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Fotografia: Mohamad "Rifo" Al-Rifai
Publicado a: 11/09/2025

O músico e produtor sediado em Lisboa tornou-se no primeiro artista contemporâneo a assinar um disco pela editora Habibi Funk.

Charif Megarbane está a fundir a tradição libanesa e a library music num diário sonoro chamado Hisstology

Fotografia: Mohamad "Rifo" Al-Rifai
Publicado a: 11/09/2025

Todos sabemos o quão satisfatório pode ser ter uma epifania, aquele instante quase neurológico que muitos desejam com todas as forças. Uma sensação tão intensa que se assemelha a voltar a ver o mundo pela primeira vez. No entanto, é importante lembrar que esta é uma palavra carregada de valor religioso, senão mesmo místico. Mas, mesmo diante dos nossos olhos, em Lisboa, encontramos Charif Megarbane, músico, produtor libanês e autor de mais de 100 discos, cuja capacidade de produção só pode ser comparada a algo sobrenatural.

Embora alguns discos estejam assinados em nome próprio, a maior parte da sua obra vive sob diferentes alter egos reunidos em Hisstology, o seu diário sonoro. As ideias de Megarbane surgem no silêncio e na paz da madrugada, em casa, com poucos recursos. Mas também podem nascer no banco de uma estação de comboios ou mesmo durante um apagão. Circunstâncias que nunca o limitaram, pelo contrário: a sua criatividade funciona como uma esponja.

O nome de Charif Megarbane começou a ser alvo de maior burburinho quando se estreou como primeiro artista contemporâneo da editora Habibi Funk, onde já publicou três álbuns marcados pela sua identidade singular. O próprio define essa música como Lebrary — uma fusão entre sonoridades libanesas e a chamada library music. Imersos no vasto espólio do artista, não resistimos a convidá-lo para um café, numa manhã em Lisboa.



A paixão pela música de Megarbane nasceu em casa. Filho de arquitetos, cresceu rodeado por maquetes e moldes, mas também por discos de jazz, que vinham desde os clássicos até aos mais livres improvisos. É nesse cruzamento entre a arquitetura e a música que se desenha a sua identidade artística: “Há uma espécie de arquitetura nos álbuns. Principalmente quando gravo sozinho, os temas vêm com muitas camadas. Começa-se com um instrumento e depois vão-se adicionando outros. Essa é a minha verdadeira paixão. Para além de tocar guitarra ou diferentes instrumentos, é a noção de sobrepor sons e criar um puzzle que só eu consigo resolver”.

Do jazz, o jovem de Beirute canalizou os seus interesses para o blues de Chicago, que atravessara os oceanos até se infiltrar na cultura libanesa. Com o amigo de infância Dominique Salameh, fundou o seu primeiro projeto: os Wayward Souls. Megarbane viveu a adolescência em tempos atribulados. Estávamos nos anos 90 e o Líbano acabava de sair de uma guerra civil — conflito iniciado em 1975 e encerrado apenas em 1990. Nesse cenário, a música tornava-se não só uma válvula de escape, mas também, por sorte, uma forma de ganhar uns trocos. “Gravávamos cassetes para depois as vender na escola”, recorda, sublinhando que a essência DIY já se manifestava. “Não tínhamos grande escolha”, admite. Para além desse contexto adverso, a globalização não tinha chegado: “Era uma altura em que a Internet ainda era prematura, por isso questionávamo-nos como poderíamos ser conhecidos na Europa. Tínhamos ambições, mas com muito pouco significado”, explica.

Numa noite de improviso organizada em sua casa, Megarbane foi surpreendido pela presença inesperada de Otis Grand, guitarrista respeitado na cena do blues norte-americano. “Ele mostrava que gostava da música que estávamos a tocar. No final do concerto, aproximou-se de mim e disse: ‘Devias cortar as cordas da tua guitarra no topo, senão vais estar sempre desafinado.’” Para os jovens músicos, aquela visita foi um enorme incentivo — algo que ainda hoje transparece no entusiasmo com que Charif conta a história.

Para ele, a música era “uma obsessão, uma verdadeira paixão”. Porém, pela falta de compreensão dos pais, partiu para o Canadá para estudar numa universidade em Montreal. Não revelou qual o curso, mas tudo indicava que seria um curso que lhe garantiria sucesso e estabilidade financeira. Nunca chegou a terminá-lo. Em vez disso, passava as madrugadas no quarto a compor melodias com os poucos instrumentos que possuía.

