pub

Fotografia: Nate Schuls
Publicado a: 12/10/2022

De Makaya McCraven a Kassa Overall.

Como uma nova geração de bateristas jazz ajustou os seus relógios internos para o tempo de J Dilla

Fotografia: Nate Schuls
Publicado a: 12/10/2022

Nunca foi apenas acerca de Clyde Stubbefield, Bernard Purdie ou Earl Palmer. Madlib a usar música de Elvin Jones numa das suas mixtapes de Advanced Jazz, Busta Rhymes e Q-Tip a cuspirem em cima de um loop encontrado em Members, Don’t Git Weary de Max Roach ou os Digable Planets, KRS-One, A Tribe Called Quest, Outkast e 3rd Bass, entre tantos outros, a pedirem emprestado o pulso de Art Blakey são mais exemplos possíveis da sintonia existente entre bounce e swing. O boom e o bap do hip-hop devem muito ao be e ao bop do jazz.

Tome-se um clássico de 1991 como exemplo: Breaking Atoms, título de culto dos Main Source – grupo montado por Large Professor que foi, enquanto produtor, um dos principais arquitectos do distinto edifício sónico consagrado como Golden Age – incluía samples de Donald Byrd, Bob James, Maynard Ferguson, Lou Donaldson ou The Three Sounds para lá das “obrigatórias” pilhagens nas discografias de James Brown, Kool & The Gang ou Funk, Inc.. É perfeitamente natural que alguém como Makaya McCraven, nascido oito anos antes, tenha captado no seu walkman a caminho da escola muitas destas cadências filtradas pelas MPCs de produtores como Large Professor, Pete Rock, DJ Premier, Q-Tip ou Prince Paul. Filho de Stephen McCraven, baterista que trabalhou em ensembles de Marion Brown, Sam Rivers ou, entre outros, Archie Shepp, Makaya não tardou a unir os dois mundos quando na escola que frequentava em Amherst, Massachusetts, formou os Cold Duck Complex, “a jazz hip-hop band”, de acordo com as suas próprias palavras. “Há sempre forças contrárias em jogo, as que nos puxam ou empurram para a tradição e as que nos atraem para o futuro. Faz parte da evolução”, explica-nos Makaya. “A história que nos levou à gravação, aos estúdios, aos samplers e sequenciadores é incrível, abriu tantas novas avenidas para a criação musical. Tudo isso culminou num novo contexto, o disco gravado, que é um meio diferente de mostrar a música, bem diferente do palco”, refere ainda, apontando para o estúdio como o novo laboratório onde o futuro do jazz está a ser testado.

O círculo completa-se agora. Se a primeira geração de produtores sampladélicos se educou ritmicamente a estudar os pulsos orgânicos do funk e do jazz, mergulhando fundo nas discografias da Blue Note, Impulse ou CTI e oferecendo depois ao mundo portais alternativos para investigar a História nos álbuns que grupos como os De La Soul, A Tribe Called Quest, Beastie Boys, Gang Starr, Digable Planets ou Jungle Brothers lançaram durante toda a década de 90, não é menos verdade que a presente geração de bateristas de jazz parece ter encontrado uma maneira de equilibrar kits de bateria e MPCs, desenvolvendo uma nova sensibilidade rítmica que parece dever tanto aos grandes donos do tempo na história do jazz como às mais inventivas cabeças que encontraram forma de fazer swingar bombos, tarolas e pratos domando a função de quantize nos seus samplers. E J Dilla, ou James Dewitt Yancey de seu verdadeiro nome, é, nesta moderna fase do baterismo jazz, um marco absolutamente incontornável, alguém que, praticamente sozinho, forçou a evolução da programação rítmica com inventividade semelhante à que Tony Williams injectou no segundo grande quinteto de Miles Davis.



Nas páginas de Dilla Time, maravilhoso livro de Dan Charnas lançado há apenas alguns meses, escreve-se que foi o produtor que abriu a cabeça de Ahmir “Questlove” Thompson para uma nova ideia de tempo rítmico, quando D’Angelo criou o colectivo Soulquarians que ajudaria Voodoo a impor-se como uma absoluta obra-prima: “Questlove em particular começou a orar no altar de Jay Dee, vendo-o como o guru que o libertou da ideia de manter um tempo perfeito dando-lhe, ao invés, permissão para ser mais solto e livre, para ser humano, para estar errado”. Charnas investe boa parte das páginas de Dilla Time a explicar a particular relação de Yancey com o tempo e com as máquinas, como a SP 1200 ou a MPC 2000, deixando muito claro que a wrongness dos seus beats era absolutamente calculada e deliberada.

