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Fotografia: Artur Monteiro
Publicado a: 20/10/2022

Aliar o poder da síntese a um pensamento percutivo.

Chullage: “Em prétu estou preocupado em aprofundar a ideia de uma punchline política dentro de um objecto estético”

Fotografia: Artur Monteiro
Publicado a: 20/10/2022

Síntese, observação, absorção e léxico vasto. Um curto leque de palavras que devem imperar no perfil de qualquer jornalista, mas quando aliamos isso a melodias, flows e duplos sentidos a lista vira-se para uma classe em risco de extinção por Portugal: a de repórter das ruas ou, atrevemo-nos a dizer, rapórter. Referimo-nos a Nuno Santos, mais commumente conhecido como Chullage, um daqueles nomes difíceis de escapar quando é altura de fazer o Mount Rushmore do rap tuga, que conquistou o seu espaço devido à sua frenética e quase inesgotável capacidade de observação no seu dia-a-dia, grande fonte de matéria que já secou e gastou vários tubos de caneta e cadernos. Com o projecto prétu, que tem desenvolvido nos últimos anos, estará no palco do WOMEX, em Lisboa, já este sábado (22 de Outubro). O Rimas e Batidas falou com o artista sobre a última década da sua carreira/vida, o longo hiato aquando de uma ida para Londres para estudar música e muito mais. 



Acabas por dar vida a vários pseudónimos; antes de artista és Nuno Santos, e associado a ele estão Chullage, prétu, AKapella47, soundslikenuno, etc. Gostava de perceber qual é a necessidade pessoal para fazeres tipo de categorização. Queres que o teu público crie ideias diferentes para cada um deles, que, semioticamente falando, esperem coisas diferentes ao escutarem algum tema novo, ou tens outras razões para isto?

Essa pergunta é fixe… a resposta que te podia dar a isso é que tem vindo a mudar. Eu fui-me sentindo muito enclausurado numa ideia que tinham de mim enquanto Chullage, que era aquele gajo que tinha umas rimas assim, muito vinculado ao “Rhymeshit Que Abala“, e na minha cabeça viajava em mais universos, pensava noutras coisas, ouvia outras músicas e tinha outras expressões musicais. Também embora por questões económicas houve coisas que não pude expressar naquele tempo. A minha cabeça é dispersa, e às vezes viaja… imagina, eu às vezes tenho músicas muito longas, ou músicas cuja musicalidade não é para aquele beat A, B ou C, então há coisas que fui entendendo na minha cabeça que não as queria transmitir naquela matriz do rap e vice-versa. Então, numa espécie de amadurecimento – não sei se é amadurecimento –, eu fui entendendo que havia partes da minha expressão que encaixavam em musicalidades ou maneiras de estar diferentes. Então, para me entender a mim próprio… e é aí que eu digo que sou esquizofónico, eu próprio categorizei. Mas também porque o hip hop é muito hostil para mim quando não faço aquilo que o pessoal quer — aliás, os meus álbuns foram sempre essa a experiência. Tirando o Rapresálias, depois a minha musicalidade era outra, punha reggae, drum n’ bass ou dubstep e o pessoal reclamava logo, então eu sentia-me muito enclausurado nisso. Mas eu não nunca fui assim, nem quando fiz o Rapresálias era assim, curtia outras coisas, mas como não tinha material meu não pude desenvolver uma coisa como produtor, embora os meus beats sempre terem tido uma textura mais africana fruto da música de casa. Daí, quando eu comecei a produzir mais, sempre soou mais electrónico e africano. Nessa categorização em que me tentei entender a mim próprio acaba por surgir isso, sim.

