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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/10/2020

Uma voz à parte.

Chegados a 2020, que lugar veio ocupar Jay Electronica?

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/10/2020

É com razão que podemos chamar a Jay Electronica o Jack Kerouac do rap. Numa constante experiência nomádica, transmutada em fluxos de consciência ponderadamente debitados no papel, o lugar do rapper na cultura pode ser difícil de decifrar à primeira vista, mas, se há uma forma de o descrever, é como uma das personagens mais místicas desse universo.

Podemos traçar o seu percurso a partir do ano de 2007 com o seu Act I: Eternal Sunshine (The Pledge). Uma mixtape que inaugura com gravações de testemunhos do produtor Just Blaze e da singular Erykah Badu em rascunhos das suas primeiras impressões sobre um rapper que se apresenta como o portador da chave da inovação. Nos 15 minutos seguintes são traçadas as linhas de um ambiente calmo e melancólico, em que os samples da banda sonora de Jon Brion para o filme Eternal Sunshine of the Spotless Mind e a ausência da batida libertam Jay Electronica, que assim revela dotes de uma capacidade narrativa que lhe permite reproduzir através de palavras vários estados de consciência.

Saltamos para 1999, um ano dourado em que MF Doom edita Operation:Doomsday, a Stones Throw lança Soundpieces: Da Antidote dos Lootpack, e Mos Def mostra Black on Both Sides. Talvez tivesse surgido em melhor altura nessa época, mas a verdade é que só 10 anos depois é que o MC se chega à frente, a bruma desvanece e confirma-se aquilo que já era rumor no meio da comunidade hip hop: havia ali uma história única para contar. O rapper junta-se a Just Blaze para a produção de dois singles ilustrados com a fotografia de Nikola Tesla ao lado da sua bobine e dá-lhes os títulos “Exhibit A” e “Exhibit C”. Das duas músicas electrizantes destacamos a segunda com o seu caráter autobiográfico, com que narra a sua própria história de abuso de substâncias enquanto vivia na rua entre Brooklyn, Filadélfia e Detroit. Também o acompanhamos enquanto abraça as doutrinas religiosas de Elijah Muhammad e dos Five Percenters, aqui revelando linhas que serão condutoras no seu trabalho futuro. A experiência e maturidade apresentadas nestas duas faixas abriram portas para Jay Electronica, criando uma disputa feroz entre as editoras que viram nele um diamante em bruto, ainda por polir. Acaba por escolher a Roc Nation em 2010, com a promessa do Act II: The Patents of Nobility.



A imagem começa a desvanecer-se na década seguinte, com o adiamento do lançamento do disco. Jay Electronica fechou as portas ao público para reaparecer em 2014 no Brooklyn Hip Hop Festival ao lado de Jay-Z. Nesse intervalo, a sua presença no mundo mediático limita-se a resquícios de relatos de outros produtores e músicos, como The Alchemist ou Questlove, que falam sobre um Act II já terminado, mas com edição incerta, dependente que estaria de algumas decisões ainda por tomar.

Chegamos a 2020, as decisões já estão tomadas e, finalmente, somos presenteados com o primeiro álbum de Jay Electronica, A Written Testimony. Um trabalho estruturado com palavras bem ditas e ideias sólidas e desafiadoras, samples cuidadosamente investigados e escolhidos e colaborações certeiras, tanto que Jay-Z o acompanha durante boa parte do disco. Tem ainda a produção de The Alchemist, Swizz Beats, Hit-Boy, No I.D. e do grupo Khruangbin (com o sample praticamente intocado). Nas vozes podemos escutar Travis Scott, com um hook que nos remete para a utilização de auto-tune de Kanye West em “Heartless“, ou, melhor, em quase todo o 808s & Heartbreak. E ainda há The-Dream, compositor de hits que marcaram várias gerações.

A Written Testimony é um trabalho distinto que consegue justificar todas as esperanças depositadas no místico Jay Electronica. Podemos escutar o discurso esmagador de Louis Farrakhan, o líder da Nação do Islão, na introdução de um disco que durou 40 dias e 40 noites a materializar-se e que fica para história como uma das maiores esperas entre o anúncio e a execução. Logo nesse início conseguimos notar a afinidade de Jay Electronica com o cinema, com a banda sonora orquestral de L’Armee Des Ombres a servir de catalisador para um discurso explosivo e que serve como manifesto para a experiência que se segue. O projecto é uma celebração das virtudes espirituais que conquistou, ao mesmo tempo que compreendeu e internalizou ideias de poder e unidade negras, autossuficiência e autoaperfeiçoamento que lhe deram a energia necessária para emergir vitorioso dos desafios que lhe foram lançados pelos dados da vida. “Giving all thanks to God for this universal therapy” é a sua última frase em “Ghost of Soulja Slim”, tema em que Jay-Z só vem comprovar novamente aquilo que já sabemos: é um homem de peso no jogo, capaz de contar uma narrativa que o traz desde o tempo em que a violência policial não era reflectida na comunicação social, ou de narrar histórias de outras gerações que sofreram com as diferenças raciais nos Estados Unidos.



Seguimos para “Blinding”, onde se juntam G. Ry, AraabMUZIK, Hit-Boy e Swizz Beatz na produção. Uma música cheia de referências identitárias, com o rugir de um leão que simboliza o orgulho, a nomenclatura e a apropriação de temas que pretendem apropriar palavras que simbolizam poder sobre um sample que só os devotos na descoberta musical encontram, utilizando “Arusi Binti Kasimu With Sukuma Women”, retirado do Sound of Africa Series 151 e com referências como “It’s the return of the lost and found tribe of Shabazz, the Annunakis” em que reúne numa só frase referências ao Islão que representam povos gloriosos e migrantes, assim como deuses mitológicos dos antigos sumérios.