Malachi Whitson é um jovem baterista da Bay Area que actualmente trabalha com o quinteto Something With Soul a partir de Los Angeles. O seu EP de estreia, Something With Soul, Vol. 1, combina de forma inteligente as graves cadências modernas que sustentam o hip-hop com uma dinâmica jazz mais clássica. Numa animada chamada ZOOM, Malachi revela que se apaixonou primeiro por música quando, ainda pré-adolescente, um tio lhe mostrou os álbuns V.S.O.P. de Herbie Hancock e The Coming de Busta Rhymes: “desse momento em diante esses dois mundos passaram a estar profundamente ligados”. Mais tarde, já imerso em estudos musicais ao nível superior, Whitson descobriu que havia toda uma cena de bateristas que, na escola, procuravam transcrever beats de J Dilla: “Literalmente, há uma geração de bateristas de finais dos anos 90 e inícios dos 2000s que tentavam emular aquele feeling não quantizado dos beats de Dilla. E chegou ao ponto em que dávamos por nós a praticar como se estivéssemos numa MPC e não num kit. De certa maneira fez de nós melhores bateristas, porque temos que ser precisos como uma máquina, mas ao mesmo tempo sermos capazes de sair desse modo. Os mestres nisso são o Chris Dave e o Questlove. O Chris é o GOAT, um verdadeiro Charlie Parker da bateria para alguém que possa ter nascido por volta de 1992”.

Dono do tempo nas bandas de Meshell Ndegeocello e Sa-Ra Creative Partners, Chris Dave, que é natural de Houston, Texas, tem ainda ligações a músicos como Robert Glasper (acompanhou-o na sua passagem recente pela Casa da Música) e D’Angelo e soma créditos em registos de Kenny Garrett, Maxwell, Thundercat, John Legend ou Marcus Strickland. Em 2018, no ambicioso projecto Chris Dave and the Drumhedz (Blue Note), o baterista reuniu um grupo de pesos-pesados, incluindo o baixista Pino Palladino, o saxofonista Marcus Strickland ou os teclistas Robert Glasper e James Poyser, chamando ainda convidados de peso dos universos do r&b e hip-hop como SiR, Bilal, Anderson .Paak e Shafiq Husayn. Faz sentido que haja uma nova geração a encará-lo como um sério modelo de inovação, alguém que cruzou fronteiras com absoluta naturalidade. Em Janeiro deste ano, em entrevista ao Bandcamp, Dave confirmava: “Todos os tipos de música são cool. Não há limites, nem barreiras”.



Em 1995, quando contava apenas 20 anos, o nativo de Detroit Karriem Riggins, filho do teclista Emmanuel Riggins, deu por si a tocar no álbum Family do trompetista Roy Hargrove, conquistando um nome nos créditos ao lado do de outros bateristas como Gregory Hutchinson ou dos lendários Jimmy Cobb e Lewis Nash. Nos anos seguintes, Riggins gravou abundantemente somando créditos em registos de Eric Reed, Donald Walden, Ray Brown ou Mulgrew Miller ao mesmo tempo que ia deixando a sua marca em trabalhos de Common, J Dilla ou no projecto Detroit Experiment, ao lado de Amp Fiddler, Francisco Mora Catlett ou Marcus Belgrave. Nos últimos anos, Riggins dividiu o foco principal na Jahari Massamba Unit, dupla que mantém com o produtor Madlib (ele mesmo uma figura determinante para a abertura de vias comunicantes entre o hip-hop e o jazz), e ainda tocou com Kaytranada, BADBADNOTGOOD, Norah Jones, Diana Krall e Nicholas Payton, sinais de uma carregada agenda que atesta bem o respeito que comanda entre os seus pares. Curiosamente, Karriem Riggins refere em entrevista que foram os constantes gigs de jazz que lhe permitiram comprar a sua primeira MPC 2000 – ao produtor de hip hop House Shoes, nem mais – logo em 1995, encetando a partir daí uma dupla carreira, como baterista e produtor para artistas de rap. No ano seguinte, Riggins conheceu Dilla, uma figura que ele considera determinante na formação da sua própria ética de trabalho. E não só. “O seu estilo nunca envelhece. É muito futurista. É original ao ponto de não poder ser copiado. Não pode ser duplicado. Acontece o mesmo com Thelonious Monk ou Herbie Hancock”, sublinha o baterista. “Dilla fez história. Mão há outros produtores de que possa dizer que mudaram a forma como um pianista ou baixista ouve harmonia porque ele de facto ouvia-a de uma maneira muito original”, referiu Riggins em declarações à Passion of Weiss.

