [risos].

[Logos] Eu escrevi de manhã, cheguei a casa dele, gravámos, ele escreveu a parte dele… O título, o mood do beat… estava na mouche para o dB.

Qual é o vosso processo criativo? Primeiro os beats e depois a letra?

[dB] É muito sistemático. Falamos sobre o tema e o nome do próximo álbum. É importante para nós sabermos o nome do álbum de início. Depois de nos alinharmos e sabermos qual é o caminho, o que eu faço é durante uma série de meses, que é onde perdemos mais tempo, procurar samples. Procuro e vou juntando, procuro, vou juntando, procuro, vou juntando… para fazer uma playlist de samples. Depois quando tenho os samples todos há uma fase a seguir que é compor o álbum. Eu não toco instrumento nenhum mas tenho que começar a misturar samples com samples. É dizer “dentro destes samples todos que arranjei e que estão nesta categoria este fica bem com este, estas cordas ficam em cima deste som”. E vou apontando tudo no meu caderno Firmo Universitário de 80 folhas azul. Esse clássico.

Chega a uma altura em que eu tenho os instrumentais escritos. Este BPM, este sample com este sample na nota x, na nota y. Quando começo a produzir depois faço um pacote de 10 ou 15 instrumentais em 15 dias. Faço isto em pouco tempo porque já estão ali meses de trabalho árduo. Quando tenho os instrumentais feitos entrego ao Edgar.

[Logos] E o meu processo é muito semelhante. Isto é tudo muito natural, o dB manda-me um pacote de 30 ou 40 beats, o que for, e eu deixo-os a tocar um mês, dois meses lá em casa. Estão lá a rolar… eu estou a fazer o que seja e a ouvir aquilo. E vou criando o filme todo. Quando me sento é muito rápido, em um mês, nem isso, já está o álbum todo escrito. Faço como ele, vou apontando frases, “este é um bom título”, “este é um bom tema para uma música”. Vou tomando nota, depois sento-me e é a eito.

[dB] Já está tudo muito mastigado antes de engolir. E depois disto os convidados.

[Logos] Sim, só depois os convidados. Eu as vezes escrevo e se não gostar, se não ficar bem, já não pego naquele beat. Vai tudo fora. Tenho beats que se os ouvisses…

[dB] São incríveis [risos]. É muito saudável para não haver confusões. Se ele me mostrar uma letra e eu disser que não gosto, acabou. Está fora. Se eu lhe mostrar um instrumental e ele não gostar também está fora. Ninguém reclama. Ou estamos os dois 100% de acordo ou não se faz nada.

Corona tem um som muito próprio, soa sempre a Corona. Há alguma preocupação com isto de preservar a mesma sonoridade?

[dB] Não há nenhuma preocupação, acho que simplesmente é porque os álbuns são todos feitos pelas mesmas pessoas, nos mesmos sítios, com os mesmos métodos.

[Logos] Sim. Agora, é natural experimentar sempre qualquer coisa. Quando ele está a ouvir coisas é normal que pense em introduzir coisa ou em ir para aquele universo. E eu a escrever é igual. Este algum se reparares, de todos é o que tem menos rap. Menos letras grandes e com muita informação. Há mais espaço, mais pontes, falsos refrões. São experiências, é isso.

 



E o que ouvem no dia-a-dia influencia o que vão compor.

[Logos] Sim. Influencia sempre, não é?

[dB] Eu no meu caso é o que ouço que vai definir como vai soar o álbum. Ouço pouquíssima música nova. A minha vida são horas à procura de samples. Ouço muita música, mas focado em procurar samples para fazer um álbum deste tipo. Se calhar há coisas espectaculares que passo logo à frente porque, naquela altura, não estou interessado em ouvir aquele tipo de coisas.

E o que é que ouvem no vosso tempo livre?

[dB] Eu ouço tudo o que possas imaginar. Desde jazz a techno russo, a cumbia.

[Logos] Eu posso-te dizer que também sou muito influenciado pela pop. Eu adoro as cenas pop e catchy. Não as ouço, nem tenho álbuns em casa, mas no carro ando sempre na M80. Adoro aquelas músicas que tu pensas “isto é intemporal”. Ou seja, o nosso projecto é alternativo – é underground, se quisermos falar assim – é um nicho. Mas eu gosto de ir ver esses refrões cantáveis. E os instrumentais do dB ajudam sempre a isso. Boas melodias… são cantáveis. Quando o estou a ouvir estou sempre a cantarolar qualquer coisa. Dá-me vontade disso.

E como é que descreveriam Corona? Se tivessem de meter uma etiqueta no Conjunto Corona, o que é que vocês, que são os criadores, diriam?

[dB] Eu respondo com uma frase do Álvaro Costa: “É uma ópera psicadélica aditivada por molho de francesinha”. Podes tomar nota dessa frase [risos].

[Logos] Não é fácil, mas já que foi alguém de fora que o disse… Acho que resume bem.

A pergunta de um milhão de euros. Há uma história. O Corona agora está mais ligado à religião e tudo, mas isto não acaba aqui…

[dB] [Risos] Estou a achar muita graça a esta tendência. Estou a adorar.

[Logos] A cada álbum que acontece isto piorou. A pessoa ainda não digeriu este álbum e as pessoas já estão: “e agora?” O pessoal: “Qual vai ser a edição física?”. Calma, ouçam o álbum.

[dB] O pessoal agora já não ouve o álbum, já só faz perguntas sobre o próximo álbum.

[Logos] Nós também alimentamos um bocado isso quando estamos a falar de que já andamos a pensar no próximo, e normalmente já temos aqui a ideia para o próximo.  É digerir o álbum, ainda vamos tocá-lo. Vamos ver.

[dB] Ainda não fizemos um concerto deste álbum!

[Logos] Irá haver continuação, é claro. Como dizem os clássicos Mind Da Gap, “enquanto isto nos der prazer vamos fazê-lo”. Se pensares bem a história é infinita. Podes ir ao futuro, podes ir ao passado… Ainda ninguém sabe o passado do homem. Há mil opções, o que é preciso é que seja uma ideia boa.

 


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