pub

Fotografia: Inigo de Amescua
Publicado a: 24/01/2023

A cura para o individualismo.

chica: “Independentemente do caos, há sempre resistência – é aí que quero estar sempre”

Fotografia: Inigo de Amescua
Publicado a: 24/01/2023

O folk, o anti-folk e o jazz na voz de chica padecem de uma característica própria dos inconformados: o que vem de fora é bem-vindo se preencher o que está cá dentro. E cá dentro, só existe inquietação. Do Minho para Lisboa, cria música de quem sabe o que fazer com a palavra e partilha-a com quem ainda procura a coragem de a usar também.

Manuseia os ponteiros do seu relógio e faz com o tempo o que dele quer fazer, com um auto-didatismo acompanhado: começa-se sozinho mas nunca se existe só na caminhada. É na união que se faz a força e chica descansa no amparo de braços que lhe querem bem – o coletivo é um refúgio.

O seu primeiro EP, Cada Qual No Seu Buraco, surge como cura para o individualismo ou, pelo menos, no jogo de espelhos do qual se insurge, reflete vivências que lhe são alheias. Num diálogo entre o político e a canção, entre trabalhar para ganhar a vida e a vida que se ganha gastar-se a trabalhar como já nos dizia Lena D’Água. Quem canta seus males espanta ou não fosse a cantiga uma arma.



Onde é que teve início a tua relação com a música?

Comecei a ter aulas de teclado aos 6 anos, numa escola de música na terrinha. Depois tive aulas de guitarra, aos 11 anos comecei a tocar mais para mim, em casa. Também andei na Academia de Música, primeiro toquei harpa e era péssima. Depois mudei para piano, mas aulas em geral não resultavam para mim, embora tivesse ido até ao 5º grau. Entretanto, comecei a ter uma banda de rock, os Malaboos — eu e o Diogo, o guitarrista, escrevíamos as letras e já dávamos alguns concertos.

Começaste por iniciativa própria ou por sugestão de familiares teus?

Fui eu que quis ir tocar guitarra, mas tive aulas só cerca de um ano. Depois era só algo que fazia sozinha, pra mim, entre paredes do meu quarto.

Encontrámos esta música feita por ti e amigos teus. Aqui já se notava uma veia para misturar emoções e política.

Isso foi uma piada [risos]. Na altura em que eu passava muito tempo em casa, o Ricardo ia lá ter imensas vezes e brincávamos muito com o Garage Band. Chamámos ao canal do Youtube “Produções 166” como referência ao número do prédio. A certo ponto, juntou-se a Teresa e decidimos fazê-la e lançá-la como piada. Foi engraçado. Foram falando connosco sobre isso, inclusive reconheceram-nos no Primavera [Sound].

Entretanto começaste a ser guitarrista do Vaiapraia. Que aprendizados resultaram daí?

Sim, foi nesse ano, em 2019. Trabalhei no último álbum que saiu. Foi uma experiência muito importante, mas só me apercebi disso muito mais tarde. Naquela altura não absorvi bem os espaços onde estava. Aprendi muito com o Rodrigo. Ele é um homem queer a fazer música punk. Aprendi principalmente sobre a criação e ocupação dos teus espaços. O espaço que o palco pode ser, o momento de um concerto…

Foi essa uma das alavancas para lançares algo a solo?

Quando fiz a “Brincar Com o Cão“, em 2020, fi-lo porque às vezes fazia rants e a Brincar Com o Cão é um rant, mas decidi experimentar fazer uma canção com aquilo. A Teresa e o Luís Severo convenceram-me a lançá-la. Lancei e achei que só ia alcançar os meus amigos do Instagram, mas cresceu imenso. No decorrer deste processo todo, ainda estava nos Arcos [de Valdevez], em casa da minha mãe. Apercebi-me que podia levar isto a sério e até aí isso não acontecia. Mudou a minha mentalidade para “o que é que tenho a perder?”, porque ainda estava naquela de “ter uma carreira a sério ou ter um emprego a sério?” Depois veio a pandemia e, sabendo que pode vir outra, não tinha nada a perder. Depois, podia juntar o político com a canção e foi um alívio, de certa forma, porque gostava muito de ambos.

Esta ideia de “ter uma carreira versus ter um emprego” surge como pressão externa e imposta. Num país em que as artes não são propriamente valorizadas, isto costuma ter influência em ti?

Tinha esta ideia errada e nem sei como a tinha porque eu nem acredito nisto e já não acreditava na altura. Agora não espero nada. Levei a sério o fazer música, mas trabalho num restaurante, também, e tenciono lá manter-me, porque mesmo que conseguisse estar a lançar música constantemente, não quero. Nem consigo olhar para a música desse modo. Levo muito a sério a minha relação pessoal com a música e o que ela me traz. Deixa-me estável e, quando comecei a trabalhar no álbum, encaixei-me e é essa a relação que quero ter com ela. Não numa de carreira ou de fazer dinheiro.

Numa entrevista tua ao Sinestético, mencionaste que tinhas um sindicato de anjos da guarda. Quando vi os créditos do teu álbum, reparei que a tua equipa é feita de pessoas que te são próximas. Foi acaso ou propositado?

Desde sempre que sinto que tenho pessoas comigo que me apoiam muito e me ajudam em coisas nas quais eu nem sabia que precisava. Viam as coisas antes de mim. Não tenho uma relação profissional propriamente dita com ninguém que tenha à minha volta. Inclusive tenho uma música em que menciono que tenho amigos em todo o lado. A Teresa, por exemplo, é 60% do meu trabalho. Foi ela quem juntou tudo.