soundslikenuno é um nome de produtor e sound designer, faço muitas cenas para teatro, é o meu nome para essa parte. Já o AKapella47 é spoken-word, não quero ter beats, quero que a musicalidade seja toda aquela métrica. Sabes que também sinto que uma grande franja do hip hop não tem pachorra para coisas menos imediatas, menos profundas, menos in your face. Mas eu também não vou deixar de fazer aquilo que eu quero só porque tenho de criar um sound bait para o pessoal perceber no hip hop. E também sinto que há menos tolerância e disponibilidade a nível político, e eu fiz isso com outros nomes, outros universos, porque não queria deixar de o fazer. O pessoal ficou muito chateado e confuso, mas tem que lidar com isso na boa, porque são coisas que me motivam. O projecto prétu é uma dessas expressões. Eu não sou o prétu, eu sou o Chullage, mas tenho um projecto que se chama prétu e que anda nesse universo. Embora as pessoas não entendam, tem muitas semelhanças ao hip hop, por causa da escola do sampling, e é isso que me leva a fazer este projecto, é algo que eu já fazia em 2012, mas eu vou mesmo assumir: tive medo porque era aquela pressão do “Rhymeshit Que Abala” e pensei que não iam entender isto e fui fazendo de forma meio desleixada, mas depois percebi que estava a sofrer por não fazê-lo, então aí surge o projecto prétu. Um projecto visual, teatral, tem um monte de cenas lá misturadas. Eu acho que o pessoal mais vinculado ao hip hop não o iria entender no seu todo, não o penso sequer num projecto circunscrito ao hip hop nem a Portugal, não território, nem artístico, nem físico, penso nele como projecto pan-africanista que é. É contra isso da territorialização das pessoas, dos corpos, etc.

Há uma frase do Na Mira que me acompanhou e ficou na cabeça, não a tendo ipsis verbis, mas disseste que em prétu te sentes mais confortável e familiarizado e em Chullage sentias pressão, musicalmente falando. Sempre pensei que aquela linha onde estavas era o teu habitat. 

O rap para mim é o meu espaço de conforto, eu não sinto pressão, o que disse no Sam foi que senão fizesse aquilo então não valia a pena fazer nada, entendes? Eu posso fazer o “Rhymeshit Que Abala” se quiser amanhã outra vez, mas aqui há outra questão que é: eu sou um homem que hoje em dia não vai hostilizar, não vou dizer “os sonhos eróticos da tua bitch eu realizo”, nem vou dizer que vou comer a tua bitch, nem vou chamar a tua bitch de bitch, há aqui um amadurecimento e já não quero fazer essa rima de hostilização. Agora, se me disseres para fazer liricismo, então ‘bora, esse é o meu espaço de conforto, eu faço na boa, bro. Essa linha para mim é daquelas que eu trago de puto, agora a questão é que não me deixavam fazer outras linhas, esse é que é o problema. Mas se ouvirem o Rapensar – que é para mim o meu álbum mais importante, embora digam que é o Rapresálias -, tens lá várias coisas que depois são muito censuradas, não só do ponto de vista da letra, mas também da musicalidade. Há uma coisa que tem de ficar clara – ou escura, no meu léxico – para o pessoal: eu adoro rap, adoro oralização, rima, aborrece-me é quando criam regras e dizem que têm de ser de certa forma… eu conheci o rap quando era a utopia, o sonho, a esperança de pessoas que estão a viver num espaço caótico e all of the sudden as paredes sujas estão a ficar cheias de graffitti, o chão a ser preparado para dançar, you know? A pressão que eu sentia é que o pessoal queria que eu fizesse sempre aquilo, me fechassem ali, cada pessoa que me dava um beat já queria fechar o próximo “Rhymeshit Que Abala”, até hoje é isso. A razão pela qual eu gosto de trocar ideia com o Samuel é que ele já me entendeu, ele diz-me, “ya, Chullage, tu vais ser aquele gajo que vai pegar num beat que ninguém tá a sentir e fazer alguma coisa daquilo”, eu às vezes curto de beats que me desafiam na escrita, na ideia musical. Estou a gravar aos poucos um álbum de Chullage e já fechei um tema com o Samuel — e trocámos um beat desses –, mas trabalhámos, estivemos no estúdio juntos. Mas há a ideia que eu não sou uma pessoa que vai trabalhar naquela ideia quadrada, o próprio produtor tem que estar aberto a isso, se estiver na frequência dos 3 minutos e 20 segundos, não sei se vamos conseguir trabalhar… e foi nesse sentido que disse que me fecharem naquela forma que os outros entenderam e decidiram que era eu é que me aborreceu e me fez querer fazer outras coisas. Eu não me arrependo de nada, tenho curtido bué de fazer cenas em jazz, drum n’ bass, aprende-se sempre imenso. Agora, eu olho para o hip hop e ele está sempre a samplar o mundo, portanto o hip hop é um diálogo permanente, artístico e político, com as coisas.

Gostava que falasses um bocadinho sobre a tua construção e abordagem lírica entre as tuas várias personagens, tens formas muito interessantes.

Em prétu há uma questão muito importante: eu samplo primeiro e deixo que o sample fale comigo. Quando estou a fazer coisas para Chullage eu ’tou sempre a escrever no telemóvel, vou na rua e as coisas estimulam-me, positiva ou negativamente, e eu sinto-me obrigado a escrever. Ainda agora na semana passada estava a fazer uns ensaios em Lisboa, uma Lisboa extremamente gentrificada com a qual já não me identifico, leva-me a escrever imenso, quase como uma reacção. Depois tenho um beat e ok, encaixo metricamente para aí. Mas há excepções, quando fiz o “Chakras” com o Samuel e o Beware [Jack] o beat já lá estava, fui sentindo a cena, tinha o refrão do Beware então fui seguindo. Para mim a rima é sempre um instrumento de percussão, então vou cantando, perceber qual é o groove dentro do beat para encaixar na música. Na Garota Não, outra participação que gostei muito de fazer [em “Não sei o que é que fica“], que fala precisamente sobre gentrificação, a música vem naquela vibe, aquilo é o que eu sinto, quero cada vez mais reagir à música, mas primeiro quero que a minha letra seja entendida como mais um dos componentes da música e que, portanto, ela flua. Às vezes oiço músicas antigas minhas e penso, “fogo, a letra ‘tá a estragar o beat…”, aliás, não é a letra, é só que estou bué rápido, desencaixado, a querer dizer tudo. Em prétu, para mim, é tudo percussão, eu corto o sample, choppo e percuto. A rima é isso, o pensamento é sempre percutivo. Se a tua cabeça entende isso, you unlock yourself… isso é a música africana, ouves funaná, semba, o que seja, e tens ali um groove, mas depois sentes que outro podia encaixar ali, e depois aparece e assenta bem. Podes ir ouvir a aprofundar um português em Chullage, mas aqui ‘tou preocupado em aprofundar uma ideia de punchline política dentro de um objecto estético. Uma coisa que eu digo sempre que gosto no [Allen] Halloween é que, por exemplo, ele consegue pegar em 16 barras e transformar em uma, ele tem um poder de síntese incrível. 

E tu também, pessoalmente acho que é um dos teus pontos fortes…

Mas sinto que é uma coisa que ainda tenho de aprofundar. Antes de falecer, o José Mário Branco esteve em minha casa, há um som que é para Chullage que eu queria que ele produzisse, que era muito inspirado no “FMI” e ele disse precisamente isso: poesia é o poder da síntese. É pegar numa ideia, por exemplo na ideia pan-africanista e sintetizar em quatro barras, 16, mas everytime it must be a punchline, mas não punchline no sentido de que vai aleijar, tem que ser uma linha que tem a responsabilidade política e pan-africana que eu quero que tenha nesse álbum, e que tenham também uma energia específica. A minha proposta liricamente para isto também é isso, sempre em resposta a um certo sample que, gostando ou não, vão entender. Tem coisas malucas, tipo prétu feat. Chullage, pessoal não vai entender – “então, mas isso é o mesmo gajo” – só que para mim é numa de brincar, fuck with your mind, vou usar aquele flow típico Chullage que me ‘tão sempre a cansar numa música nada a ver. Outra coisa que se entende é que os meus beats no prétu é que não tem aquela estrutura normal e acabam em sítios improváveis.

Ok, vais-te orientando pelo sentimento que a sonoridade que te vai passando.

Ya, de repente mexo no tempo como no “Fidju Maria”, aquilo estava a 140 e tal [BPM] e ficou mesmo sombrio, mas o bass estava mesmo incrível, resolvi deixar como estava. Quando o Dino [D’Santiago] veio gravar, tinha aquela parte mais formal do verso/refrão preparada e quando essa parte entrou… aquilo doeu-nos, porque o Dino sabia do que estava ali a falar, das nossas mães, das nossas tias, das Marias. E ele reagiu automaticamente aquilo, entendeu esteticamente sem falarmos muito, e chorou cantando aquilo. Na altura escrevi aquela parte do fim e gravámos tudo à primeira, decidimos não mexer mais e nunca mais tocar naquilo. Essa imprevisibilidade da música atrai-me bué. Quando está tudo decidido que vão ser três minutos e pouco, só vais encaixar o teu talento lá mas há uma decisão e em prétu não há essa pressão, às vezes o sample leva-te a outro sítio, outras vezes é a voz porque eu uso dois microfones, um deles cheio de auto-tunes/delays/saturadores, que também te fazem viajar. Como tal, é uma procura. Para mim, o estúdio no projecto prétu é uma coisa orgânica, é estar vivo.

Nestes últimos 10 anos foste alimentando outras sonoridades e seguindo outros caminhos musicais, e para o efeito até estiveste a estudar som em Londres, certo? Deve ter sido uma jornada bem frutífera para ti…

Quando comecei a fazer o prétu, na altura samplei o mesmo som que os Batida samplaram – “Bazooka” –, eu nem sabia — eles até lançaram depois — e nessa altura já tinha essa necessidade de expressar para mim próprio coisas que estavam no meu coração, já queria bazar, queria-me ouvir, ouvir outras cenas e vou para Londres. Lá sou anónimo, ‘tou a estudar, não tenho ninguém, estava mesmo sozinho, chegava a casa e ia produzir, conhecer mais cenas e explorar a ver tutorials, não tinha ninguém para me dizer que tem de ser assim ou assado. Foi muito importante para me libertar. E também houve pessoas em Londres que me deram uma força que não tinham dado em Portugal, e isso é uma coisa que é importante de dizer: a malta elogiava os meus beats, a musicalidade que trazia. Havia outra maneira de me encarar e me entender e isso motivou-me numa altura em que Portugal estava a desmotivar e senti que me criticavam de maneira um bocado superficial, se calhar não estavam a entender e se calhar fui eu que não me soube expressar. Mas, ainda antes de ir para Londres, houve um tempo que eu estava com bué músicos no Clube Ferroviário, a relação com o meu amigo [Mick] Trovoada vem daí, assim como outros músicos, e aquilo tinha uma orgânica diferente da do estúdio, as pessoas jammam e procuram, metem um trompete e de repente tens de o deixar falar, aprendi imenso de orgânica da música, às vezes não pode ser tanta letra, tem que seguir uma certa melodia, etc. Foi muito bonito esse tempo, apesar de muito difícil, numa Lisboa em pós-crise. Entretanto, não lancei nenhum álbum nessa altura, depois venho agora lançar estas cenas de prétu e malta ficou “wow, isso foi um grande hiatus”, mas continuei sempre a trabalhar, produzindo nesse tempo. Mesmo agora, não me sinto motivado para lançar um álbum em Portugal, devo dizê-lo, é uma coisa que vai sair, há muita gente que continua a dar muito love ao hip hop e eu vou continuar a fazer essa música, mas já não sinto a coisa da indústria, de tenho que pôr ou não pôr, de ser o teu top 5, all that is bullshit para mim, irmão. É como o [Sérgio] Godinho diz, não há permanência, tudo é impermanente, hoje curtiste o meu som, amanhã curtes o dele e assim é que é, toda essa pressão que agarrámos tão acriticamente da América não me atrai. Também vou lançar um álbum de Chullage, também sinto que politicamente estamos num momento muito dúbio, mas sem as pressões disto, daquilo e do outro… mas isto explorando todas as sonoridades que eu quiser, claro. 

Não querendo sucumbir a estas pressões industriais isto remete-me a grande parte da tua pegada nos últimos anos, que tem sido muito offline e física, para um público real.

