Tim Doyle é provavelmente um dos mais criativos e agregadores nomes do panorama musical britânico da atualidade. Conhecido no universo da música como Chiminyo — uma adaptação fonética de Timinho, alcunha que lhe foi atribuída durante uma viagem ao Brasil —, o compositor, produtor e multi-instrumentista (ainda que, acima de tudo, baterista/percussionista) radicado em Londres tem feito parte de bandas absolutamente essenciais do movimento a que, vagamente, se tem chamado “novo jazz britânico”. De Maisha a Cykada, são vários os projetos de renome aos quais Chiminyo tem emprestado as suas brilhantes habilidades técnicas e a sua aguda visão musical, num percurso que conta com colaborações com grandes nomes do jazz como Gary Bartz.
Contudo, o primeiro equívoco amplamente difundido acerca do percurso de Chiminyo encontra-se conspicuamente descrito neste primeiro parágrafo: a música que Doyle vive, imagina, cria e produz transcende em várias frentes o mundo do jazz. Ele próprio é o primeiro a afirmá-lo, rejeitando peremptoriamente o rótulo de jazz para um ethos criativo que tem mais a ver com energia do que com bebop.
No final de contas, em que universo musical se move então este baterista londrino? Seguir-lhe as pegadas revela-se um exercício elucidativo para abordar esta questão. Depois de I Am Chiminyo, EP de estreia lançado em 2019 que introduziu as suas ideias estéticas ao mundo, bem como um setup electroacústico único — para o qual Chiminyo desenvolveu todo o código de programação —, em que cada tambor e prato do seu kit de bateria aciona sintetizadores e samples, as possibilidades sónicas desta configuração foram intensamente exploradas em I Am Panda, soberbo álbum de estreia que elevou Chiminyo ao pódio dos talentos da nova música londrina.
Com I Am Panda, Chiminyo ganhou o prémio Jazzwise Digital, tendo este disco também lhe valido uma nomeação para os Worldwide FM Awards. No entanto, o percurso deste álbum não foi isento de contratempos. Por ter sido lançado em 2020, ano da pandemia de COVID-19, ficou comprometida uma recepção mais calorosa por parte do público e a oportunidade de apresentar este trabalho ao vivo e de o levar em digressão. O caldo de incerteza, preocupação e confinamento que caracterizou esses tempos fez com que o mundo não estivesse disponível para receber a música que Doyle tinha preparado com tanta diligência e devoção.
Talvez em resposta a estes infortúnios, Chiminyo decidiu começar a liderar projetos de grupo, abandonando temporariamente os trabalhos a solo. Desta sua fase mais recente, destaque absoluto para Uniri, um quarteto de baixo (Luke Wynter), bateria (Chiminyo) e sintetizadores (Amane Tsuganami e Al Macsween), que este ano já lançou Infinite Reflections com selo da Astigmatic Records, um álbum altamente recomendado, no qual o músico e amigos esculpem pulsantes paisagens sonoras electroacústicas guiadas por grooves que permanentemente convidam à dança.
Porém, a grande motivação para esta entrevista foi a série NRG que o músico tem encabeçado e da qual o terceiro volume, NRG 3, foi recentemente lançado. Consistindo numa série de concertos totalmente improvisados e gravados ao vivo, Chiminyo tem, neste projeto, reunido ensembles únicos que são uma poderosa representação do eclético movimento musical que brota continuamente a partir de Londres. A sua qualidade e importância são tão incontestáveis, que arriscamo-nos a dizer que esta série deveria ficar imediatamente registada nos livros de história. Recomendação: se algum dia quiserem mostrar a alguém esta “nova” música de Londres de que tanto se fala, comecem por aqui.
