16 anos depois, Pusha T e Malice decidiram que estava na hora de sacudir o pó. Entendedores entenderão. Os Clipse estão de volta com um regresso marcante, quase sem pararelo, neste universo do rap mundial. Após um hiato algo inesperado para quem está deste lado, os irmãos Thornton estão de volta com o novo projeto Let God Sort Em Out e deixam-se dos óbvios saudosismos. Infelizmente, sabemos o quão mal a pegada musical de alguns rappers tem envelhecido, vários sem a pujança e fome de outros tempos, mas no caso dos Clipse a realidade é bem diferente.
A dupla anunciou um interregno, que agora quebra, muito por “culpa” de Malice já não se sentir confortável com este registo lírico permanentemente conectado a um estilo de vida perigoso e fora da lei, alterando na altura o seu nome artístico para “No Malice” e enveredando por música bem mais espiritual e ligada a religião. Digamos que, passados 16 anos, a saudade falou mais alto, assim como a sua malícia interna, e aqui estamos nós perante um pecado lírico de excelência.
Os últimos anos do rap mainstream têm-se pautado por melodias de excelência, refrões “peganhentos” e apenas ocasionalmente vamos vendo lampejos de lírica com um certo pedigree, algo que é um grande destaque neste novo disco dos Clipse. A caneta de Pusha T e Malice não tem vestígios de ferrugem, até pelo contrário, está em ponto-rebuçado. Por aqui temos rimas de grande quilate, com duplos e triplos sentidos que valem a pena o replay, um egotripping maquiavélico desmedido que se vai aliando ao coke rap no qual os irmãos são absolutos mestres. Se a expetativa para que o grau de pureza deste novo disco era esse, temos um spoiler: é totalmente verdade. Apesar disso, a abertura deste Let God Sort Em Out parece indicar um caminho mais vulnerável/sensível para a dupla, num dos raros momentos em que escutamos uma espécie de desabafo em jeito de homenagem aos falecidos pais dos irmãos. O tema “The Birds Don’t Sing” carrega um peso emocional singular, sendo dos momentos mais íntimos que artistas desta dimensão apresentaram em memória recente — tudo isto acompanhado por um refrão bem intenso de John Legend.
Mas chega de lamechices. Voltemos ao costume. O quarteto de faixas que se seguem são de deixar qualquer um boquiaberto, mas vamos por partes. Primeiro, temos “Chains & Whips”, uma produção bem sinistra de Pharrell Williams que encaixou que nem uma luva nas palavras frias e dilacerantes do convidado Kendrick Lamar, que costuma dar (e muitas) dores de cabeça a quem lhe abre a porta do seu mundo artístico — e aqui não foi diferente, pois Kenny está sempre num nível estelar e bem solitário, onde só ele reside.
A fasquia estava bem lá em cima, mas eis que surge “P.O.V.”, com porta aberta para novo convidado: Tyler, The Creator surge com o seu estilo surrealista carregado de ironia, que tão bem o caracteriza, e apresenta-se a um nível muito interessante neste tema, com algumas barras a la Clipse, cheias de trocadilhos e duplos sentidos. É a ligação West Coast-Virginia a funcionar na perfeição, com 2 convidados diretamente de Califórnia a brilhar no meio dos veteranos.
É uma abertura de álbum a deixar a competição em sobressalto, com três bangers incontestáveis. E se três foi a conta que Deus fez, é hora de abrandar, certo? Errado. O pecado dos Clipse ainda agora tinha começado e é o quarto tema deste projeto que enlouqueceu toda a gente. “So Be It” é um instant classic, daqueles que não engana ninguém e vai ficar nas playlists de muita gente por um longo período de tempo. Pharrell Williams apresenta aqui uma das melhores produções da sua história recente, com uma abordagem muito pouco ortodoxa a soar altamente refrescante e inovadora. Falamos de um instrumental com elementos orientais, mas com um bop daqueles à real american, carregado de um groove diabólico e que contagia mais e mais a cada segundo que passa — é impossível não termos uma reação corporal ao bounce. Mesclando isto à “língua afiada” dos reguilas Pusha T e Malice, está dada a fórmula perfeita para uma das faixas seminais deste 2025. “So Be It” é daqueles clássicos à séria que merece todos os elogios.
É exatamente aqui que reside este o clímax deste LP, um 10/10 que se adivinhava difícil de superar — e assim foi, naturalmente. Mas desengane-se quem acha que o resto do alinhamento é uma curva descendente a pique — nada disso. O casamento dos Clipse e Pharrell mostra-se frutífero e realmente belo, com 13 “filhotes” muito bonitos, cada um à sua maneira, com o veterano dos The Neptunes a um nível muito alto na sua mestria da produção, a misturar estilos, a piscar o olho às guitarradas, aos trompetes… Enfim, há para todos os gostos. Um verdadeiro trabalho de autor sempre disruptivo como nos habituou, até desafiante em certos momentos, com alguns instrumentais mais difíceis de assimilar.
Já os Clipse mantêm a tónica do seu coke rap regado de muito braggadocious, teimando inchar o seu próprio ego e também o de quem os escuta, num género de jogo da batata-quente entre dois irmãos sempre a procurarem superar-se a cada música — e nós, aqui, a esfregar as mãos de contentes por podermos apreciar tudo isto. Para repartir essa tarefa, convidaram também para este jogo de craques nomes como Stove God Cooks, rapper nova-iorquino que é dono das discografias mais consistentes e inovadoras da última década e que bem merece aparecer por aqui em “F.I.C.O.”. Mas não só o underground está representado, já que um tal de Nasir Jones (aka Nas) reforça a ligação já estabelecida entre Virginia e Nova Iorque com dezasseis barras a recordarem-nos do seu legado quase ímpar, em “Let God Sort Em Out/Chandeliers”.
Para aqueles cujo tempo escasseia nesta era do instantâneo e que não conseguiram digerir tudo o que por aqui foi escrito, invocamos mais uma sigla (este álbum tem quatro) para filtrar a nata da receita. TL;DR (Too Long; Didn’t Read): Let God Sort Em Out é imperdível e é dos melhores discos que 2025 vai ter. Vão ouvi-lo que não se arrependerão.
Os Clipse saíram da reforma, que mais pareceu uma hibernação criogénica, porque preservaram quase na perfeição tudo aquilo que os caracteriza enquanto dupla de rap. O novo disco dos irmãos Thornton é feito de um material volátil que tem de ser tratado com respeito, pois devido ao patamar em que se situam sabe sempre a um reencontro raro e especial, instantaneamente elevado a sério candidato a disco de rap do ano. Certamente que, depois disto, se sentem tentados a dar play a Let God Sort Em Out, mas atenção, que isto é mesmo culturally inappropriated.