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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/02/2023

O belo dá lugar ao útil.

Charli Tapp sobre Utility: Signal Yellow: “Havia intenção de fazer algo cru e honesto, que remetesse para as artes performativas”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/02/2023

Nascido em 1991, o artista francês Charli Tapp insere-se dentro de toda uma geração que cresceu a presenciar um período conturbado, de oposição tecnológica, entre a palpabilidade do analógico e a automatização do digital. Logicamente, não será inusitado reconhecer a influência que esta dicotomia teve em Utility: Signal Yellow, a exposição que estreia a solo na cidade de Lisboa após participar em exposições colectivas no MAAT (2016) e na galeria MONO (2019 e 2021), tendo também actuado neste último espaço em 2020.

Através da mostra de peças robustas, trabalhadas manualmente, Utility assenta no princípio de que “nenhuma peça existe apenas através da percepção da mente, uma vez que todas servem um propósito mecânico no espaço.” O lugar de protagonismo destas peças é conferido precisamente na forma como estas funcionam, determinante para a sua compreensão visual e auditiva – podem conferi-lo nas composições disponibilizadas por Tapp no seu SoundCloud, cujo teor experimental oscila de igual forma entre os universos pré e pós-digital.

Em conversa com o Rimas e Batidas, procurámos entender o processo e a motivação que levou o artista a conceber esta exposição singular, que se encontrará patente entre os dias 23 de Fevereiro e 5 de Março na MONO.



Embora esta seja a tua estreia a solo em Lisboa, já tinhas participado em exposições colectivas e performances nesta cidade anteriormente. Como tem sido o feedback do teu trabalho até então em Portugal?

Eu acho que o feedback tem sido bastante positivo, especificamente acerca do som. Na verdade: normalmente, a reacção das pessoas perante uma performance é obtida em directo, não é o mesmo que pendurar uma pintura na parede, onde não sabes realmente o que alguém está a pensar ou a sentir – quando tu actuas, tu partilhas um momento da verdade com o público e isto é diferente em cada lugar. A performance que tivemos na MONO (acho que foi a que tivemos em 2019 ou 2020) representou um momento muito interessante: a atenção das pessoas foi muito receptiva para com o que trouxemos e, até agora, tem sido sempre excelente fazer coisas em Portugal, espero que consigamos fazer mais coisas cá.

A press kit refere a peça central, The Stereos, como sendo “(…) um par de robôs glockenspiel sopranos de nível de áreas de construcção civil montados em tripés.” Podes explicar de forma mais detalhada no que consistem e qual o seu propósito?

Na última Bienal de Veneza, apresentei Velocity0, um piano de cauda reproduzido autonomamente; The Stereos fora a mais recente adicção a este arsenal de máquinas musicais robóticas que estamos a construir. Ao contrário de Velocity0, esta peça vem num par – vejo essa peça como uma espécie de duo, portanto precisaria de um nome de banda fixe [risos]. Tecnicamente, são dois glockenspiel robóticos solenoides, portanto o seu som é muito agudo e frágil. Seria suposto reproduzirem som de forma delicada, mas a forma como atacam as teclas metálicas é consideravelmente violenta. Estão elevadas por 2m e 45cm de altura em tripés DeWalt. 

Toda a exposição é concebida como se de uma área de construcção civil se tratasse; aliás, a galeria encerrou recentemente para refazer o seu piso, e estamos a apresentar esta exposição antes deste ter sido pintado, portanto dá a ideia de que a MONO ainda se encontra em construcção. É daí que o “signal yellow” advém: também denominado por RAL 1003, é um tom de amarelo usado para fins de sinalética – sinais de aviso, de ferramentas, de estruturas… É uma cor que transparece informação, mas também é lúdica, e queríamos ressalvar este último aspecto, o que define a ambivalência de The Stereos; queríamos que a peça fosse capaz de ser montada e reproduziada em qualquer tipo de contexto, e pensar em ambientes desafiantes é um padrão interessante contra o qual competir. 

Num mundo cada vez mais direccionado para o acolhimento da produção virtual e automatizada, a premissa de Utility reinvindica o valor da produção industrial levada a cabo pelo controlo humano. Não deixa de ser curioso que um artista inserido na geração millenial, que caminhou praticamente de mão dada com o início da revolução digital, partilhe este tipo de sensibilidade. Que preocupações te assolam relativamente a este fenómeno? 

Não me consideraria “preocupado”, eu acho que é o que é, tanto que estou interessado nesse fenómeno, mas a necessidade de explorar esta temática partiu de… Na verdade, de uma data de coisas [risos]. Como podemos ver no meu trabalho, muitas das minhas peças são feitas à mão e num sentido muito DIY, tentando alcançar algo perante o qual não costumamos ter acesso sem conhecimento técnico. Quando era miúdo, comprava-se um rádio e este vinha com um manual de utilizador, que por sua vez incluiria, por norma, um manual de serviço com a esquematização do rádio aí impressa, para que quem tivesse interesse o pudesse reparar em caso de dano, e isto é algo que estamos a perder. Por um lado, temos uma quantidade infinita de recursos online ao nosso dispor – se quiseres aprender a programar ou soldar algo, consegues achar uma via para este tipo de conhecimentos online, e isso é incrível -, mas ao mesmo tempo, os objectos que adquiridos hoje em dia são habitualmente “mudos”, percebes? Não nos dizem como funcionam e, como tal, temos de o aprender através dessa comunidade e não do próprio objecto. Por exemplo, se abrires o teu smartphone não irás aprender como funciona, apenas o irás partir, estás a ver? É esta a mudança de paradigmas na qual nos encontramos, e isso é uma das motivações. 

Outra delas está relacionada, como referiste, com esta geração que acabou de testemunhar a morte do analógico e a ascensão do digital. Quando estava na exposição da Bienal de Veneza, apresentei um piano autónomo, intitulado Velocity0, e estava interessado na reacção do público, que regularmente via a peça como algo mágico e que focaria a sua atenção nos algoritmos, no procedimento (que era uma componente fundamental da peça e o é no meu trabalho em geral), mas ao mesmo tempo, tudo é sustentado por sistemas físicos, desde os algoritmos processados por computadores até às máquinas que reproduzem o som. Posto isto, queria restringir o foco à fisicalidade das ferramentas às quais recorremos em Utility, porque sinto um alheamento progressivo destes conceitos e creio que isto possa resultar num efeito perverso onde, a pouco e pouco, perdemos a nossa habilidade natural de acedermos e nos divertirmos com um tópico, a uma tecnologia ou a uma ferramenta. Para quem queira fazer esse esforço, não há problema, porque irá imergir nos respectivos recursos e aprender, porém, acho que a porta de entrada está mais fechada do que no passado. Mas de certa forma, voltando à tua questão, não acredito que exista uma desconexão tão grande entre o virtual e o físico, são dois lados da mesma moeda, e acho que é disso que esta exposição se trata, não colocar um lado contra o outro.

Alguns dos conceitos manifestados na descrição da exposição – o objecto artístico não como um fim, mas sim como um meio, a robustez especial das obras em oposição ao lugar-comum da preciosidade que conferem – parecem romper com as ideias predefinidas com que olhamos para a arte em geral. É suposto que Utility… rompa também com estes ideiais?

[Risos] De certo modo, penso que sim. Não é necessariamente um comentário sobre o mundo da arte ou algo dentro dessa linha de pretensão, apenas um convite para o meu próprio estúdio: 90% das exposições com que lidamos implicam tratar de logística e de transportar, conceber e reparar coisas, e mostrar coisas penduradas numa parede ou num cenário limpo é algo que às vezes se encontra bastante deslocado da realidade de criar estas peças. Para além disso, devido à minha relação com a música, tenho carregado malas de vôo de 30kg, são super pesadas e estão danificadas, e esta é uma realidade que queria levar para o mundo da arte. Queria pensar na exposição como se fosse a preparação de um concerto: tu chegas com todo o teu equipamento, e há um setup e um soundcheck, seguindo-se o concerto.  Acho que o procedimento neste caso é semelhante, porque todas as peças são inteiramente desmontáveis, levando a outra preocupação muito importante, a da portabilidade. Resido actualmente no Japão e a exposição é em Lisboa, logo é crucial entender como é que podemos mover coisas de um ponto A para um ponto B, sobrevivendo à viagem e ao ambiente onde serão acomodadas; por exemplo, no caso de The Stereos, embora sejam gigantescos, eles desmontam-se integralmente de modo a que possam caber em duas malas, ser transportados por uma única pessoa, e ser montados ou removidos em menos de uma hora.