Em Montreal, o movimento rock new wave dos The Smiths já ecoava pelos ambientes mais juvenis. Embebedados pela novidade sónica, Charif, Dominique Salameh e Jeremy Proville fundaram o grupo Heroes & Villains. O projeto demonstrou frutos a longo prazo: gravaram o seu primeiro disco Air Sea Rescue (2006) com o produtor Howard Bilerman (ex-baterista dos Arcade Fire) e apresentaram-se por todo o Canadá. Mas pelo desgaste provocado pelo ritmo acelerado, Heroes & Villains separam-se e transformam-se numa “banda remota”. Cada um no seu estúdio caseiro. 

A mudança surgiu na mesma altura que o jovem músico descobrira o seminal álbum de J Dilla, Donuts (2006), a derradeira edição do rapper e produtor antes de morrer, a maior parte feito na cama de hospital. “O disco define a ideia de que se pode criar música instrumental de forma rápida e espontânea”. Detroit, tal como Montreal, é uma cidade fria onde se passa metade do ano sozinho no quarto, “a fumar erva”, e para Megarbane foi uma descoberta que apareceu na altura certa. “Foi uma forma de capitalizar essa solidão, que nunca me incomodou. Era uma forma de experimentar, gravar e avançar musicalmente com diferentes texturas, ao mesmo tempo que tinha a banda à parte. Com a banda, arranjar as coisas demorava dias ou semanas, mas com isto, demora apenas horas ou minutos”. Um pensamento que mudou toda a musicalidade de Charif Megarbane, levando a criar o seu mais ambicioso projeto Hisstology, produzido em várias partes do mundo — Líbano, Quénia, França, Inglaterra e atualmente em Portugal — e sempre com a mesma equação: ele, os seus instrumentos e o seu computador. 

[O diário sonoro chamado de Hisstology]

O diário sonoro intitulado Hisstology é quase uma marca identitária da filosofia DIY de Charif. Numa tradução livre, significa “a ciência do chiado”: o ruído característico que acontece quando chegamos ao fim da cassete. “Enquanto gravava, as pessoas diziam muitas vezes: ‘Soa bem, mas tem demasiado chiado’. Para mim, isso nunca foi um problema”, afirma. A motivação era clara: independência. “Não queria esperar por ninguém para lançar música. Só queria liberdade pura”. Se ouvirmos a discografia de Hisstology do início ao fim, compreendemos que se trata de um diário que regista o desenrolar da sua sonoridade, criatividade e congela algumas memórias das suas viagens pelo mundo, com outros músicos ou sozinho. Esta grande história é contada em vários subprojetos — e se me permitem, chamemos-lhe de heterónimos. “A ideia é criar a ilusão. O cérebro pode fingir que somos o Steve, a Jane ou o Mohamed. Sem cair na esquizofrenia, penso que, em termos criativos, isso é uma licença para a liberdade”, conta.

Hisstology reúne hoje 21 subprojetos, que somam mais de 100 discos. Entre as personagens sonoras, destaca-se o Cosmic Analog Ensemble, onde Charif explora instrumentos pouco convencionais e revela o seu dom expressionista, em que transforma emoções e memórias em composições. No álbum Subway to the Minaret (2014), por exemplo, cada faixa recria o som imaginado de uma estação do metro de Londres. Apesar das diferenças entre projetos, todos partilham a mesma base: o método DIY, a sonoridade do Médio Oriente e o ambiente cinematográfico.

Outra característica que podemos encontrar no universo Hisstology são os “álbuns de micro-ondas” e os “álbuns de forno”. Walking Fast, Not Running (2015) do projeto Firahc Enabragem é um dos álbuns produzidos apenas em uma madrugada. Descartando ser um artista com uma grande facilidade de atrair epifanias, este disco, assim como o título indica, é o resultado de uma tentativa de programar uma bateria numa MPC. Conceitos simples, motivados apenas pela curiosidade que inconscientemente resulta num disco micro-ondas. “Às vezes, instrumentalmente, não é preciso muito, mas quando a vida nos permite dedicar dois ou três dias a uma coisa sem interrupções, isso pode ser poderoso. Se já se tem consciência dos resultados finais, então é uma forma de manter um sentido de espontaneidade e tentar integrá-lo e aplicá-lo. Isto é o ‘material de micro-ondas’. Os resultados podem não ser perfeitos, mas o facto de ter sido feito tão rapidamente torna-se parte da história do álbum”, explica. Já os “álbuns de forno” exigem tempo e paciência. São noites inteiras dedicadas à busca do som perfeito. “Vais adicionando um pouco de sal e pimenta, provas e deixas no frigorífico durante a noite para que a textura mude”, compara. Na grande cozinha criativa de Charif, milhares de ideias fervilham nesse caldeirão — mas apenas 5% chegam ao público.

