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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/11/2022

Uma viragem que permitiu a abertura a um leque mais complexo de emoções.

Claire Rousay: “Toquei bateria toda a minha vida e senti necessidade de mudar algo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/11/2022

É um dos nomes mais essenciais na música contemporânea dos nossos tempos. A norte-americana Claire Rousay tem vindo a abrir novas expressões que desafiam a perceção do que – de um modo confortável – poderíamos chamar “música ambiental”. A abordagem free form que caracteriza o seu trabalho não se limita às paisagens digitais oníricas, envolvendo sons captados do dia-a-dia e, acima de tudo, explorando as maravilhas da natureza ambígua das coisas. Somam-se colaborações e projectos paralelos constantes, oferecendo uma discografia que não cessa de crescer.

Aquando da sua passagem pela edição deste ano do OUT.FEST, o Rimas e Batidas teve a oportunidade de se reunir com Rousay na véspera da sua apresentação e recém-chegada de uma longa viagem transatlântica. Descontraída, de cerveja de mão e sorriso genuíno, esteve à conversa sobre o percurso que traçou até aqui, o papel dos sonhos no acto da criação ou do volte-face que a pandemia trouxe para a sua vida pessoal e artística.   



Sei que tens andado bastante ocupada nos últimos meses, com edições e concertos. Ainda há pouco acaba de ser lançado um EP colaborativo com Circuit des Yeux; como aconteceu este encontro?

Sim, basicamente a Haley [Fohr] descobriu a minha música a dada altura e, pouco a pouco, ao longo de dois anos, fomos desenvolvendo uma amizade. Inicialmente online; até que surgiu a oportunidade de nos conhecermos pessoalmente. Foi aí que ela expressou a ideia de criar um algum de remisturas… e aí disse: “OK, isso soa a um projecto sério” [risos]. E daí tive a liberdade total em escolher as músicas para trabalhar e ter essa possibilidade de fazeres o que quiseres, sabes, sem ter de soar a isto ou aquilo… gosto disso.

Com um fluxo de trabalho tão intenso como o teu, fico curioso em relação ao teu processo criativo. Como é que afinal tudo acontece?

[Silêncio] Hummm… foi semelhante durante algum tempo, mas tem estado a mudar de momento. Originalmente, os field recordings seriam a base para o que poderia vir. Estava constantemente captando sons e a organizá-los numa espécie de biblioteca, para depois selecionar um certo momento que sentisse maior interesse e daí criar espaço para a música. Os field recordings inspiram-me muito em termos harmónicos e melódicos. No entanto, mais recentemente, tenho estado envolvida em tantos e tão diferentes projectos e tipo coisas que nunca tinha feito antes-

Imparável, na verdade

Sim, meio insano [risos]. Mas agora sinto que é quando toco ao vivo que muitas das ideias nascem. Tenho estado a colaborar muito — com a Haley e um par de outras pessoas mais -–, embora, ocasionalmente, também esteja a tocar com um ensemble. E em muitos dos meus concertos tenho um violinista e uma harpista a tocar comigo.

Oh, wow.

Sim, maioritariamente com um duo de amigos chamado LEYA

São incríveis e tocaram em Lisboa este ano.

Oh, é verdade, eles contaram-me. Então tenho estado a tocar imenso com eles e interpretamos a minha música tal e qual uma banda, o que é algo bastante divertido. E, claro, isso inspira-me muito, trabalhar com outras pessoas mais do que estar sozinha nesse processo.

Claro, porque inicialmente começaste por tocar bateria, e outras formas de percussão, até que lentamente começaste por desenvolver um trabalhado em redor do que poderíamos chamar de ambient… embora acredito que o que faças vá bem além disso. Conta-me como esta mudança de registo surgiu?

[Pensativa] Na altura estava a tentar comunicar ideias muito específicas. Como disseste, tocava bateria e.… de certa forma, não sei, é desafiante e é realmente difícil; isto no sentido de criar narrativas onde possam caber emoções bastante complexas. Portanto, esta mudança de abordagem instrumental revelou-se a melhor forma de exteriorizar sentimentos e coisas que necessitava como a solidão e todas as cenas humanas universais – e isso é bastante difícil de transmitir através da bateria. Quer dizer, podes fazê-lo, alguns artistas conseguem fazê-lo, mas eu não sou a pessoa [indicada] para o fazer [risos]. Por isso foi interessante começar a trabalhar com field recordings, teclados e afins… e é engraçado porque estou a fazer isto há cerca de dois anos e tal e sinto que consigo de modo mais fiel transmitir o que sinto.