O teu processo de criação artística já teve uma fase coletiva, mas como funciona agora?

Leva muito o seu tempo. Agora sinto-me numa fase de voltar mais para dentro. Sempre escrevi frases soltas, as minhas canções são mantas de retalhos – há versos de 2019 e de 2021. Salvo duas exceções. Esta criação foi muito baseada no estar à volta da guitarra sozinha e depois ir tocando com banda. O Samuel, o Kiko e o Bá têm muito isto do improviso e foi bom porque ouvi as minhas coisas com [outra] dimensão. Mas é sempre algo bastante pessoal no começo. Ando a tentar ter mais consistência no processo criativo, para que daqui a um ano, talvez, possa ter material para usar. No geral, preciso mesmo do meu tempo de absorção, depois de reflexão e depois de criação.

Sentes que a ideia de teres de produzir mais porque este álbum foi bem recebido é uma pressão auto-imposta ou externa?

Já foi mais auto-imposta. Depois da euforia dos concertos de Verão e a chegada do Inverno, vi que essa energia não se ia manter constantentemente. Vou demorar a lançar coisas, mas o que faço tem de ser mesmo honesto e não vale a pena fazê-lo se não for assim. Esse lugar não pode ser influenciado por fatores externos.

Sendo a tua relação com a música bastante pessoal, como está a ser abrir esta relação?

É muito estranho. Continuo a estranhar porque parece que as músicas deixam de ser minhas. Em palco, sinto que estou a interpretar coisas. É estranho ser abordada. Estou a ser interpretada através de canções e eu nem sei bem como me interpreto a mim. Gosto muito de dar concertos e gosto muito da adrenalina de palco. As pessoas, quando ouvem a minha música, estão a gostar da minha música e não de mim, é o momento.

Trazes muito das tuas vivências para a tua música. Do Minho para Lisboa, como te moldaram estes lugares?

Cresci nos Arcos de Valdevez, o meu contacto com cultura eram a RTP2 e a Internet. Se tivesse crescido aqui seria diferente, mas gosto da ideia de Lisboa ser um sítio para o qual vim porque pude trazer outra bagagem. Quando vim para cá, para a faculdade, eu não percebia nada do que o pessoal dizia em momento algum. Tive muito tempo de absorção. Deu-me espaço pra explorar coisas cá dentro que eu não sabia que realmente estavam e deu-lhes espaço para crescerem, sejam questões de género, queerness, política… Queerness então, eu já sabia que gostava de meninas, mas vim para cá a ter medo da palavra “lésbica”. Sempre me soou estranho.

O teu processo de auto-descoberta coincidiu com o teu processo de consciencialização?

Sempre olhei para as dinâmicas interpessoais, mas não tinha um enquadramento teórico onde metê-las. Sempre observei muito, daí escrever muito. Como sempre fui queer, isso já me mete automaticamente numa posição de questionamento com o que está à volta. Mas sim: já era uma pessoa reivindicativa, já discutia com professores, mas agregar esse “mandar vir” a algo maior foi cá, em Lisboa. Foi mais um afunilamento que autodescoberta: já ‘tava cá a coisa, mas foi ter a oportunidade de poder explorá-la. Embora a consciência política tenha tido o seu lado negativo, de aprofundar a minha raiva, marinei nela e foi um embate. Agora acredito mais que não posso aniquilar-me no caminho, preciso de estar cá para reivindicar coisas e se não conseguir colmatar o modo como me relaciono com os outros quando erro então não faz sentido. Movimentou-me, mas imobilizou-me também. O autoconhecimento veio depois desse processo da raiva. Independentemente do caos, há sempre resistência – é aí que quero estar sempre.

Pertences a uma geração que tem novas formas de lutar pelo mundo e de fazer ativismo, uma delas é a música. Ao longo da história já tivemos vários exemplos, desde Zeca Afonso a José Mário Branco, a fazer o mesmo. A cantiga ainda é uma arma?

Claro! Fui muito mais ouvida com a “Brincar Com o Cão” do que com qualquer outra coisa sobre a qual tenha conversado com alguém ou escrito para a faculdade. A música chega a um lugar íntimo das pessoas que é acessível. Recebi mensagens no Instagram a dizer que sentiam coisas e não as conseguiam meter por palavras e a minha música fê-lo. Com canções posso fazer muita coisa, contrariamente ao meu percurso académico, cheio de diretrizes sobre como falar e estar. Aqui ainda tens mais dimensões que acrescentam força às palavras e dão para criar um cenário específico. Este é o meu trabalho político.

Porquê Cada Qual No Seu Buraco como título para o álbum?

Veio da cena de “cada macaco no seu galho”, acho eu. E hoje em dia estamos cada qual no seu buraco, cada qual na sua miséria individual, que na verdade é coletiva, mas fazem tudo para nos esquecermos disso ou nos culparmos por ela.

Ao ressignificares o modo como fazes política podes renovar a esperança doutras pessoas que (ainda) acreditam nela?

Eu tenho uma visão do que é o espaço político não tão arcaica. Atualmente, parece que se quer mais evitar que algo se mexa do que realmente travar algo. O espaço político é tudo o que tocamos, o modo como interagimos uns com os outros, e a música não escapa a isso. Por acaso, gostava que existisse mais gente que falasse, que ocupassem espaços.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos