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Fotografia: André Maia
Publicado a: 06/03/2024

Fomos até ao Salão Brazil para o evento especial da Roda o Centro.

Coimbra tem mais encanto na hora do improviso: como uma roda está a revolucionar o hip hop na Zona Centro

Fotografia: André Maia
Publicado a: 06/03/2024

Algo de especial está a acontecer no centro do país. Coimbra, cidade eternamente universitária e sempre associada ao período glorioso do rock & roll, assiste à ascensão de uma cena artística que se tornou “incontornável”, como descreve José Miguel Pereira, o responsável pela associação Jazz ao Centro Clube, que gere o Salão Brazil, importante espaço cultural no centro histórico.

A Roda o Centro, fundada em Setembro do ano passado, é mais um dos muitos projectos de batalhas de improviso de rua que surgiram nos últimos anos em Portugal fruto de uma forte influência da cultura urbana brasileira, que tem ganho preponderância por cá. Mas a Roda o Centro destaca-se por aquilo que já conseguiu fazer em poucos meses de história, pelo movimento que deixou a fervilhar, pelo papel fulcral que tem tido para revolucionar o hip hop em Coimbra e na Zona Centro no geral. 

“Faço hip hop há 20 anos e nunca vi isto tão unido como hoje”, exclamou um dos organizadores, o rapper e produtor Gonçalo Guiné, na noite de 29 de Fevereiro, quando a roda fez precisamente a sua 29.ª edição, numa sessão especial no Salão Brazil, em que os rappers da casa batalharam uns contra os outros por cima dos instrumentais tocados por músicos de jazz. Rimas cruzadas com trompete, bateria e contrabaixo, do trio que quinzenalmente toca por ali, com a ajuda extra de uma guitarra e de um saxofone. Dois géneros de música umbilicalmente ligados, ambos com a sua componente de improvisação ao rubro.

“Mas também tivemos o cuidado de fazer algum trabalho de casa e preparar algumas coisas básicas, principalmente rítmicas, de cada um dos subgéneros do rap”, explica o baterista Paulo Silva, por coincidência primo de Gonçalo Guiné. “Há algumas diferenças em termos de harmonia, mas a grande diferença são os BPM e os grooves que faço entre bombos e tarolas.”

Oito rappers da casa, dos mais activos na Roda o Centro, trocaram as ruas pelo palco muitos dos quais subiram pela primeira vez a um para se enfrentarem com rimas afiadas perante mais de 200 pessoas que esgotaram completamente o Salão Brazil numa quinta-feira à noite. O ambiente era de verdadeira comunhão, sem fronteiras entre público e palco, com os MCs a puxarem uns pelos outros e também a picarem os pares, como faz parte do jogo , elevando o espírito e o talento um nível mais acima, usufruindo de um lugar de fala. SANJ acabaria por se sagrar o vencedor, numa noite em que Athal, Tulas, Rapha ou Molo, entre outros, demonstraram o seu valor e potencial.

A filosofia comunitária da Roda o Centro, muito idealizada pelo mentor Shark que dirige o projecto com Gonçalo Guiné, o fotógrafo André Maia e a poetisa Betxina , leva a que todos os eventos da Roda o Centro tenham espaço para as outras vertentes da cultura hip hop. No Salão Brazil não foi excepção. Houve momentos de spoken-word, dança, beatbox e street artists a fazerem as suas criações no papel, num espectáculo impressionantemente bem organizado e oleado que teve Shark como um impreterível anfitrião.

Numa altura em que o rap se encontra tão massificado, em que poucos são os eventos que juntam tantas vertentes da cultura, quão bom é regressar à base, despir os artifícios até à essência, encontrar numa cidade como Coimbra um espírito de tamanha união e amor à camisola, em que ninguém tem segundas intenções, em que o objectivo passa apenas por estimular a criatividade e explorar o talento em conjunto, potenciando a partilha? Recomendamos uma ida à Roda o Centro para todos os que procurem um verdadeiro retiro hip hop. É de se sair revigorado e com esperanças renovadas.



Uma roda de improviso que construiu uma comunidade

À quinta-feira à noite, é sagrado. “É dia de missa”, como explica Gonçalo Guiné. A comunidade da Roda o Centro junta-se no skate park, debaixo da ponte, às portas de Coimbra, reivindicando um espaço público e tomando-o como seu para as batalhas de improviso e todos os showcases relacionados com a cultura. Normalmente, existem 16 rappers a competir pela vitória, sendo que as battles são gravadas e publicadas online.

“Tudo começou com o Shark, que é do Norte”, explica Guiné. “Ele estava habituado a ver rodas de improviso lá em cima, e Coimbra nunca teve uma cultura de hip hop virada para o improviso. Ele pensou que seria uma ideia bacana para conseguirmos fazer algo diferente, e começou a trabalhar para esse objectivo. Entrou em contacto com pessoal da Figueira, de Coimbra e de outras rodas do país, tanto do Norte como do Sul, para tentarem perceber como é que se dinamiza um evento e um grupo destes. Aos poucos a malta foi aderindo.”

Já há exemplos de pessoas que começaram por ser ouvintes, arriscaram inscrever-se nas batalhas e agora são rappers da Roda o Centro. “Acaba por haver esse factor de motivação, aquela pequena faísca que resulta na combustão para a pessoa começar a deitar cá para fora o que tem a dizer. O nosso objectivo é mesmo esse, impulsionar a cultura dentro de cada um. E queremos também impulsionar o hip hop na Zona Centro e a Roda veio unificar-nos a todos e meter-nos todos a trabalhar para o mesmo, as várias gerações.”

Esse convívio entre diferentes gerações é promovido dentro das próprias battles, até porque os MCs têm de rimar por cima de beats boom bap, trap, drill e de outros subgéneros do rap. A ideia é que não fiquem presos a uma determinada estética ou velocidade, que possam explorar os limites da sua capacidade, que se possam adaptar a diferentes flows e linguagens, que ultrapassem eventuais preconceitos e se quebrem barreiras dentro da cultura. Mais: quase todos os instrumentais que usam são produzidos por artistas locais, da Zona Centro.

A Roda o Centro tem-se revelado um sucesso, com o público a aumentar de edição para edição. “Isto tem crescido a um ponto de que nós nem estávamos bem à espera”, confessa Gonçalo Guiné. “O sítio onde nós fazemos é perfeito, é ligado à rua, mas não está bem no centro de Coimbra. E aqui em Coimbra as pessoas movem-se sobretudo para o centro, sobretudo numa quinta-feira, que é uma noite de saída universitária. Conseguires ter 200 pessoas em Coimbra à noite no skate park é um feito.”

Atraem público e artistas dos arredores da cidade — de Cantanhede, Pombal, Leiria —, mas também de Lisboa e Porto, entre outros distritos. “Muito pessoal do Norte tem amigos no Sul, ou vice-versa, e querem batalhar uns com os outros e encontram-se a meio. Ou seja, isto acaba por ser aquele território neutro.”

Além disso, têm conseguido promover a tão desejada união na cultura hip hop da região centro. “Não é que estivéssemos de costas voltadas uns para os outros, mas o facto de haver um objectivo unificador faz com que as pessoas comuniquem mais umas com as outras, que contactem mais com pessoas que até podiam conhecer mas com quem não tinham assim tanto à vontade, e naturalmente os projectos vão avançar. Seja na colaboração para fazer um álbum, seja numa ajuda para outra coisa qualquer, sinto que… Por exemplo, eu venho do boom bap e tens pessoal do trap e do drill a participar. E os produtores vão percebendo como se faz as coisas nos outros estilos, começa a haver uma troca de conhecimentos e a malta aprende uns com os outros. O objectivo é dinamizar, criar experiências e passar conhecimento para a malta mais nova. E também aprendermos com os mais novos para estarmos actualizados.”

A ligação ao Salão Brazil aconteceu muito graças a Gonçalo Guiné, habituado a conviver com músicos de jazz e que já tinha alguma proximidade com a sala. “E quando começaram a ouvir falar da Roda o Centro e o movimento que estava a acontecer, fizeram questão de fazermos uma espécie de parceria para este projecto. Muito também pela experiência que é fazeres uma coisa nova numa cidade em que o hip hop não tem grande divulgação a nível nacional. Estamos aqui um bocado entalados entre o Norte e o Sul. Nunca conseguimos ter tanta atenção. E o nosso objectivo como Roda o Centro também é colmatar essa falha.”

Um projecto paralelo já em andamento, que une Guiné e os músicos de jazz do Salão Brazil, é o álbum que irá lançar durante este ano de 2024, através da Blue House, que se encontra neste momento em fase de mistura e masterização. Com secções de sopro, metais de big band, mas também algumas distorções rock pelo meio, promete ser uma peça marcante e representar mais um cruzamento artístico made in em Coimbra.



Um Salão Brazil disponível para tentar fazer persistir uma cultura que não se pretende efémera

José Miguel Pereira entende a missão do Salão Brazil, enquanto espaço cultural com estrutura e raízes estabelecidas, como dar apoio às culturas artísticas emergentes da cidade. 

“A ideia do nosso papel é servir de suporte e numa casa destas faz todo o sentido apoiar cenas emergentes na cidade. E procuramos estar atentos, quer seja na cena do rock, que é tradicional e de certa forma faz parte da identidade da cidade; mas há outras linguagens que começam a ter seguidores e criadores na cidade. O nosso papel é tentar amplificar a força que essas realidades emergentes podem ter.”

Ainda que o centro de Coimbra enfrente hoje uma certa “decadência simbólica”, trazer esta cultura das ruas e das periferias para um palco central carrega sempre algum simbolismo. “Não é muito comum, a grande maioria do público que cá esteve hoje não vem habitualmente a esta zona da cidade. E é muito fixe ver o largo ocupado”, conta o responsável pelo Salão Brazil após o fim do evento. “Estes jovens têm backgrounds diferentes. Há uns que são universitários, outros não estudam nem trabalham, outros trabalham, e muitos vêm de zonas periféricas. Portanto, a sua relação com a cidade é marcada por esse tal afastamento.”

José Miguel Pereira lembra que a cidade de Coimbra já assistiu ao aparecimento de diversas cenas artísticas que, por uma razão ou outra, não conseguiram persistir. A grande flutuação de população na cidade, dos jovens universitários que ali passam alguns anos e depois seguem à próxima fase das suas vidas, pode ser um factor determinante.

“Tão rapidamente como aparecem e se tornam relevantes, estas cenas também desaparecem. Esse é o grande desafio. Não quer dizer que todas as coisas tenham de persistir no tempo, mas é importante que pelo menos tenham a oportunidade de vingar. Esse é o principal problema de Coimbra, porque, quando vivemos super agarrados a uma auto-imagem de uma cidade que teve um período de criação áureo, ligado à cultura do rock, e que depois vive órfã dessa ideia, o que acontece com as outras cenas que vão surgindo é que não se inscrevem na realidade da cidade. Muito porque estas culturas mais jovens estão afastadas do que são os grandes centros capazes de criar condições. E estamos a falar sobretudo da possibilidade de editarem discos, rodarem com esse projecto em específico e poderem de alguma forma fazerem uma trajectória artística.”

Ao mesmo tempo, como nota José Miguel Pereira, a Roda o Centro tem uma componente “orgânica” que vive muito além de qualquer ambição profissional. “Para eles, isto dá-lhes sentido e existe esta dimensão que é super importante, que não tem só a ver com profissionalização, mas que tem a ver com o sentir a vida, e a arte tem uma forma muito especial de o poder traduzir. Como nós somos uma estrutura particular dentro da cidade e existe essa ideia da profissionalização, para nós faz todo o sentido que, a partir destas dinâmicas, consigamos transformar pelo menos algumas delas em algo mais persistente ao longo do tempo. Se uma cena tiver força e condições, muito provavelmente vai criar raízes. Mas é isso que é muito difícil em Coimbra. E, se calhar, por essa razão é que, constantemente, depois de já terem passado quase 30 anos dessa tal época áurea, continuamos a olhar para ela com saudosismo quando há imensas coisas a acontecer que mereciam a nossa atenção e que estão mesmo ao nosso lado. Para nós, hoje, esta noite representa sobretudo isso. Representa esse olhar para as cenas que estão a acontecer, porque é muito fácil ficarmos perdidos naquilo que é a rotina quotidiana, mesmo estando nós ligados à área artística. É muito fácil não vermos as coisas que acontecem à nossa volta. E, no caso deles, acho que o principal triunfo da Roda o Centro é que eles tornaram isso impossível. A partir de um determinado momento, ninguém conseguia ficar indiferente, tinha de se perceber que alguma coisa de especial estava ali a acontecer.”

José Miguel Pereira mostra-se disponível para “apoiar projectos que possam surgir” deste meio, mas salienta que eventos como este não têm necessariamente de ser regulares como parte desse esforço. “Aquilo que fizemos aqui não quer dizer que se tenha de repetir sempre, porque o que há de verdadeiramente especial é essa tomada do espaço público, por eles, e a transformação disso numa cena que os anima.”

Gonçalo Guiné comenta no mesmo sentido. “Queremos ter este tipo de projectos para mostrar o hip hop à cidade, aos públicos que não são do hip hop, e levá-lo por outros caminhos. Mas queremos manter sempre esta raiz underground: hip hop não é só teres sons na Internet, não é só dares concertos. O hip hop vem da rua, não vai deixar de existir na rua e o nosso objectivo é mostrar esse lado.”


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