Esta ideia do músico de jazz que é igualmente produtor é talvez mais elaborada em Kassa Overall, outro baterista que também faz beats, que inscreveu o seu nome em fichas técnicas de discos de gente como Geri Allen, Peter Evans, Arto Lindsay e até Yoko Ono e que em 2020 lançou o espantoso I Think I’m Good na Brownswood de Gilles Peterson. Kassa, natural de Seattle, mas baseado em Nova Iorque, descreve-se a si mesmo como um “backpack jazz producer” e isso significa, muito literalmente, que se encara como alguém que assumiu a portabilidade tecnológica do hip hop – viaja sempre com laptop, microfone e interface áudio –, mas que cultivou a veia improvisacional do jazz, permitindo que essa dupla capacidade lhe guie os passos sempre que se cruza com algum músico com quem queira gravar: “Isso nasceu da necessidade, na verdade. Eu viajava muito e tentava fazer o melhor possível com um pequeno orçamento, por isso há que ser criativo”, conta-nos. Essa mobilidade não é, no entanto, apenas física e manifesta-se igualmente na forma natural como vagueia musicalmente entre géneros. “Eu costumava ser assim e sentia-me frustrado: ‘estou farto de tentar encaixar-me nestas diferentes caixas’ [risos]. Mas a dada altura baixa-se os braços e diz-se ‘está tudo bem, assim também funciona’. E pode-se simplesmente abraçar tudo sem fazer distinções. As coisas acabam por se encaixar naturalmente, não temos que deixar que essas distinções nos atrapalhem quando fazemos música. E o melhor que se pode pedir a alguém que venha de outra cultura e que mostre interesse em estudar isto é que mergulhe até ao fim nisto e que perceba estas coisas, porque quem só olha para a superfície é que não percebe. Mas quando se vai até ao fundo, seja com o que for, começa-se a ‘ah, estou a ver, espera aí um bocado: então o Elvin Jones tocava com o Coltrane, mas ele também está neste do Wayne Shorter e o Wayne Shorter tocou com o Miles…’ Quando se começa a fazer todas as ligações entende-se que se trata de facto de uma comunidade de pessoas que formam uma real unidade. É quando se olha mais fundo que se descobrem as pérolas de sabedoria, os tesouros”, explica Overall que remata, com a assertividade de quem sabe ter chegado a uma conclusão irrefutável: “Isso é tudo parte de mim, faz tudo parte de mim, é tudo a mesma coisa, o jazz e o hip hop. E demorei quase a minha vida toda a perceber isso”.

É indiscutível que para os bateristas americanos – e além dos já mencionados Makaya McCraven, Questlove, Chris Dave, Malachi Whitson, Karriem Riggins ou Kassa Overall seria ainda possível apontar casos como os de Jamire Williams ou DJ Harrison que também lançaram relevantes trabalhos em tempos recentes – há um elemento intrinsecamente cultural que ajuda a explicar a fluência em linguagens musicais que apesar de próximas exigem léxicos e práticas bem diferentes. Mas essa proximidade é igualmente explorada noutros pontos do globo por bateristas mais jovens que entendem que há profundos pontos de contacto entre o pulso do jazz que refinam na academia e a cadência do hip-hop que escutam nos clubes. Bateristas como Yussef Dayes, Jas Kayser e Moses Boyd, em Inglaterra, Alexander Flood, na Austrália, Fred Ferreira, em Portugal, ou Teppo Mäkynen, na Finlândia, oscilam livremente entre essas dimensões paralelas, criando novas e surpreendentes ligações na música que fazem.



Mäkynen tem uma longa carreira e gravou em dezenas de projectos desde finais dos anos 90, acumulando múltiplas entradas no catálogo da We Jazz ao longo da última década. “O jazz entrou na minha vida antes do hip hop”, explica-nos ele. “Eu estava sempre a bombar Philly Joe Jones, Tony Williams, Billy Cobham e Elvin Jones no meu walkman. Por isso as minhas bases rítmicas vieram em primeiro lugar de ‘bateristas humanos’. Mas eu sempre fui curioso e quis ouvir vários estilos diferentes e sempre apreciei batidas feitas com máquinas. Ao início pareceu-me mais interessante e lógico aprender a programar esse tipo de batidas do que tentar tocá-las no meu kit acústico. Mas o que me fez mudar essa atitude foi quando pela primeira vez ouvi drum n’bass. Aí comecei a tentar emular batidas no meu kit acústico. Depois disso, em finais dos anos 90, DJ Shadow e J Dilla tornaram-se dois dos meus principais mestres”.

O baterista finlandês não tem dúvidas sobre a extrema importância de J Dilla para a cena jazz contemporânea. “Ele ensinou que toda a gente sente e escuta ritmo à sua própria maneira. Não há certo ou errado, apenas diferente”. Vivemos no tempo de Dilla.


pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos