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Fotografia: Joana Linda
Publicado a: 02/03/2022

De costas à procura da calma para parar o tempo.

Clothilde: “Estou sempre a criar imagens na minha cabeça. O meu trabalho acaba por ser muito cinematográfico nesse sentido”

Fotografia: Joana Linda
Publicado a: 02/03/2022

Clothilde é das compositoras de música electrónica mais intrigantes da cena portuguesa: utiliza máquinas e sintetizadores modulares feitas pelo seu companheiro Zé Diogo aka HOBO & The Birds; cria paisagens emocionais e estéticas que nos enchem de texturas e melodias; gosta de sons secos e explorar a brutalidade dos mesmos; o seu trabalho parte da experimentação modular de frequências eléctricas e de comprimentos de onda; o seu álbum de estreia, Twitcher, foi lançado pela Labareda em 2018. Em 2020, centrou-se nas bandas sonoras de A Importância de ser Alan Turing, de Miguel Bonneville, e Os Princípios do Novo Homem, de Pedro Saveedra.

Estivemos à conversa com Sofia Mestre a propósito do seu próximo concerto no Rescaldo, festival que acontece mais logo nas DAMAS, em Lisboa.



Li que a tua actuação no Festival Rescaldo irá “problematizar o tempo enquanto protagonista de uma banda sonora imaginária para um filme que cada um de nós ajudará a criar como ouvinte”. As sugestões deste desafio são apenas sonoras ou haverá também sugestões gráficas?

Não. Na música nunca trabalhei com imagem. Venho da imagem e talvez por isso é que não trabalho com ela. Adoro o facto de (percebi isto tocando) cada pessoa ver uma coisa diferentes nos meus concertos. Constatei-o devido a pessoas que vinham falar comigo depois. Sinto que quando metes imagens é mais difícil chegar à abstracção. Gosto de não condicionar o imaginário de quem assiste. Gosto de coisas secas, acho fixe não ter que adereçar tudo. As máquinas são lindas, as pessoas estão ali e vêem-me a trabalhar. Toco de costas, não só por isso, mas porque me ajuda a concentrar e a esquecer que estou diante de pessoas num palco. De costas não vejo ninguém.

Imagino então que o cenário e as luzes sejam despojados…

Não vão existir, não vou fazer nada. Só música.

Quem escreveu esta descrição foste tu ou alguém da equipa do Rescaldo? [Nota: os textos são da autoria do Rui Pedro Dâmaso.]

Foram eles. Pediram-me para dizer aquilo que ia fazer. Nunca me tinha acontecido… Agora vou ter que dizer alguma coisa [risos]! Não pode ser em vão. Ando muito obcecada com a história do tempo. A pandemia afectou muito a nossa percepção do tempo. Este tema sempre me fascinou e agora mais. Na música não é excepção. Fico muito nervosa em palco e são poucos os concertos que consegui dar o tempo que gostaria de ter dado, fico muito nervosa. Acabo por fazer tudo muito depressa.

A última faixa, “A Base”, da banda sonora da peça de Pedro Savedra, Os Príncipios do Novo Homem, que está no Bandcamp, tem 45 minutos.

É o lado B da cassete. A peça tinha oito princípios. O conceito da peça era redondo, o princípio era o fim e o fim era o principio… Comecei a pensar naquilo. Foi a primeira vez que trabalhei tão conceptualmente em música. Participei no processo criativo. Já estava a acontecer música ainda antes da entrada das pessoas, quando saíam continuava… Estava sempre presente, era uma cena para ficares ali completamente… 

Um loop hipnotizante…

Exactamente! Propus isso, ele gostou. Quando o Zé Moura, o Márcio e o André propuseram-me editar a banda sonora porque adoraram o trabalho, eu não sabia o que fazer! Decidi fazer assim, as quatro faixas de um lado e “A Base” inteira no outro. Nesse álbum tenho faixas muito grandes pela necessidade da peça. Cada princípio tinha 10/20 minutos e aquilo para mim foi doloroso. No meu primeiro álbum, Labareda, são coisas mais… O meu tempo são 7/9 minutos. Quando estou satisfeita e olho para o relógio são sempre estes números que me aparecem. É impressionante! Aquela banda sonora desafiou-me a chegar até aos 12 minutos… Parecia que estava a encher chouriços. Foi difícil. Posteriormente aprendi muito com o Miguel Bonneville, com quem fiz o espectáculo A Importância de Ser Alan Turing. Muita coisa sobre palco e performatividade. Sou doida por Éliane Radigue, ela é para mim a senhora do tempo. Quando for grande quero fazer uma peça com aquela calma: estar uma hora e tal a levar as pessoas para qualquer lado.

A nível conceptual, o tempo que falas é mais o tempo que demoras com as tuas máquinas, o tempo da tua composição, porventura um tempo não tão filosófico?

Sim, não tão filosófico. O concerto do Rescaldo será nas DAMAS, se fosse num auditório esta peça seria outra coisa. Gosto muito de tocar nos espaços, de perceber as suas reverberações. Foi uma coisa que descobri à medida que fui tocando. O meu primeiro gig foi nas DAMAS. Estou muito feliz porque vou voltar ao sítio onde nasceu a minha cena [risos]! Vou adaptar-me ao espaço, conheço-o bastante bem. Fui lá muito como cliente. O tempo tem várias camadas, pode ser a duração das coisas, a sua repetição, então vou estar na onda do… Até que ponto é que ficamos mesmo fartos de ouvir uma coisa? Será apenas um patch, que é complicado, mas vou trabalhá-lo com muito poucos elementos sonoros. Vou tentar trabalhar nesse sentido, mais do que propriamente naquele tempo onde as coisas estão ali…

A crescer…

Vai acontecer! Mas será particular. Acho que os crescendos não funcionam bem naquele espaço…Se calhar sim…

É a tua percepção do espaço

Sim, é a minha percepção. Será por aí. O tempo das coisas, que é tão abstracto e tão fixe, a minha relação com o tempo, os nervos…

Constróis as tuas máquinas em conjunto com o Zé Diogo?

Não, é apenas o Zé. Não sei nada sobre isso e nem quero saber [risos]! Eu ajudo a fazer cabos.

O Zé desenvolveu máquinas específicas para o setup que vais utilizar nas DAMAS?

Não. O Zé desenvolveu uma coisa. Vou levar um orgão antigo que acabámos de comprar. Fiquei muito fascinada com os seus vibratos! Vamos levar o orgão aberto e sequenciá-lo. Ligo um cabo a uma nota. O Zé construiu uns cabos incríveis com uns jacarés As notas saem super limpas! Não o vou tocar, apenas sequenciar.

Além deste orgão vais ter também modulares?

Sim, sim. Vou com menos máquinas, houve várias que coloquei de parte. O patch é muito complexo. Normalmente faço patchs muito simples porque gosto de cenas secas, brutas. Nada de floreados e adereços. Vai haver muita modulação, muitos osciladores a modular delays, feedbacks de delay, cut offs, mas menos máquinas. 

Quais são as tuas principais referências ao nível da composição?

É muito difícil porque adoro música… Terry Riley, sem dúvida. Éliane Radigue, que já mencionei. Sempre gostei muito de música, sempre ouvi muita música com os meus pais… Era muito fanática por música em pequenina. Gostava muito de punk e continuo a gostar. Ouço música clássica… Brian Eno, outra referência importante.

Falando do teu processo criativo: qual é o espaço que a improvisação tem no teu processo? Trabalhas muito com improvisação, ou pelo contrário fazes um guião?

O meu processo mudou um bocadinho. Aprendi imenso com o Miguel Bonneville, com o espectáculo que fiz com ele. Sou ainda uma criança na música, isto começou há seis anos. Cada vez que ia tocar preparava um concerto novo… E trabalhava… Estás a ver! Não me ocorria outra possibilidade [risos].

Não te ocorria que podias fazer o mesmo live, ou partir de algo que já tinhas feito [risos].

Não [risos], estás a ver… Andava cheia de ataques de pânico porque estava sempre a fazer um concerto novo. A relação com o Miguel ajudou-me a compreender isso, que posso compor em cima de alguma coisa já feita que não será igual. Não tem mal nenhum, vou…



Encadeando certas acções…

Exacto. Toquei em Viseu no sábado passado e agora vou tocar no Rescaldo. Já percebi que posso ir trabalhando a mesma peça. É a primeira vez que vou fazer isto. Começo sempre por imaginar onde quero andar em termos de paisagens. Paisagens não muito literais. Começo a explorar a partir daí, é o que me dá mais trabalho. São dias, semanas… Muita coisa muda até encontrar sons que queira trabalhar e que me apetece juntar uns com os outros. 

Partes da experimentação de várias máquinas e consequentemente vais canalizando o seu número…

Começo por ligar uma… E depois é, agora apetece-me isto, agora aquilo e no final estava tudo uma merda! Volta tudo atrás, recomeço e ando assim, às voltas. Quando já tenho as coisas minimamente imaginadas, começo a sentir os sons e a perceber por onde é que posso começar, de que maneira posso evoluir. Vou construindo uma ordem, uma espécie de pauta e depois logo se vê onde vai parar. Já experimentei um bocadinho de tudo mas faz muito mal aos nervos [risos], não é para mim.

Tens tendência a ser obcecada com uma máquina, ou com um patch?

Sim, tenho. O meu primeiro álbum é feito todo com o mesmo patch. Sou um bocadinho obcecada. Se for apanhar lingueirão, como já aconteceu, passo seis horas à apanhar lingueirão e esqueço-me de tudo o resto.

Quando tocas existe alguma margem para aquilo que não sabes que vai acontecer, ou já tens tudo preparado?

Depende. Tenho as coisas preparadas. Gosto muito de começar a lançar os sons e a perceber como é que tocam no espaço. O que é que a sala me dá de volta quando lanço os meus sons. O concerto que fiz numa daquelas prisões redondas foi incrível. Uma reverberação fora! O concerto acabou numa cena rock industrial com synths. Ouvi frequências que nunca tinha ouvido. O reverb era tal que não reconhecia os sons que estava a mandar.

Tens o teu próprio técnico ou vais trabalhar com o técnico das DAMAS?

O Zé é que faz o sons para as meninas [máquinas], controla a sua mesa de mistura, mas sim, vou trabalhar com o técnico das DAMAS. No entanto, é uma coisa que penso cada vez mais porque já sofri.

Pois, como o teu setup é muito particular.

Tu é que dás a cara quando algo corre mal. É lixado, já estive traumatizada por coisas que correram mesmo muito mal.

Olhas para as paisagens que crias como um processo introspectivo?

Tem dias. Quando as construo é obviamente muito pessoal. São espaços ou paisagens que não consigo descrever a ninguém. Nos meus 20s adorava fazer CDs para oferecer a amigos. Eram tipo bandas sonoras, algo que sempre me fascinou. Fazia a capa… Dedicava-me. As imagens são muito importantes para mim, estou sempre a criar imagens na minha cabeça. O meu trabalho acaba por ser muito cinematográfico nesse sentido. Todas as faixas que faço são um take. Eu não edito, não mexo, são masterizadas e pronto. 

E no teu percurso recente tens feito bastantes bandas sonoras.

Aconteceu! Foi acontecendo. Nunca mandei uma demo a ninguém, não pedi para tocar em lado nenhum, não pedi para fazer projecto nenhum. Tenho cavado mesmo muito para tudo e não quero cavar por isto. Se me continuarem a chamar para fazer coisas, muito bem, mas quero que a Clothilde tenha vida própria. Não é arrogância, só não me apetece lutar por isto.

Qual é a história do teu alter-ego? 

Vivi em Barcelona e tínhamos um estúdio de trabalho. Era aquela pessoa que estava sempre a pôr música enquanto trabalhávamos. Passava de tudo e havia sempre uma música da Clothilde, compositora francesa. Aparecia sempre uma musiquinha dela. Por vezes estava concentrada a trabalhar, a música acabava e a malta: “‘tão, DJ Colthilde, como é que é?” [risos]. Começaram-me a chamar Clothilde. Fiz um trabalho de ilustração e decidi começar a assinar Clothilde porque não queria expor o meu nome. Foi assim.

Quais são as tuas próxima datas?

No dia 18 de Março vou tocar no Barreiro com a OUT.RA, em Junho vou tocar em Beja no MUPA – Música na Planície e vou fazer uma residência para o festival de Saint-Denis que será apresentado em Portugal e em Paris.

Já estás a preparar o teu próximo álbum?

Sim! Vou no início de Abril para uma residência na Ilha da Culatra a convite do Teatro das Figuras de Faro. Vou estar lá uma semana e a ideia é começar a trabalhar no novo álbum.


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