Eu só acho que “if you don’t talk the talk, walk the walk”. Eu acho que a Internet não precisa de mim, o que não faltam são pundits, leaders, faladores, etc… a questão é que as palavras ganham dimensão fisicamente, parece que toda a luta e o trabalho vive hoje no metaverso e se aconteceu ali também já aconteceu na rua, mas isso não é verdade. As questões sociais/económicas como racismo, desemprego, homofobia não vão acabar só porque se fala disso na net, as coisas mudam com trabalho concreto, físico, embora nos queiram fazer acreditar que todo o mundo que existe é um mundo online. Tudo o que existe online é um capitalismo de vigilância e uma manipulação de atenção, e quando se manipula e se vigia também se distrai e se programa. Então, para mim, é importante ter acção, fazer trabalho físico. Se é inconsciente ou não, não sei, sei é que tudo o que eu faço na rua ensina a minha música, ’tás a ver? Eu faço teatro de rua, andamos por vários bairros e obviamente isso também me ensina como um ser político e homem, não é sentar no meu quarto a escrever rimas e achar que na Internet vi tudo. Por outro lado, este individualismo que nos querem vender não sei onde nos vai levar, eu acredito em colectividade, mutualismo, comunitarismo, tento também no físico encontrar isso. Ok, falei na Internet, fui marchar, não fiz mais nada e, ya, não sei o que retirar… há mais a fazer.



Acredito que prefiras tocar directamente em quem te ouve, seja enquanto músico ou não, e tentares ajudar um miúdo de 10 anos inserido numa realidade difícil com conselhos palpáveis, ir mais além com o teu público ao invés de lançar uma faixa nas plataformas e não saberes directamente como aquilo impactou quem ouviu..

É os dois, mano, e sabes porquê? Eu ando bué de transportes públicos, e aparece-me sempre uma pessoa bué improvável não sei de onde e do quê e vira-se: “Mano, sabes aquele teu som de 2000 e tal? Foi importante para mim por causa disto e daquilo…”. E isso acabou por me ajudar bastante numa fase que estava um bocado chateado com o Chullage porque não sabia o alcance da minha músicas. Independentemente do sucesso comercial, não conseguia saber o impacto que ela poderia ter na vida de algumas pessoas, tu nunca sabes onde é que ela vai tocar a não ser quando de vez encontras as pessoas – eu já tive essa benção – de encontrar ouvintes nos momentos e locais mais improváveis e de me darem esse feedback, que a minha música impactou a vida deles. Então, acredito sim que devemos também fazer música, ser vocal sobre alguns temas, mas também acredito que isso não inviabiliza trabalhares numa comunidade, numa organização, etc. 

Digo-te isto porque acaba por ser difícil de acompanhar a tua pegada/jornada não sendo da tua zona, é algo mais fechado, mas nem tudo tem que ser visível a grandes públicos… 

Exacto, nem toda a minha jornada tem que ser um show ou um post… Mas eu não tenho esse urge de ter de mostrar tudo o que faço, o meu urge é fazer. Esta coisa do stay relevant, de publicar a minha comida, onde estou, o meu batom, isso não é para mim. Uma coisa é conhecerem a tua música, outra coisa é conhecerem a tua vida. Quando eu quero falar, falo. Quando quero publicar música, publico. Muitas pessoas dizem-me que devia estar mais presente, mas eu estou bem assim, estou presente onde sinto que tenho de estar.

Sobre prétu, uma das partes mais fulcrais – e por mais óbvio que pareça – é o visual, toda a estética. Gostava que falasses desse ponto, que para mim é um dos grandes diferenciais relativamente aos outros pseudónimos.

Sempre gostei de cultura visual, sempre gostei de cenas que se expressassem visualmente. Entretanto, durante muitos anos, eu fui auto-didacta a estudar vídeo e fotografia, tenho máquina digital, analógica, e neste projecto também quis fazer os meus vídeos, pelo menos dirigi-los porque a ideia que queria fazer passar era muito concreta, queria falar de vários assuntos de forma estética. Depois também, e imagina, nos videoclipes fazemos bué figura de poser, naquele carro alugado, num hotel à toa e no teatro crias uma série de condições plásticas para as pessoas sentirem as ideias que queres passar, é abstracto mas sugestivo. Quero fazer vídeos nesse espaço. O framing deste projecto por outro lado também não é cantar uma música na street com toda a gente na back, então quis mesmo realizar, porque eram ideias mesmo visuais. Tornou-se bué importante, o primeiro até foi com o [Super] Shor [aka MDA Colors], fizemos só uma cena numa caixa preta e teatral para o “Waters“, ficou bué fixe. Depois trabalhei em dois vídeos com a Mónica Miranda do HANGAR, que deu muita força no projecto prétu na fase inicial. O HANGAR é uma casa para artistas africanos visuais, então deu para dar boost nesse imaginário que ia na minha cabeça, a coisa ganhou essa dimensão que eu objectivava. Depois fizemos o “Luta Continua”, “Fidju Maria” e o último que saiu, o “xei di kor”, foi feito com o Orlando Podence, que é quem trabalha comigo agora, e o Artur Monteiro, assim como o pessoal das Peles Negras que é o meu grupo de teatro. A abordagem foi totalmente diferente: aquilo é uma licra que vai distorcendo, estou a falar de coisas mas não quero que te distraias delas, quero só que o corpo esteja preso a essa coisa que te sugere que é uma placenta e, no fim, baza. Mais recentemente estive a trabalhar no “Amor di Uber”, que é a minha próxima faixa e vai sair daqui a uns dias, que é sobre a “uberização” do amor, este amor efémero pela pressa, rapidez e superficialidade que as redes nos transmitiram transformando pessoas em objetos. 

Outros dos pontos mais fortes enquanto artista que tens é, para além do teu poder de síntese, o poder de observação/absorção e a camada visual que agregas às tuas rimas também.

Imagina, eu antes de escrever o “National Ghettografik” andava vidrado – e eu nem gostava de Português na escola – nos Maias. Eu nem queria ler aquilo, mas o que estava a sentir daquilo não era a história, era a forma de descrever as cenas, conseguias ficar dentro da sala com aqueles adjectivos, man, like what the fuck… Eu lia aquilo e ficava trippin’ com a capacidade de descrição, era ao pormenor mesmo e fiquei fascinado com aquela escrita. A mesma coisa que disse há pouco: os escritores africanos têm uma escrita bué energética, ou seja, as palavras pintam uma imagem, mas é preciso saber interpretá-las. Eu não acredito que uma imagem vale 1000 palavras, mas se tu escreveres 1000 palavras constróis uma imagem lindíssima. É uma capacidade de escrita incrível. Escrevem de uma forma que parece que ‘tás a passear com eles. Para mim, quando estás a descrever street, é o detalhe que faz a cena. Podemos todos falar de tráfico de droga e da bófia vir, mas se estás a descrever um detalhe que tu observaste, isso é outra cena, nem precisas de referir o que ‘tá a acontecer em específico, quem é da street percebe, quem não é também só precisa de dar duas voltas e fica a par. Acho isso uma capacidade bué linda. 

A minha mãe quando era criança dizia que eu era muito chato, sempre a perguntar por tudo, o que era isto e aquilo. Hoje em dia também observo mesmo tudo, às vezes até quero calar a minha cabeça, isso às vezes é um fardo mas outras vezes também é a tua matéria para escrever. Eu escrevo mais do que nunca no autocarro, no barco, no metro, tento adivinhar quem são aquelas pessoas, o que fazem em casa. É na rua que sou estimulado, que acontecem coisas. O “National Ghettografik” foi o meu exercício sobre isso. Se reparares, eu escrevi “olhos filmam, mente grava, rima revela”. É tipo uma cena de película, uma máquina fotográfica, e a partir dali foram só pormenores de cenas, são dicas que um gajo observa na street. E é por isso que os meus brothers ainda gostam todos dessa track, porque era exatamente aquilo que se passava e eu escrevi, a malta revê-se na cena porque era the real deal. A nossa visão determina 85% da nossa experiência sensorial, se pegares nisso e levares ao nível do olfacto, do tacto, da audição… às vezes faço um exercício que é ouvir o que eu vejo, entender auditivamente o que eu estou a ver, é entender olfactivamente o que está neste lugar. Repara que falo bué dos cheiros, na esquina, this and that, também tenho bué essa cena dos cheiros associados a lugares. Se a gente sentir, captar… isso também é bué importante no teu ramo, ter essa absorção, isso dá uma riqueza incrível a um texto, a malta sente que um gajo dá-te detalhes de cenas fixes, não é só mais um copy paste, é um texto original em que cheirou com o nariz dela, ouviu com os ouvidos dela, olhou com os olhos dela. Isso é fixe. 