Sim, e é como dizes, não é fácil trabalhar emoções complexas e talvez este seja um canal mais transparente e directo para o fazeres

Totalmente. É mais directo e, na verdade, também mais desafiante, pois toquei bateria toda a minha vida e senti necessidade de mudar algo.

Certo. E, diz-me, o que inspira mais no momento em que estás a gravar?

Bem, quando estou sozinha normalmente crio algo mais pessoal, e que outras pessoas também poderão sentir, mas que não querem falar… tipo, todo o lado negro que temos, que sentimos e que se tornam desconfortáveis talvez. E depois, claro, encontrar inspiração nos sons.

Sentes-te mais confortável expressando estas emoções pela música ou através das palavras, comunicando sobre elas? 

Acho que não sou directa ou confrontativa, mas sim uso muitos textos nas minhas peças sonoras ou gravações de conversas e samples da Internet ou até palavras geradas em discurso por recurso ao computador… é mais fácil do que recorrer à minha própria voz. Contudo, estou a modificar isso, principalmente nos concertos.



Por outro lado, o teu trabalho colaborativo com More Eaze [Mari Maurice] soa bastante diferente do registo a solo, bordeando, inclusive, os limites da música pop. Parece uma mudança radical, mas resulta estranhamente bastante bem.

Ela [Mari] ensinou-me a usar muitas das ferramentas que uso de momento. Não sabia trabalhar com o Ableton Live até há, tipo, dois anos…! E é um pouco como o processo de escrita de canções. Sempre gostei do formato de canção e da escrita associada, mas ela foi quem me puxou a fazê-lo. Durante a pandemia começámos a colaborar remotamente, enviando excertos de composições uma à outra, e assim cada uma adicionar e complementar com guitarra, voz, e às vezes até com baixo e bateria, tornando-se uma espécie de álbum pop. É certo que muita gente não gostou, até porque usámos auto- tune – e agora estou meio que viciada. Satisfaz-me bastante, sabes-

Sim, entendo, e não encontro mais ninguém a fazer algo remotamente semelhante ao que vocês estão a fazer.

Yeah. Lembro-me que algures entre 2008 e 2010, houve alguns artistas na indie pop a recorrer ao vocoder, e eu gostava muito, mas é o que me lembro de mais próximo ao que fazemos. No fundo, gostamos de adicionar um filtro ou uma distorção às vozes, e é um bocado aquela cena de: porque não criarmos música que normalmente gostaríamos de escutar enquanto estamos, tipo, a conduzir? Pelo menos é algo que eu gostaria de estar a ouvir enquanto estivesse no carro – e acontece.

Tenho adorado o ritmo com que vais disponibilizando novos discos e mostrando novas colaborações. De certo modo, assemelha-se a um registo documental em tempo real sobre os nossos tempos seguramente complexos, para todos. Achas que o nosso tempo se está a esgotar, como um capítulo à beira de um fim? Por vezes sinto isso através da tua música.

Sabes que é bastante interessante que digas isso. Tenho pensado imenso nessa ideia ultimamente. Principalmente quando estou num avião, de concerto para concerto, e não tenho ligação Wi-Fi, nem conheço ninguém a bordo com quem possa falar. E começo a pensar nisso, que poderá ser a última vez que vou fazer algo ou viver determinado momento. Sinto que o tempo se escapa e por isso mesmo busco fazer o máximo possível enquanto sinto essa fuga. 

É interessante que tenhas falado há pouco sobre a situação do lockdown. Sinto que cada um de nós tem uma experiência e uma história diferente para contar. Que impacto teve este momento na tua vida artística e qual terá sido a maior lição que levaste?

No meu caso, basicamente foi quando comecei a criar música sozinha, sem bateria. Comecei por disponibilizar música no Bandcamp, sem autorização de ninguém e como queria. Começou um pouco assim. No passado tinha feita imensas digressões e várias sessões de estúdios com bandas e artistas e já fazia tempo que não estava sozinha comigo mesma. E durante a pandemia experienciei um final de relacionamento amoroso longo e uma mudança de residência… foi do tipo, terminar esta relação, mudar-me para outra cidade, outra realidade, e de repente… surge a pandemia. Então, tudo isto conflui na mesma altura e senti esta realidade tão nova e tão isoladora que tive de fazer algo com isso. Foi um bocado o início do que me encontro a fazer agora.

Lembro-me que fizeste alguns concertos em registo streaming durante esse período. Como foi para alguém tão habituado a digressão e palcos de repente recorrer a uma via menos física como tocar através de plataformas como o Zoom?

Sinceramente, não adoro nem odeio. É outra coisa. Mas foi, de facto, curioso, porque comecei a receber vários convites – até de festivais – para tocar neste formato. E não estava habituada a isso. Lembro-me que [o festival] Rewire convidou-me para actuar em streaming e nem imaginava que eles conheciam o meu trabalho-

Surpreendeu-te esse interesse?

Completamente, e com isso uma mão-cheia de coisas aconteceram. Recebia convites de festivais que queriam muito que participasse, mas que devido à pandemia não iriam acontecer; e isso surpreendeu-me pois não fazia ideia estar no radar destas pessoas [risos]. E daí começaram a surgir mais convites… e é incrível, sabes, ter essa possibilidade de te pagarem para viajares até longe e ir tocar. E é o que estou a fazer neste momento. Em todo o caso, nunca vi streaming enquanto um formato, mais como uma outra forma de fazer chegar a minha música. Definitivamente foi um meio importante para uma comunidade mais ligada à música experimental nesta época. Até inovador, acho.

Sem dúvida. Também noto que tens uma atitude em palco mais confrontativa, quase cara-a-cara, onde às vezes dialogas com o público, numa atitude bastante punk, diria; embora simultaneamente frágil.

Sim, estou a melhorar nesse ponto, em sentir-me mais confortável. E gosto bastante dessa posição. Existe igualmente um certo poder, o que particularmente não gosto. Ou seja, a pessoa que está a actuar pode fazer realmente o que quiser, mesmo que seja algo mais nocivo ou confrontacional, há sempre aquele contexto, de “ah, é uma performance” e que de certa forma se respeita. É como uma zona segura. Mas, sim, gosto imenso de actuar e desse lado de confronto, e de estar perante um público. Por isso busco essa interação com as pessoas. Por exemplo, tenho estado a fazer esta dinâmica de entrevistar a audiência enquanto toco através do meu telefone e depois passar via AirDrop para o computador e assim processar o som. Em suma, envolver as pessoas, tomá-las como participantes ao invés de estarem meramente sentadas a assistir. Não me parece muito justo depositar uma série de emoções sobre elas e não as deixar interagir com isso. Julgo que essa ética punk encontra-se presente, sim… de agarrar e nivelar esse poder. 

Creio que a tua música aporta algo ligado aos sonhos e a um determinado estado hipnagógico. De que forma estes elementos se apresentam para ti?

Eu gosto de pensar nos sonhos de uma perspectiva múltipla. Houve uma época em que não sonhava de todo, mas agora, sim, sonho, o que é bom [risos]. No entanto, esses elementos são, para mim, bastante interessantes e apelativos. Tento usá-los mais e mais neste momento, mimetizando-os na música. Foi um pouco a razão pela qual também mudei o meu set de instrumentos.

Conta-me um pouco sobre o teu projecto na editora que criaste, a Mended Dreams. Sei que tens editado muito material teu. Porquê esta necessidade de lançares a tua própria música quando já estás envolvida em múltiplas editoras?

Tudo começou com o meu amigo que tem esta editora, a American Dreams Records, onde editei um disco. Daí comentei que já tinha mais 10 projectos prontos, e ele sugeriu em criar um canal próprio em que pudesse lançar material quando e como queria. E, obviamente, colaborações ou edições muito limitadas em cassete. Isto para não ter de esperar tipo 18 meses até ter um álbum devidamente pronto e às vezes com editoras diferentes. Foi também uma forma de editar muita música que tinha comigo há anos, especialmente trabalho percussivo, que assim foi editado. Trata-se de reeditar também muito material que outro modo seria mais complicado. E depois tive a sorte de receber um convite da NTS para ter um programa com eles [com o mesmo nome]. Temos estado a colaborar muito, têm sido um apoio extremamente importante. E sinto-me muito cool por ter um programa na NTS [risos]. 


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