Havia a intenção de fazer algo que fosse cru e honesto, o que remete para o ponto anterior das artes performativas, de estar à frente de uma plateia e oferecer algo verdadeiro; eu queria adoptar a abordagem de uma performance musical, mesmo que fosse dentro de um prisma mais ligado à escultura.

Dividido entre França e Japão, como se tem manifestado esta disparidade geográfica no teu universo artístico?

Um dos aspectos importantes sobre tal é precisamente o da portabilidade, porque… quer dizer, se eu tiver de levar uma peça num avião, terei de pensar bem sobre o assunto antes de o fazer [risos]! Também tenho de referir a questão do ambiente, porque França e Japão são países completamente diferentes, e, na verdade, é muito fácil criar arte na França dentro desta perspectiva ambiental – não tens muitas dificuldades, podes armazenar as tuas peças numa barraca sem correres o risco de se deteriorarem no espaço de 48 horas; por outro lado, na região do Japão onde estou, a humidade é extremamente elevada, temos terramotos, tufões, e todos estes fenómenos naturais relembram-te da fragilidade de tudo: das casas, dos edifícios, dos equipamentos… Ou aceitas isto, ou tens de te preparar para tal, e por isso, como resido no Japão, tenho de pensar na questão da integridade das peças, é muito importante. Adoptámos uma mentalidade de estar preparados para qualquer catástrofe no nosso estúdio, fui ficando cada vez mais interessado em como a arte também precisa de ser isso, porque, por exemplo, nós acabámos de passar por uma pandemia onde o sector artístico deu um passo atrás por não ser considerada prioritário, e eu acho isso super interessante, porque nos faz questionar se a arte consegue ou não suportar mudanças radicais, portanto, estar no Japão causou-me um impacto grande. Por fim, muita gente me pergunta sobre a cultura japonesa, e claro, é fantástica, é extremamente audiófila, é uma influência enorme para esta exposição.

Existe um sentido constante de asseio mesmo na brutalidade. As áreas de construcção civil, em particular, são organizadas de uma maneira muito distinta. Tóquio encontra-se num estado constante de destrucção e construcção, mas estas áreas são tão bem organizadas que o simples acto de olhar para as mesmas é parecido a ir ver uma peça de ballet – cada uma é delimitada por uma barricada branca imaculada com um medidor de decibéis e uma inscricção “safety first”. Esta exposição tem em consideração esse princípio de dureza envolta em sensibilidade: por exemplo, o espaço expositivo é dividido por um biombo tipicamente japonês, só que em estrutura de aço, em amarelo “signal yellow” e montado em acrílico; também existe uma “safety station” que providencia fones protectores para qualquer espectador que se queira precaver da peça The Stereos. Grande parte do objectivo em Utility… passa pelas respectivas peças se encontrarem presentes não apenas pela sua beleza ou por se inserirem numa narrativa interessante, mas também pelo seu propósito funcional.

Por fim, e uma vez que esta é uma publicação sobre música: qual a experiência auditiva que pretendes transparecer nesta exposição? Encontrar-se-á no mesma linhagem do que podemos escutar nas tuas composições disponíveis online?

De um ponto de vista sonoro, costumo estar mais interessado em… Por exemplo, se trabalhar com um piano, estou mais interessado em saber qual é o timbre desse piano, qual será, talvez, o som dos seus martelos, as suas mecânicas, qual é a sua fisicalidade que o distingue de outros pianos, e para mim isso vale para qualquer outro instrumento – até mesmo sintetizadores digitais, existe uma sonoridade no plástico… Dentro das composições da minha autoria que podes encontrar online existe um excerto de uma banda-sonora que fiz para o filme Blockchain, e a ideia pretendida para essa banda-sonora era a de utilizar apenas synths de brincar e coisas assim, e o recorrer ao timbre destas máquinas foi o que guiou a composição em causa. Da mesma forma, e uma vez que estamos a trabalhar com máquinas, sinto que uma grande parte da experiência auditiva em Utility… passará pela fisicalidade destas máquinas, até mais do que pela melodia ou pela composição ou algo do género, e quero que a experiência aconteça de forma deambulatória ao invés de uma forma habitualmente central. A componente sonora da exposição é uma extrapolação das áreas de construcção japonesas. Utilizámos gravações de martelos pneumáticos a partir betão como base para a composição interpretada por The Stereos; estes robôs não são propriamente sincronizados, o resultado é uma paisagem sonora generativa. Eu chamo a isto um dueto trapalhão de martelos pneumáticos.


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