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Fotografia: João Paulo Wadhoomall
Publicado a: 12/05/2022

A agilidade dos 30.

Clã no Stereogun: e a mais não é obrigado

Fotografia: João Paulo Wadhoomall
Publicado a: 12/05/2022

Máscara e malha grossa: para um concerto dos Clã, o meu equipamento era um perigo. Era como se tivesse ignorado o prospecto da excursão, o WordArt que alertava para trazer roupa larga e transpirável. Pena a camisola, mas a FFP2 dava margem para mudar de ideias, ser descartada quando calhasse, encorajado por um Abril de cara destapada — mas ficou, firme, testando a elasticidade das bandas com a modulação furiosa dos lábios.

Duas centenas de corpos ao molho, poucas folgas entre peles, para a quarta noite consecutiva de Dá O Que Tem. Esta é a tournée em que os Clã vão à inspeção, por vontade própria e de mais ninguém (não é sacrifício nenhum para os fãs, é claro). Se a adoração já não surpreende, a corrente vital de um artista nunca se pode tomar por garantida. 30 anos de discos e estradas e entrevistas e movimentações cénicas e diálogos castelhanos e aproximações orquestrais e, no núcleo de tudo, funk destilado em pop sofisticada. Trejeitos excêntricos que exprimem um ciclo da vida pouco chocante: os músicos esculpem e promovem música, os músicos comungam em palco dessa mesma música. Mas há um prazer extremo nas feições de Manuela Azevedo, Hélder Gonçalves, Miguel Ferreira e Pedro Biscaia, assim como nos “supernovos” Pedro Oliveira e Pedro Santos: uma predisposição elétrica para remodelarem qualquer palco ao estilo de um ringue. Todos contra as cordas, alguns a tangerem as suas cordas, outros a premirem teclas, para saírem vitoriosos — versus ninguém…

…aliás, contra um comentador online, hostil à publicidade de Dá O Que Tem, que acusou os Clã de cederem à anglofonia. A traição? Apadrinharem uma “digressão de clubes” em vez de bares. O que agradará a ambos? Salas? Sim, oito delas, entre Lisboa, Almada, Coimbra, Leiria, Viseu, Aveiro, Porto e Vigo — as cinco primeiras num sprint espartano de 26 a 29 de Abril, seguidas de três dias de intervalo, antes do corridinho final de 4, 5 e 6 de Maio. Levar máscara foi, pois claro, um exercício de empatia para com a banda, enclausurando gritos numa redoma suada de bafo… solidariedade que inventei agora mesmo. Foi, fora de brincadeiras, o habitual uso profilático, que custa a abandonar (especialmente para o pessoal imunocomprometido). À entrada do pequeno grande Stereogun, onde bengaleiro e lateral do palco são vizinhos, viam-se poucos retângulos turquesa, ainda menos quartos-de-esfera brancos — poluição têxtil num mar glorioso de bocas escancaradas. Mar vermelho e rosa carne, como o cartaz da digressão, ilustrado por André da Loba e projetado em todos os cantos da sala.

Eu e a minha malta já esperávamos a advertência — há sempre uma voz a bradar “já não é obrigatório!” —, mas não que viesse da própria Manuela Azevedo. Parafraseio com aspas: “É muito gratificante ver as vossas caras sem barreiras… excepto alguns de vós, que certamente apanharam uma ligeira constipação e estão preocupados com os outros, também é de valor.”



Em conversa com o teclista Miguel Ferreira (especialista naquilo a que os ingleses chamam banter, como quem diz meter-se com o público, emular uma super diva, responder a gritos histriónicos), resolvemos a questão: a máscara não inibiu a nossa performance. “Nós estávamos a ver tudo!” Acreditamos, porque os Clã cumprem o que dizem no reclame desta digressão: o reencontro com um “público cúmplice e exigente”. Muito disso é força braçal, investimento puro de cabedal, mesmo quando interpretam fac-similes das versões de estúdio. O resto é um olhar, é a técnica de sondar os rostos no público — mesmo que a plateia esteja ganha à partida, pode rapidamente perder-se. Não importa que isso seja uma vertigem improvável para quase-veteranos como estes: importa que ela continue a existir, para sugarem dela a adrenalina. É por isso que algumas bandas fazem respeitáveis mostras de discografia, já embalsamadas numa aura divina, enquanto o código moral dos Clã os obriga a explodir, a regenerar músculo.