Exacto! Mas não sentes que os vídeos que compões podem de certo modo restringir o universo que cada um do público possa estar a criar ao ouvir a música, visualmente falando?

A razão de eu querer fazer vídeos é mesmo para deixar as ideias em aberto. Imagina, no “Luta Continua”, vês aquela cena no final dos dançarinos com máscaras, aquilo é baseado numa passagem d’O Livro dos Guerrilheiros do [José] Luandino Vieira. Ele escreve sobre um guerrilheiro que acreditava que quando eles estavam na luta da libertação e morriam que se transformavam num pássaro e andavam pelo rio — e esses pássaros eram espíritos. Essa passagem inspirou-me a fazer esse pequeno detalhe no vídeo que fica aberto à interpretação de cada um, e há pessoas que só vão ver um dançarino com máscara numa caixa preta, mas há uma inspiração concreta e eu não a estou a passar ao público, e é aí que fica em aberto, não quero encerrar ideias. Tens também aquela parte meio caótica, aquilo tem dois entendimentos: não só a pilhagem que a Europa fez de África, como a pilhagem actual, das pessoas, em que a destruição parece mais importante que a construção. Outra coisa que está sempre em aberto nos meus vídeos é o tempo. Eu trabalho com essa ideia de que não há linearidade, o futuro informa o passado, que informa o presente, tudo sempre a rodar. Essa primeira parte do vídeo é baseada em fontes do arquivo Amílcar Cabral, recompusemos as imagens com actores atuais, uma parte no mato e outra na concrete jungle, na street, ou seja, isto foi no tempo da guerrilha, como é agora e como será no futuro, porque esta luta continua. É isso que queremos trabalhar, não é encerrar ideias, é abri-las, não queremos tudo pré-programado e previsível em que a ideia é reduzir e não promover que as pessoas pensem, critiquem, que esteja ali tudo de bandeja, não… o nosso trabalho poético e político com este projecto é o oposto, mano.

Disseste há pouco que não te sentes muito motivado para lançar um disco em Portugal, por isso pergunto-te o que planeias para lançar essa música?

É assim, a gente está a acabar o álbum e eu vou pô-lo fora, só não sei é se territorialmente vou andar aqui a promover e a despender essa energia. Portanto, esse disco vai acabar mesmo por sair, eu interessa-me mais é tocá-lo, porque é melhor entendido no palco. Uma das coisas que não te respondi é que as pessoas podem não entender o meu português ou o meu crioulo, mas vão entender visualmente, porque os referenciais são iguais para vários povos, há pessoas que vão entender isso, estes povos estão espalhados um pouco por todo o mundo. Mas, sim, vou pôr um disco cá fora de prétu e quero tocá-lo. Por outro lado, ‘tou a escrever um álbum de Chullage, que é todo para a ‘tuga, mano, para pôr a boca no trombone, não sei muito bem como vai sair musicalmente, não quero que seja um projecto que me aprisione, mas é onde eu sinto a liberdade de escrever. Em prétu, ele não aborda só questões de pessoas africanas; há, por exemplo, uma faixa chamada “Templo de Sílica”, que é sobre usarmos esta coisa [mostra o telemóvel] permanentemente como se fosse o nosso Deus. Não quero é que fique sujeito às interpretações dos media na tuga, que interpretam sempre com as suas lentes, e também dos pundits, opinion makers e gatekeepers da tuga, não quero. Alguns deles nem entendem o que ali está e depois ainda me chamam de arrogante. Não quero mesmo.

E para o WOMEX: o que tens alinhavado para levar a palco?

Vou levar o Henrique Silva dos Acácia Maior, o meu mestre, amigo e percussionista Mick Trovoada, o Lukanu Mpasi que é dançarino. Também vou ter a Alesa Herero para cantar um tema e, claro, várias músicas novas que ainda não saíram, mas que tenho tocado ao vivo.


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