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clipping.

Visions of Bodies Being Burned

Sub Pop Records / 2020

Texto de Miguel Santos

Publicado a: 10/11/2020

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“Do you like scary movies?”, pergunta-nos o rapper Daveed Diggs em “‘96 Neve Campbell”, uma referência ao filme Scream que surge na música depois das rappers Cam & China anavalharem o beat de banger industrial com o ocasional 808 demoníaco, numa fiel homenagem ao icónico personagem desse franchise. A referência é uma das várias ocasiões em que a letra e/ou a batida de uma música de Visions of Bodies Being Burned dos clipping. nos transporta para um universo assombrado, ensanguentado e vívido nos olhos e na mente através dos ouvidos, com pessimismo e niilismo a juntarem-se à festa que nem convidados de honra. 

Por isso, antes de se aventurarem, um conselho de amigo: abandonai toda a esperança vós que escutais porque o novo álbum do trio americano não é para ser escutado de ânimo leve. Nesse sentido, não foge da restante discografia deste grupo de hip hop experimental. Mas à semelhança do seu antecessor, o ambiente terrorífico, crepitante e tenso que se ouve tem mais que se lhe diga. Como sequela espiritual de There Existed an Addiction to Blood, este projecto volta a apostar num horrorcore arrepiante, mostrando um conjunto de instrumentais macabros e desfragmentados, cortesia de William Hutson e Jonathan Snipes,que acompanham a poesia provocadora de Diggs. 

Este ambiente literalmente de cortar à faca é também conseguido através de colaborações com outros artistas. Em “Looking Like Meat”, os clipping. contam com os barulhentos Ho99o9 para uma colaboração vocal gritada acompanhada por uma batida que é berrada, um relato canibal em que sentimos as orelhas a serem comidas. Com SICKNESS e o seu noise frenético emprestado a “Body for the Pile”, a colaboração é instrumental: auxiliado pelo hook mais macabramente catchy do ano e com um piscar de olhos a uma faixa de Kendrick Lamar, Diggs descreve em pormenor a morte de três polícias sob uma batida progressivamente mais rápida e avassaladora. Aqui e em todos os temas em que o ouvimos, a maneira como o faz raramente é na primeira pessoa, mostrando-se mais observador e relator do que interveniente naquilo que descreve.



Daveed Diggs é o narrador e o jornalista de oculto de serviço em Visions of Bodies Being Burned, invocando fielmente vários personagens da mitologia do terror e do hip hop. Em “Say the Name”, abanamos a cabeça ao som do groove de Candyman e “paragens” por canções de Ol’ Dirty Bastard ou “Mind Playing Tricks on Me” com hook aterrorizador e profético de Diggs “possuído” pelos Geto Boys. Em “Pain Everyday”, os clipping. recrutam o investigador paranormal e músico Michael Esposito para um tema sobre a vingança dos fantasmas dos homens e mulheres negros que perderam a sua vida pela mão e pelo laço de homens e mulheres racistas. A batida é frenética e concluída por um fúnebre arranjo de cordas, e as gravações áudio EVP de Esposito — sons que alguns interpretam como vozes do além —  acrescentam uma dose de “realidade” à estética da música. 

É claro através da experimentação instrumental de Hutson e Snipes que os produtores vão buscar inspiração aos mais variados sítios. E se o frenesim é a imagem de marca de muito do material de Visions of Bodies Being Burned, “Enlacing” prova que o cloud rap também faz parte deste universo. A música fala sobre abraçar o niilismo com um comprimido na língua, uma viagem psicadélica ao fundo do ser e ao fundo do fundo, auxiliada por um sample intoxicante. Em “Check the Lock” usam uma linha de baixo aliciante para nos convencer a nós e a um paranóico chefe do submundo que está tudo bem. São temas que nos dão uma falsa sensação de segurança no meio de todo o caos experimental, importantes para que este projecto não se torne moroso durante os 50 minutos que o compõem.

Ainda que seja longo, a potência de Visions of Bodies Being Burned é melhor apreciada num contínuo, e de preferência em intervalos espaçados. Porque ouvi-lo pela segunda vez é como ver um filme de terror e fechar os olhos em pavor mesmo sabendo onde e como são os “piores” momentos, No final, não somos talhados por um maníaco de motosserra e não recebemos uma chamada a dizer que teremos um fatídico encontro com o destino daqui a sete dias. Mas tão depressa não esqueceremos o que acabámos de ouvir.  


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