É a energia rock a carburar neles, de 1992 até hoje. É a rejeição quase liminar do percurso ergonómico para as bandas mainstream, que sobem aos palanques pela força da verve, para depois se deixarem domesticar. Nunca vão cristalizar os Clã, embora possam tentar: em disco, a sua “pop gourmet”, como escreveu Ricardo Romano na Altamont, é muito menos despenteada ou violenta do que os concertos sugerem — e, ainda assim, faz tempo desde que dominou as rádios comerciais. Vivem numa escarpa entre mainstream e culto; a tenda está montada desde 2004, quando a hit parade conhecida por Lustro (“Dançar na corda bamba”, “O sopro do coração”, “H2omem”, “Lado esquerdo”, “Sangue frio”… estávamos aqui o dia todo) se fez seguir de Rosa Carne, um CD oblíquo, delicado, ensimesmado. Tivessem as asas da borboleta batido noutro sentido — buscando um Lustro 2 — e talvez hoje os Clã, querendo fazer uma digressão intimista, só coubessem num Coliseu.

Em 2019, Madonna trocou estádios por teatros e coliseus, para fazer a Madame X Tour: entre o aburguesamento das salas e os preços proibitivos, peneiraram-se os chiques devotos por entre os aglomerados de fãs indiscriminados. No circuito português, há digressões “intimistas” por cineteatros e auditórios, no hábil registo de “voz e violão”; assim acontece num mercado pequeno, pouco diferenciado. As digressões normais dos Clã já tendem a atravessar cineteatros e auditórios; sobram os clubes ou bares, que afastarão betos, mas não serão grande filtro. Poderia isto trazer o choque entre a claque interessada apenas no “Problema de expressão” e os eruditos de uma qualquer faixa 9? Só se o alinhamento fosse menos prudente, mais congruente com o critério publicitado de incluir “canções que habitualmente não fazem parte do reportório ao vivo dos Clã”.



Intercalam os grandes êxitos com seleções mais ousadas: a melhor rifa calha ao disco Corrente, de 2014, representado por “Basta”, “A Ver Se Sim” e “Museu do Mundo”, faixa 9 aqui promovida às honras de abertura. Mas onde fica o amor pelas outras faixas 9 (sim, “Curioso clã”, “Pas de deux”, “Pequena morte”), uma retrospetiva mais balançada do espólio da banda? Poderíamos culpar as (belíssimas) versões de Xutos, Dead Combo e Manel Cruz. Mas a bola fica nos pés de Véspera — sólido álbum, mas que, tendo direito à sua própria digressão, poderia passar o testemunho aos irmãos mais velhos, ativá-los em modo Véspera, talvez um “Pois é! (Não é?)” traduzido em synth-pop ágil. 

É esquisita a renúncia total a Rosa Carne, não tanto ao habitualmente ignorado lusoQUALQUERcoisa e ao lactente Disco Voador — mas seria interessante perceber como olhariam para esse luso-funk em 2022, ou como fariam música infanto-juvenil funcionar num bar noturno. Dos primeiros cinco LP, na verdade, só há seleções canónicas, sem risco, sem os golpes mais profundos que… a não serem dados agora, ainda serão? (Imaginem a estratégia de Aline Frazão: um concerto em live stream para cada álbum!) 

Esperamos que sim. Que este início às comemorações dos 30 anos se faça seguir de algo imprevisível, do pico dos poderes do grande Clã. Para dividirmos o nosso bolo de arroz com champanhe e caviar.


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