Novo jazz? JazzNotJazz? Future jazz? Se lhe chamarmos energy jazz, estaremos perante uma designação bastante fidedigna deste movimento, que capta tanto a energia das raves, do breakbeat, do garage, do jungle e do drum’n’bass, como a eletricidade presente nas paisagens eletrónicas — ora pulsantes, ora etéreas —, além da química que flui numa cena musical alimentada por músicos de exceção, cimentada numa sede de criação e inovação que promove dinâmicas de grupo ricas e complexas, onde múltiplos géneros musicais — jazz, hip-hop, dub e afrobeat (além dos já referidos) — coexistem harmoniosamente no mesmo espaço. Trata-se, claro está, de energia coletiva, mais do que da cristalização de uma estética específica.
Apesar de alguns detalhes desta entrevista — principalmente as referências temporais — poderem estar ligeiramente desatualizados, uma vez que os eventos já ocorreram, esta continua a ser uma conversa indispensável sobre a música que fervilha na multicultural e multimodal capital britânica. Londres é o lugar — e energy jazz, ou qualquer que seja a definição utilizada, a música que por lá se respira. No fundo, o rótulo não importa: a qualidade está presente, e Chiminyo é um nome essencial a ter em conta no movimento. Mantenham-se atentos.
Eu sei que és de Ringwood, no sul de Inglaterra, mas atualmente vives em Londres. Quando te mudaste para lá? Foi por causa da música?
Sim, mudei-me para Londres aos 19 anos, para estudar. Fiz uma licenciatura lá.
Estudaste percussão durante esse tempo?
Sim, foi parcialmente académico, parcialmente bateria de jazz. Mas também aprendi muito samba, vários tipos de percussão, como percussão iraniana, e bastante composição clássica. Escrevi para quartetos de cordas e fiz bandas sonoras para curtas-metragens e coisas do género. Mas sim, tive de equilibrar as coisas. Nessa idade, não tinha a certeza se seria baterista e se isso seria o foco de tudo o que eu iria fazer. Por isso, comecei por algo mais abrangente e depois fui-me focando com o tempo.
E tens trabalhado em Londres desde então?
Sim, já lá vão uns 14 anos. Foi uma verdadeira montanha-russa em termos das coisas que faço. Quando terminei a universidade, a cena jazz não era nada do que é agora. Ia a concertos de jazz e era só um grupo de pessoas mais velhas, brancas, sentadas numa sala. Esse tipo de vibe. Eu e os meus amigos, na altura, fazíamos coisas porreiras. Havia alguns eventos — organizávamos festas em armazéns. Havia um evento chamado STEEZ e alguns espaços no sul de Londres onde tocavam os atuais Ezra Collective, Nubya Garcia, Moses Boyd, Yussef Dayes. Todos nós — toda a gente — tocava nesses pequenos eventos. Depois fui em busca de outras coisas, comecei a estudar samba e fui ao Brasil algumas vezes. Toquei klezmer e música judaica, depois sea shantis e também guitarra vestido de pirata. Toquei percussão iraniana, música turca… andei por todo o lado. Quando cheguei aos meus 20 e tal anos, a cena de jazz começou a fazer coisas realmente interessantes, e comecei a tocar em diferentes grupos. Foi então que comecei a focar mais energia no jazz.
O teu nome artístico vem de um nome português, Timinho, certo?
Sim, vem. A primeira vez que fui ao Brasil, toda a gente começou logo a chamar-me Timinho. E eu pensei: “Pode ser um nome fixe!” Alguns anos depois, comecei a desenvolver os meus projetos a solo, com triggers e coisas eletrónicas, e decidi chamar-me Chiminyo. Achei que toda a gente saberia como pronunciar, porque é fonético — C-H-I-M-I-N-Y-O — mas ninguém sabe, nem a minha irmã sabe pronunciar corretamente.
Agora consigo fazer a ligação entre Chiminyo e Timinho, mas não era óbvio ao início.
Sim, porque na pronúncia brasileira, eles fazem o som “tch”. Portanto, é uma coisa meia secreta. Mas, em termos de um nome ao qual te podes agarrar e sentir-te bem, o teu próprio nome é sempre uma boa escolha [risos]. Muitos dos meus familiares e amigos chamam-me Timmy, e Chiminyo é basicamente Timmy, por isso resulta.
Estavas a falar da cena de jazz do Reino Unido, e há algo interessante que disseste na descrição da editora NRG Discs, que é que a cena de jazz no Reino Unido se trata mais de energia do que de jazz. Podes explicar isso melhor?
Sim, basicamente, é uma conversa que surge muitas vezes entre nós, eu e os meus amigos da cena. O uso da palavra “jazz” para descrever o que estamos a fazer será justo? É representativo? Descreve bem? Engana as pessoas? É algo que surgiu de várias maneiras, e as pessoas têm tido opiniões diferentes sobre isso ao longo dos anos. Lembro-me de ter uma conversa com o baterista Jake Long e o saxofonista Ahnansé dos Steam Down enquanto estávamos em digressão. Eu disse: “Não é o jazz que nos une. É a energia que temos que nos une.” Um bom exemplo é quando fui a Nova Iorque. Se for a clubes de jazz lá, fico sentado a assistir e adoro. Quando lá estive, passei todas as noites no Smalls só a ver as jam sessions. Não conseguia subir ao palco, porque não toco aquela música. Estudei-a quando era mais novo, tentei, mas não fazia sentido para mim. Tive uma má educação, maus professores, más experiências de me dizerem que tinha de tocar de uma certa forma e que eu não estava a fazer a coisa certa. Com o tempo, percebi que aquilo não era a minha verdade. Não cresci a viver o bebop, o jazz pós-bop dos anos 60, o swing e tudo isso. Gostava de drum and bass, raves, garage. Ouço muito hip hop. Isso é mais a minha verdade.
Simplesmente um espectro diferente de influências.
Exatamente. E acho que isso é algo que a maioria das pessoas nesta cena de jazz em Londres parece partilhar em diferentes graus. Obviamente, algumas pessoas estudaram jazz durante quatro anos, só bebop e coisas do género — isso é uma coisa. Mas a música que eles estão a referenciar… Não acho que muitos dos meus contemporâneos subam ao palco e comecem a tocar swing. É raro ver isso. Por isso, quando surgiu este projeto, eu não queria estar a tocar jazz. Não é assim que quero enquadrar o que estou a fazer. Parece-me desonesto. Acho que estou a tocar energia — trata-se de conectar e partilhar ideias com as pessoas no palco e com o público, e de obter essa troca de energia entre todos na sala. O projeto NRG era sobre capturar isso na sua forma mais verdadeira. Nós costumávamos fazer jams o tempo todo quando éramos mais novos, e o público adorava. Mas depois as pessoas formam bandas, criam os seus projetos, escrevem música, vão para o estúdio e criam algo bonito, esculpido, cuidadoso e preciso, o que é maravilhoso. Mas eu queria mostrar às pessoas a realidade do que acontece e que quem está fora de Londres não consegue experienciar. Isto é o que acontece quando improvisamos — e soa bem! [Risos]
É uma série muito boa! São gravações ao vivo e totalmente improvisadas. Sentiste a necessidade de agora tocar com uma banda, já que os teus primeiros trabalhos foram a solo?
Basicamente, a história é que eu criei o software para os meus projetos a solo há uns sete ou oito anos, talvez até há mais tempo. Passei anos e anos sozinho no meu estúdio, às vezes durante 16 horas a programar e a resolver problemas, a tentar descobrir como fazer com que a tarola acionasse o sintetizador no momento certo e o silenciasse à medida que passava para a próxima secção.
Podemos dar um passo atrás? Para quem não conhece o software que programaste para usares na tua bateria, podes explicar um pouco mais sobre aquilo em que consiste?
Basicamente, cada uma das minhas percussões e alguns dos meus pratos têm microfones ligados, e estão conectados ao meu portátil. Criei uma série de patches e plugins que utilizo no Ableton que me permitem controlar sons no meu portátil usando a minha bateria acústica. Tenho sequências de baixo ligadas ao meu bombo, acordes à minha tarola, melodias no meu hi-hat, e diferentes sons em todo o lado. As vozes são acionadas pela minha bateria. Às vezes também canto um pouco. Passo pelos arranjos com todos os elementos a serem desencadeados dessa forma. Posso tocar a qualquer tempo que queira, e se quiser parar, tudo pára.
Mas, como estava a dizer, depois de passar 6 ou 7 anos, ou 5 anos, ou o tempo que for, a desenvolver este projeto, estando sozinho, isolado, solitário… e depois lançar o meu álbum de estreia durante uma pandemia e ter uma experiência bastante devastadora, para ser completamente honesto contigo, de lançar algo a que dediquei a minha vida num mundo que não estava capaz de o receber. Estávamos todos preocupados com as nossas vidas. Não consegui fazer digressões. Não consegui fazer os concertos. A minha agência de bookings colapsou, e depois outra agência também colapsou, e, bem, passei por uma série de situações muito, muito difíceis que fizeram com que o projeto nunca descolasse da forma que eu esperava. E então, quando isso aconteceu, pensei: “Será que consigo voltar a estúdio e fazer outro álbum a solo?” Porque o meu cérebro basicamente não estava capaz de o fazer. As coisas mudaram e eu não estava pronto para voltar a esse estado mental naquele momento. Pensei: todos os meus amigos estão muito ocupados, ninguém quer comprometer-se com uma banda, toda a gente tem demasiadas coisas e não querem responder às mensagens, etc. [risos] Então, pensei em tentar um novo projeto. Vai ser tudo sobre mim outra vez, o que não é o que quero, mas vou chamar toda a gente e vamos criar coletivamente. Vamos improvisar e criar o momento-génesis desta banda… E é isso! Faço um álbum a partir disso. Produzo-o. Edito-o. Faço-o soar bem e polido, colaborando com um engenheiro de mistura chamado Aviv Cohen, que é uma parte fundamental deste projeto. Alguém descreveu este projeto no outro dia como uma aventura musical de uma noite [musical one-night stand] [risos].
Gosto dessa descrição [risos].
Ela disse: “Temos uma aventura musical de uma noite. Aparecemos, damos um concerto incrível, com muita paixão, e elogiamo-nos uns aos outros. Uau! Adorei o que fizeste!” E tipo, nunca mais vamos tocar juntos, o que é algo bastante mágico. Porque também há esta experiência com bandas que eu já tive algumas vezes, onde… sabes, toda a gente fala da dificuldade do segundo álbum. No primeiro álbum, todos se juntam e estão tão entusiasmados. Têm ideias diferentes, estão todos a elogiar-se mutuamente. Depois fazes esse álbum, fazes a digressão, talvez corra bem. E depois pensas: certo, segundo álbum. E toda a gente entretanto mudou ligeiramente, e tudo parece um pouco diferente. E eu pensei que seria ótimo fazer um monte de primeiros álbuns. E até agora, tem sido incrível. Ah! E o NRG 3 e NRG 4 já estão terminados. O NRG 3 vai sair em setembro, e soa tão fixe e completamente diferente! O NRG 3 tem sintetizadores modulares, vibes mais techno. O NRG 4 é no Ronnie Scott’s e tem uma harpa. Portanto, é uma experiência completamente diferente.
Fantástico. E é muito bom que ouvintes como eu possam apreciar esses concertos ao vivo — isso é mesmo altamente! Formas as bandas de forma completamente aleatória, ou procuras sons específicos para cada número desta série?
Penso muito em quem quero ter e como é que eles se vão complementar. É uma espécie de curadoria, na verdade. Porque, por um lado, tenho de abdicar de muito controlo neste projeto, porque vamos criar algo do nada. Parte disso não é do meu gosto absoluto, e parte é. Temos de fazer um álbum a partir disso, por isso estou a abdicar do controlo que normalmente teria.
Como te sentes a fazer isso?
