LP / CD / Digital

Charli XCX

Charli

Atlantic / 2019

Texto de Pedro João Santos

Publicado a: 24/09/2019

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Quanto mais se tenta definir, mais a pop se revela um contrassenso. A sua matéria centrífuga, de tendências abocanhadas para criar a nova grande ideia, serve de derrapante. O som plural cristaliza-se a muito custo e vê-se sempre mais difuso nas margens. Os elementos vitais da canção pop — orelhuda, arrojada, capaz de recortar uma emoção em tamanho único… — contaminam há muito tempo as zonas limítrofes do género, deixando de ser um bom barómetro. Então, que género é esse?

Charli XCX tem uma resposta. Se está 100% segura, pouco interessa, porque está na linha de combate. Desde Vroom Vroom, EP produzido em 2016 com a demolidora SOPHIE, tem dado a cara por uma pop de elevada octanagem, que importa o estilo transgressivo da PC Music para um plano quase mainstream. Em vez de diluir um imaginário onde se subvertem os princípios doces e platinados da rádio ideal, XCX veio modular e aprofundar esse espaço. Não surpreende, pois, que a digressão da famosa mixtape Pop 2 tenha visitado clubes minúsculos: cada metro quadrado um aglomerado de fãs suados, um ou outro pendurado do tecto, a celebrar música que é como algodão doce num pauzinho de arame farpado.

É a pop enquanto locomoção. Tão rapidamente explode no subterrâneo como se maquilha para os holofotes — no ano passado, XCX fez a primeira parte da tour de estádios de Taylor Swift. Em jogo está a versatilidade, uma linguagem para descodificar esta música fugidia e em que a artista é fluente; diz-se igual apreciadora deste género e da cena underground, gostando “de virar uma contra a outra”. Antagonismo, transição, metamorfose deliciosa: uma receita falível, e que podia ter sido motivo de preocupação para este novo Charli, introduzido com o Eurodance aguado de “1999” (um ovni em contexto de álbum), a que se seguiu uma colaboração com Lizzo, a modesta “Blame It on Your Love”.

Havendo questões sobre XCX ter limado as suas arestas, ela chama-nos a terreiro com “Next Level Charli”. O primeiro tema do novo disco tem nos teclados uma provocação, nos agudos a promessa da abrasão e no título um sumário: uma das estetas maiores da pop a atender ao seu chamamento. Na angústia de que “Gone” (musculoso dueto com Christine and the Queens) e “Cross You Out” comungam, assim como “I Don’t Wanna Know”, cultiva-se uma pop em devir, conexa com refrões extáticos e guinadas temperamentais, vindicativas. Na ameaça da fragmentação.



Charli desenha um mundo em que a música vigente é amorfa. Serve-lhe de rádio, imaginando os êxitos dum lugar onde o grotesco vive paredes-meias com o delicado. “1999” — a nostalgia levada ao cúmulo da acefalia, com bom ritmo — e “Blame It on Your Love” podem ser sucessos até no espaço sideral. Mais longe estão “Thoughts” e “Silver Cross”, que apesar de virem num assomo existencial e amoroso à thank u, next, comportam uma estrutura deformada; a fácil digestão é comprometida por um recheio de detritos metálicos e abordagens oblíquas, que seriam incompatíveis com canções prêt-à-porter.

A sofisticada “Warm”, a irresistível “Official” e a genérica “White Mercedes”, cuja guitarra parece saída do sample kit de Dua Lipa, engrenam na pop terapêutica e pessoal que é hoje vendida por atacado. Só que a versão de XCX costuma esquecer os atalhos, vai pelas estradas mais intrincadas e liga-se por fios descarnados, em conexões por vezes demasiado frágeis — que fazem pouco para Charli se emancipar como um álbum, face ao estatuto de mixtape partilhado pelos seus textos fundacionais, Number 1 Angel Pop 2. Perde o pé por gosto e sacrifica a coesão por um design de imprevisibilidade, que atinge o cume na embriaguez megalómana de “Shake It”, com distorções vocais tão sobrenaturais quanto o fim da odisseia em “2999”.

O melhor álbum de sempre, de acordo com a sua autora. É mesmo? Não, mas pouco interessa. A confiança que projecta no seu trabalho fá-lo orbitar à volta dessa grandiosidade, mesmo quando está a anos-luz do seu próprio pedestal. É o manual para entender Charli XCX em 2019: uma síntese devidamente acidentada que explora o contínuo das suas facetas, emoções e aptidões. Incluindo a turbulência, os momentos menos inspirados, e as manipulações que fazem a sua voz fluir como água e, logo depois, cortar como uma faca. Faz tudo parte.


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