[Em busca da diáspora libanesa]

Foi já em Lisboa — para onde se mudou em 2020 — que Charif conheceu pessoalmente Jannis Stürtz, produtor alemão e fundador da editora Habibi Funk, numa visita a propósito da apresentação do documentário sobre o músico Ahmed Malek. Curiosamente, já tinham trocado mensagens anos antes por mera apreciação mútua. Mas foi nos Anjos 70 que se encontraram. “Dei-lhe um dos meus vinis. Depois ele esteve algum tempo mergulhado na música. Mas a nossa colaboração não aconteceu logo: levámos o nosso tempo”. Com o lançamento de Marzipan (2023), Charif tornou-se o primeiro artista contemporâneo a integrar o catálogo da Habibi Funk — um marco que o enche de orgulho. “Adoro a música e a editora. Especialmente o Ahmed Malek. E até descobri artistas libaneses que eu próprio não conhecia, como Esam Haj Ali. É essa a força da editora: mostrar-nos as flores do nosso próprio jardim. Foi a prenda mais bonita que alguém me podia dar”, confessa. 

Depois da sua estreia, Charif lançou mais dois discos pela Habibi Funk: Hamra / Red (2024) e Hawalat (2025): trabalhos que nasceram de uma motivação própria do artista, mas que se cruzavam com a filosofia da editora. “Quis aproveitar a oportunidade para criar algo com significado”, explica. Marzipan foi o primeiro gesto: uma declaração emocional de amor ao Líbano, longe de pretensões antropológicas ou etnomusicológicas. “Era mais uma homenagem ao meu país, com um certo humor em alguns aspetos, apesar de ser música instrumental, o que leva a ser menos compreendido”, conta. Já Hamra / Red amplia a perspetiva: “É como viajar pelo mundo na narrativa do álbum. Enquanto Marzipan olha para o Líbano a partir do exterior, Hamra / Red olha para o mundo a partir do interior do Líbano. Inclui diferentes lugares marcados pela diáspora libanesa, espalhada por todo o lado”.

Nessa busca pela diáspora libanesa, Charif veio afirmar o seu fascínio pela chamada lebrary music — uma mistura entre música libanesa e library music, termo usado para descrever a música criada para rádios, televisões e filmes, especialmente na Europa do pós-guerra. “Por exemplo, havia álbuns pensados para cenas específicas: uma perseguição de carros, uma cena de tensão. Eram catálogos de possibilidades sonoras”, esclarece. Segundo o músico, trata-se de um universo surpreendentemente moderno e diverso. “Não é um género em si, porque todos os géneros estão representados. Quando ouvimos library music italiana, francesa ou até escandinava, percebemos a riqueza e a modernidade dessa produção”. Não por acaso, Charif sempre teve uma obsessão pelas bandas sonoras dos filmes italianos, como de Ennio Morricone, Riz Ortolani, ou as trilhas de Quentin Tarantino

No mais recente álbum, Hawalat (2025), Charif abriu pela primeira vez espaço para colaborações. A faixa “Helia” foi composta em colaboração com o músico sueco Sven Wunder. “Descobrimos a música um do outro e entrámos em contacto. Rapidamente percebemos que tínhamos influências semelhantes, vindas tanto dos nossos países como de outros lugares. Há algo de muito moderno nisso: a noção de distância desaparece e aprendemos mais sobre a nossa própria cultura através desse diálogo”, diz. 

Apesar de sentir orgulho em levar a bandeira libanesa pelo mundo, Charif resiste a ser catalogado apenas como músico do seu país. O que mais valoriza nestas colaborações é o encontro humano. “Não trabalho com o Sven só para acrescentar um toque sueco à minha música, nem o contrário. Há uma apreciação mútua, primeiro como músicos, mas sobretudo como seres humanos. E talvez o mais curioso seja descobrir sempre semelhanças inesperadas entre culturas tão diferentes”. 

Hoje, já não encontramos Charif Megarbane isolado no estúdio. Em 2024, com a ajuda de Jannis Stürtz e da Habibi Funk, voltou à estrada ao lado do conceituado músico libanês Rogér Fakhr. Ao mesmo tempo, no seu modesto espaço em Lisboa, abre as portas a novos e promissores artistas — como os irmãos Dana and Alden, de Eugene, Oregon, com quem produziu Speedo (2025), um disco que combina o jazz luminoso dos irmãos com o registo DIY característico de Charif.

Mais do que posicionado do Líbano para o mundo, não sabemos quantas novas composições estará neste momento Charif Megarbane a criar, mas uma coisa é certa: o próprio não parece preocupado com limites. Aguardemos por um próximo, apesar de nos deixar com imenso trabalho ainda por explorar e apreciar.


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