É uma lição — uma grande lição — e estou a gostar muito. Está a impactar tudo o que faço de uma forma realmente bonita.
Positivamente, dirias?
Sim, com certeza. Porque, sabes, especialmente quando fazes os teus primeiros álbuns, queres que tudo seja incrível e perfeito. Mas, cada vez mais, estou a perceber que não é isso que importa. Portanto, com este projeto, estou a abdicar do controlo. Mas também, as pessoas que escolhes e as pessoas com quem as juntas vai afetar tudo. O grupo é a soma de todas as partes. Não existe de forma isolada. Com cada um dos músicos, estou a aprender diferentes coisas sobre as formas como diferentes pessoas tocam em diferentes ambientes. Especialmente porque quero seguir cada vez mais pelo caminho da eletrónica.
Isso é incrível. Fala-nos mais sobre isso.
É exatamente para onde quero levar o projeto. E para fazer isso, tens de ter uma variedade de pessoas. Um saxofonista específico vai soar muito diferente de outros saxofonistas, mas ainda é mais ou menos um saxofonista. No entanto, se eu arranjar alguém que toque um certo instrumento eletrónico ou tenha um determinado setup, vai ser completamente diferente de outros setups que outra pessoa possa usar. Por exemplo, usei um grande amigo meu no NRG 4, que está numa banda minha chamada Cykada.
Adoro-os!
O músico da eletrónica dessa banda está no NRG 4, e o que ele faz é pegar no input de todos os outros músicos da banda e misturá-lo com delays.
Uau, isso é mesmo fixe.
É incrível! Se pudesse, usava-o em todos os álbuns, porque acho que ele é absolutamente genial. Mas eu sabia que isso precisava de espaço e de um certo enquadramento. Portanto, quando formei o NRG 4, pensei: este é o contexto onde o Tilé Gichigi-Liperé pode ter a oportunidade de se expressar. Há outros músicos que usam outros tipos de equipamentos eletrónicos, e preciso de perceber como é que isso vai funcionar no contexto de um álbum improvisado. Há muita curadoria. E recentemente consegui uma residência mensal no Ronnie Scott’s.
Bem, parabéns!
Muito obrigado! Então, basicamente, a ideia é fazer o mesmo, mas sem gravar álbuns. Isso significa que agora tenho uma oportunidade de trazer pessoas diferentes, com muito menos pressão, para fazer concertos eletrónicos improvisados. Depois, posso começar a perceber: “Ah, é isto que acontece quando ele toca com aquele.” E com o tempo, consigo ver: “Esta é a combinação certa. Talvez leve estes dois e junte-os com aqueles dois, e tentemos fazer um álbum juntos e ver como corre.” Sim, é incrível.
Deve ser bastante interessante ter uma experiência mais eletrónica num espaço tão clássico como o Ronnie Scott’s, que normalmente é associado ao jazz puramente acústico [risos].
Sim, exatamente, e a questão é que, quando eles me pediram para o fazer, eu disse: “Se querem que eu faça isto, vou fazer à minha maneira”. Quero que seja eletrónico. Não quero que seja estranho. Às vezes, quando dizes às pessoas, “Vamos fazer um álbum improvisado”, elas pensam, “Ok, vamos tocar umas cenas estranhas”. Mas eu quero tentar fazer algo realmente bonito. É improvisado, mas é bonito. Então, com o Ronnie Scott’s, eu disse: “Sim, quero fazer totalmente improvisado, muito eletrónico, muito pesado.” E eles montaram todas estas luzes. No último concerto que fiz lá, as pessoas levantaram-se no final, estavam todas a dançar, eram 2h da manhã. Estavam a divertir-se imenso. Inicialmente, pediram-me para fazer às terças-feiras, e agora vão mudar para as sextas. Por isso, faço figas para que consigamos começar algo interessante lá, completamente eletrónico, e afastar algumas mesas para podermos dançar um pouco.