Passamos por “The Neverending Story”, com instrumental criado por The Alchemist numa viagem com Eminem três anos antes de se chegar A Written Testimony, em que a rima assume uma visão bíblica do mundo contemporâneo ao mesmo tempo que Electronica se descreve com uma queda maior por músicas mais introspetivas e meditativas, o que se compreende dada a textura instrumental escolhida para o tema em questão. Vamos cada vez mais para o interior deste novo universo escolhido por Jay Electronica e continuamos a ter narrativas de um lifestyle que remonta à entrevista dada em 2010 à Red Bull, em que fala acerca da sua vontade de reunir com outros artistas e estar junto de pessoas que detêm os mesmos objetivos que eles: fazer música que tenha algum significado e peso.

Continuamos num disco carregado de energia e referências autobiográficas e simbolismos religiosos, ao mesmo tempo que assume o materialismo do homem negro como a recuperação do sentido de realeza, como quando, por exemplo, referindo-se a Puff Daddy em “Shiny Suit Theory”, a primeira faixa lançada desde que assina pela Roc Nation, diz: “Nigga, fuck the undergound, you need to win a Grammy/ For your mama and your family, they need to see you shined up” ou “It’s the return of the black kings/ Luxurious homes, fur coats, and fat chains”. Ou quando se relembra das noites em que se viu engolido por hábitos de consumos mais obscuros e os assume como os degraus que o levaram a tornar-se o narrador que é hoje em “Universal Soldier”: “I Spent many nights bent off Woodford/ Clutchin’ the bowl, stuffin’ my nose/ Some of the cons, I suffered for prose”. Em “Flux Capacitor” atira linhas irónicas contra a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América que entra em dissonância entre o papel e a realidade ao mesmo tempo que desafia os ouvintes a testarem o seu “champion sound”.



Os sete minutos seguintes trazem-nos a “Ezekiel’s Wheel”; e provavelmente ninguém estaria à espera de uma referência ao livro O Alquimista de Paulo Coelho como a solução para o bloqueio de escritor e perfeccionismo que levaram a que o primeiro longa-duração de Jay Electronica demorasse tanto tempo a ver a luz do dia. “Sometimes, like Santiago, at crucial points of my novel/ My only logical option was to transform into the wind”, canta-nos numa toada calma com uma produção da sua própria assinatura. E sem grandes tumultos passamos para “A.P.I.D.T.A, All Praise Is Due to Allah”, escrita na noite em que Kobe Bryant e a sua filha morreram num acidente de avião, repescando um sample de Khruangbin (praticamente imaculado ao ponto de serem creditados diretamente na produção da música). “I got numbers on my phone that’ll never ring again”. Entramos nas despedidas de um disco que pode ser facilmente considerado um clássico moderno do hip hop. Com a consistência edificada durante os anos misteriosos de Jay Electronica conseguimos compreender um pouco deste período para o qual há pouca informação registada, mas conseguimos saber que existiu uma razão para que tenha demorado tanto tempo a lançar algo. Só quando a leveza da sua caneta e consciência o deixaram livre para finalmente produzir é que o rapper diligentemente anunciou um trabalho que duraria 40 dias e 40 noites a realizar e acaba por satisfazer as espectativas, justificando, com o teor fortalecedor da sua mensagem e experiência, todo este tempo de espera.

Finalmente recebemos Act II: Patents of Nobility em 2020. O disco anunciado em 2010 vê finalmente a luz do dia. Podemos olhar para este projecto como uma pérola avançada para o tempo em que estava a ser arquitetada. Este leak (que se transformou em lançamento oficial no Tidal) reúne faixas que já poderíamos encontrar online desde 2011 ao mesmo tempo que mostra algumas pela primeira vez. Mas, fundamentalmente, assume o papel de uma compilação de um artista que consoante a inspiração foi gerando algumas peças que merecem ser apreciadas, como por exemplo “Life on Mars”, com o sample de “I Know You’re Tired”, faixa de Charlie Wilson, cantor que podemos reconhecer também de “Bound 2” de Kanye West, ou o single “Letter to Fallon”, num mood melodicamente relaxante em que o MC fala sobre os desafios que o levaram a tornar-se a figura de peso que hoje é. Uma promessa que se estende por 16 faixas que nos permitem traçar uma história de Jay Electronica até 2020.

O americano é, definitivamente, uma figura peculiar. Em 2020 é muito difícil encontramos um artista desta magnitude com um output tão incomum e uma narrativa que carece de informações sólidas. Mas é essa uma história de desafios, derrotas e vitórias que nos garantem uma das melhores peças de hip hop lançadas este ano. Juntam a isso a perícia na entrega e o pensamento posto em cada uma das palavras e parece que estamos perante uma obra de longa ponderação que necessitou não só de tempo mas também de mestria. Ouvir/ler Jay Electronica é como folhear uma enciclopédia de referências que se experiencia e se sustentam nas ligações lógicas e simbólicas da mensagem que pretende passar ao ouvinte. Jay Electronica é o som da vitória comedida, é o som da meditação e da libertação, é o som do equilíbrio entre a energia e o significado do que se diz e de como se diz.

Em tempos de viagens curtas, insignificantes e dispensáveis, o elusivo artista propõe-nos obras que obrigam a mergulhos intensos em cada som, palavra e respiração. E isso é algo cada vez mais raro…


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