Outra dimensão tua neste caminho mais eletrónico que estás a seguir são os Uniri, um ensemble de sintetizadores que lideras. Recentemente vocês lançaram Infinite Reflections, e têm outro disco a caminho. Quem forma este ensemble? É diferente de algum modo dos outros projetos em que tocas, ou é mais uma continuação da tua filosofia musical?
De certa forma, é uma continuação do NRG. A forma como escrevemos a música é: vamos para o estúdio e improvisamos. Gravo essas improvisações e depois passo imenso tempo a editar, a brincar com todas as improvisações, a ver que secções diferentes podem combinar. Podemos fazer algumas sessões diferentes assim. Reservámos três dias no meu estúdio, e tenho uma playlist de quinze edits das nossas jams. Vamos passando por cada edit, aprendemo-los e fazemos arranjos juntos, tentando gravar um álbum em três dias. É diferente do NRG no sentido de que não é ao vivo, não são só improvisações. É mais do género, trabalhamos numa faixa e pensamos nela com mais cuidado. Também é diferente porque é tudo sintetizadores e baixo. Queria que fosse assim. Não conheço muitas bandas em Londres ou em qualquer outro lugar — embora deva haver — que sejam só sintetizadores e baixo. Na cena de Londres, da qual faço parte, não vejo muito isso. Então, queria ver o que aconteceria. Além disso, os dois músicos dos sintetizadores que estão na banda — o Amane Tsuganami e o Al Macsween — são malta com quem já toquei bastante de formas diferentes. São incríveis! Já fiz jams com os dois separadamente, e pensei: “Pá, vamos fazer um disco com estes dois e com o Luke Wynter no baixo.” O Luke é apenas um pocket bass player. Também não fazemos solos. Pensámos: “Vamos ver se conseguimos fazer um álbum assim… Ainda vão chamar-nos de jazz?” Sabes, é aquela coisa em que: “Ok, todos pensam que somos jazz. Está bem. Porque é que pensam que somos jazz? Estou a tocar drum and bass, estou a tocar garage. Ah, pensam que somos jazz porque há um saxofone. Ok, então vamos tentar fazer um álbum sem saxofone. Ainda nos chamam jazz. Vamos tentar fazer um álbum sem improvisações, sem solos. Ainda nos chamam jazz!” E fico a pensar: “Como é que estes tipos definem jazz?” [Risos] Quando penso em jazz, penso em solos, numa linguagem específica, em certos grooves. Estamos a extrair todos esses elementos e, no entanto, ainda nos chamam jazz.
Acho que o jazz tem uma definição bastante ampla hoje em dia, não é? E essa é uma das razões pelas quais o género ainda é relevante depois de 60 ou 70 anos, porque géneros que são muito fixos tendem a morrer rapidamente, já que as suas possibilidades são limitadas. Enquanto o jazz, por unir tantas estéticas diferentes, maneiras de tocar, dinâmicas de grupo — o que quiseres — sobrevive e transforma-se a cada geração.
Sim, verdade. E há linguagens partilhadas no jazz. Por exemplo, tenho outro álbum a caminho com o Gary Bartz. Conheces o Gary Bartz?
Sim, claro, grande saxofonista.
Ele costumava tocar com o Miles Davis nos anos 70. Ele vem dessa tradição, e assim que começámos a tocar com ele, toda a gente na banda ficou tipo: “Uau, esta conexão é real”, porque partilhamos uma linguagem semelhante. Trata-se de ouvir, de comunicar, de sermos sensíveis uns aos outros e de estarmos abertos a diferentes decisões. É exatamente isso que o Gary representa, e o que os seus contemporâneos também representavam. O Miles Davis era todo sobre isso. Ele dizia: “Vamos ouvir, vamos lançar a nossa energia”, e é isso que estamos a fazer.
Exatamente! Há aquela famosa história em que perguntaram ao Miles por que é que ele se posicionava em lugares estranhos no palco, de costas para a plateia. Ele respondeu que era porque assim conseguia ouvir melhor. É tudo uma questão de escuta.
Exato, e essa é provavelmente uma das fortes semelhanças entre esta cena de Londres e o jazz em grande escala. Já estive em jam sessions… és de Lisboa?
Não, sou de Coimbra, na verdade.
Onde estão as universidades, certo?
Sim, exatamente. Depois estudei no Porto. Portanto, a minha ligação a Lisboa é pequena.
Eu já estive em Lisboa algumas vezes. Lembro-me de ter ido a uma jam lá. Foi realmente fixe — num armazém. O bar era incrível, e havia uma sala inteira onde estavam cerca de 150 pessoas. Estava cheio, todos a dançar e a divertir-se. A música era diferente do que estou habituado, mas foi fixe. Depois, subi ao palco e sentei-me na bateria, e perguntei: “Devo tocar alguma coisa?” Disseram-me: “Sim, força.” Então, comecei a tocar, e o saxofonista virou-se para mim e disse: “Pára, pára.” Eu fiquei tipo: “Oh, tudo bem, desculpa.” Eles disseram: “Precisamos de falar sobre o que vamos tocar.” Depois tiveram uma reunião à volta do teclado, a discutir os acordes. O pianista estava a mostrar-lhes que acordes tocar, a decidir quem ia tocar a melodia, e assim por diante. Depois, viraram-se para mim e disseram: “Consegues tocar um ritmo funk?” Eu disse: “Sim, claro.” Isso não acontece em Londres, man. Em Londres, sou apenas um baterista, tenho o meu próprio conjunto de habilidades, mas em termos de ouvido, harmonia e sensibilidade para perceber essas coisas, na cena em Londres, todos são mágicos. Todos apanham as coisas instantaneamente. O baixista ouve uma progressão de acordes duas vezes e sabe exatamente o que tocar de imediato. Isso é algo que os músicos de jazz têm em Londres. Claro que existe em outros lugares, mas a qualidade em Londres é muito especial.
Estou correcto em pensar que tocaste com Gary Bartz naquela gravação com os Maisha?
Sim, gravámos isso com o Gary Bartz.
Certo. Foi uma gravação direct-to-disc, não foi? Falando em gravações, no teu primeiro álbum, I Am Panda, que lançaste pela Gearbox Records, tiveste acesso às instalações analógicas deles?
Sim, gravámos no Konk, que é o antigo estúdio dos Kinks. É incrível — uma enorme mesa Neve, uma sala de madeira muito grande. Depois produzi o álbum após a gravação, e foi misturado de forma independente. Depois masterizámos no Gearbox Studios.
Altamente!
O setup analógico deles é incrível. Tive a oportunidade de ver como cortam o disco. Eles tinham uma pequena lupa, e eu conseguia ver as linhas no vinil. Falei com o Caspar [Sutton-Jones], o engenheiro de masterização, que me ensinou muito, o que tem sido muito útil agora que vendo o meu próprio vinil e tenho de fazer prensagens. Quando fiz o primeiro disco do NRG, fui ao estúdio da Gearbox com o Aviv, o engenheiro de mixing, e ouvimos a cena com o Caspar. Foi uma experiência incrível!
Acho que estamos quase a acabar, mas tenho mais algumas perguntas. A tua música, de forma ampla, é uma mistura de jazz — desculpa pelo termo [risos] — e eletrónica. Mencionaste vários géneros que são importantes para o teu som, mas tens músicos ou bandas específicas que estão a informar os teus próximos passos como músico?
Neste momento, estou a ouvir principalmente música eletrónica de dança. Floating Points é uma grande inspiração para mim. Algumas coisas mais antigas do Machinedrum também são uma grande influência. Não ouço muito baile funk puro, mas ouço coisas adjacentes ao baile funk. Conheces o VHOOR? Ele é um produtor brasileiro incrível. Também ouço Principe Discos: N Fox [Nigga Fox], Marfox — esses gajos são incríveis. Gosto realmente de coisas eletrónicas com groove, kuduro, esse tipo de coisas cativa-me.
Lisboa é o lugar para ti, então!
É! Embora na primeira vez que fui, quis explorar muita “batida” e achei que ia ser vibes por toda a parte, mas não consegui encontrar nada! Ouço mais desse tipo de música em Londres do que quando vou a Lisboa.
Não sou de lá, mas tenho a impressão de que tanto a cena de jazz como da eletrónica são bastante fortes… talvez apenas não tenha tido sorte.
Continuo a voltar, por isso, eventualmente vou encontrar. Na verdade, estou em contacto com o Marfox e também com Batida. Espero que um dia consiga levar esses contactos mais longe. Mas, em termos de inspirações, a minha inspiração mais contínua é, na verdade, Bill Evans. Ouço-o constantemente. Ele é uma enorme inspiração, mas definitivamente não é algo que entre muito nas minhas produções musicais, mas é algo que limpa a minha alma quando preciso de uma purificação. Em termos de futuro, é bastante interessante, porque estou a fazer um álbum a duo com o Al de Uniri. Estou a misturá-lo neste momento. Os rapazes pediram-me algumas referências de mistura e estávamos a pensar em algo sintético, eletrónico, mas com bateria acústica. Há, obviamente, algumas referências — os Vels Trio estavam a fazer isso, e muitos outros trios de sintetizadores —, mas nada é tão eletrónico como eu quero. Não consegui pensar em nada que combine os elementos da forma como estou a tentar ouvi-los. Estou certo de que há algo por aí… tudo existe.
Um pouco mais vindo do lado comercial, e provavelmente já ouviste, mas não te lembraste do duo entre Mark Guiliana e Brad Mehldau?
Como é que se chamam? Mehliana?
Sim. Gostaste?
Hmmm… não posso dizer coisas más sobre o Mark Guiliana. Ele é o meu baterista favorito, tem o meu kick favorito. Já o vi a tocar algumas vezes… que baterista incrível! Mas, em termos da sua produção musical, não vai exatamente de encontro ao meu gosto. Mas, sim, que músico incrível. Há uma direção para onde estou a ir, e não ouvi muitas coisas parecidas com aquilo que estou a procurar. Talvez haja alguns ensaios e erros na busca daquilo que quero, que talvez seja o que estou a viver neste momento, a experimentar coisas diferentes e ver o que funciona. Mas tenho uma visão bastante clara, e vou fazer outro álbum a solo eventualmente. Espero que este álbum seja aquele onde todas as minhas ideias se reúnem.
Parece que tens muitos planos para o futuro próximo, o que é ótimo.
Demasiados planos! [Risos]
Planos nunca são demasiados! [Risos]
Acredita em mim. Se estivesses dentro desta cabeça, saberias [risos].
Algum plano para passar por Lisboa ou pelo Porto e fazer alguns concertos por lá?
Adoraria, mas a minha agenda de concertos internacionais não está a acontecer neste momento. Tenho um concerto em Gante e pediram-me para fazer um na Letónia. Mas não consegui arranjar um agente de bookings. Eu metia-me no primeiro avião que pudesse para ir fazer alguns concertos, mas estou um pouco farto de tentar organizar os meus próprios espétaculos e receber taxas baixas e ter de fazer todo esse trabalho, voltando para casa com algumas centenas de libras depois de não ter dormido durante três dias. Estou mesmo farto disso. Espero que um agente apareça nalgum momento e me ajude com isso, porque adoro fazer concertos e estar em digressão.
Acho que já cobrimos praticamente tudo, mas há mais alguma coisa que gostarias de acrescentar?
Vou lançar alguns EPs. Produções minhas. Há esta faixa, “Oceans”, que saiu há algumas semanas. Há outra chamada “Up”, que vai sair dentro de duas semanas. Estão a sair sob o meu próprio nome e são apenas músicas que produzi sem toda a parte técnica, e espero que sem o jazz [risos]. Muito disso vai sair no próximo ano ou assim.