LP / CD / Digital

Chance The Rapper

The Big Day

Edição Independente / 2019

Texto de Miguel Alexandre

Publicado a: 05/08/2019

pub

Há uma cena no filme Elf em que Will Ferrell entra subitamente no escritório do pai durante uma reunião de negócios para declarar que está loucamente apaixonado: “I’m in love, I’m in love, and I don’t care who knows it”. O momento é bastante memorável entre os fãs do filme, mas dentro do contexto do enredo, é feito numa altura inapropriada, sem ninguém pedir e fora do que se esperava da personagem. The Big Day, o tão aguardado álbum de estreia de Chance The Rapper, é o equivalente musical a essa mesma cena: desamparado, desnecessário, condescendente e, acima de tudo, extremamente kitsch. A metodologia usada neste trabalho é qualitativa, no sentido em que é importante gerar hipóteses, experiências, percepções e usos para serem mais tardes postas sob avaliação, mas aqui as variáveis são fracas e as hipóteses mal executadas. Chance alardeia-se nos momentos que mais lhe cortam as asas. No final, acabamos com um resultado insípido, o resultado de um homem que voou demasiado perto do sol e que ficou com queimaduras permanentes.

Há, no entanto, um controlo por parte de Chance na sua mestria. Nos últimos anos, consolidou-se o lugar-comum em que ele não teria gosto na escolha de instrumentais, produtores ou até mesmo de uma certa direcção artística, preferindo substancialmente seguir um caminho a solo. Nunca se associou a grandes editoras, publicando sempre o seu material de forma independente, o que lhe garantiu três mixtapes aclamadas:10 Day, Acid Rap e Coloring Book – esta última vista como o magnum opus da curta carreira, e vencedora de três GRAMMYs em 2017. Tais carimbos não deixam de ter o seu revés, colocando ao mesmo tempo uma elevadíssima expectativa em cada novo álbum, especialmente quando falamos do álbum de estreia. The Big Day foi antecipado fervorosamente pelos fãs do rapper e pelos críticos. Quando foi revelado o alinhamento e a ficha técnica, vários nomes chamaram a atenção: colaborações com Nicki Minaj, John Legend, Megan Thee Stallion, Shawn Mendes, Death Cab for Cutie, Randy Newman, e tantos outros. A produção ficou entregue a Nico Segal, Timbaland, Justin Vernon, Murda Beatz e ainda ao próprio Chance. Tinha tudo para correr bem, certo? Então, por que razão não correu? O que aconteceu, afinal?

O núcleo deste disco foca-se na relação que o artista tem com a mulher, Kristen Corley. Casados de fresco, Chance mostra-se exuberante quando lista exemplos de como descobriu o amor verdadeiro e como pretende viver o resto dos dias a seu lado. É uma abordagem soalheira, e ainda mais entusiasta em celebrar o melhor da vida quando a pomos em contraste com o ambiente funesto que, muitas vezes, se vive no hip hop. Não há nada de errado em celebrar possivelmente a altura mais feliz da vida dele, o problema é que a execução não faz jus à premissa. The Big Day é a banda sonora de quem ainda está no copo-de-água e Chance recusa-se a sair de lá.

Vamos por partes. “All Day Long”, a faixa que abre este projecto, é um throwback aos tempos de Coloring Book: pulsos de soul, uma mão-cheia de ritmos acelerados e uma fracção gospel aconchegante que nos pinta o cenário das igrejas baptistas americanas. Esta canção é um bom começo e a qualidade mantém-se ainda em “Do You Remember”, um slow-burn que invoca nostalgia como uma arma potente para falar sobre velhos tempos: “Used to South Pole, summers taking the 6 bus to South Shore/ Never sold out, but now we out-sold/ That was the summer I learned to love the great outdoors”. É piegas, é meloso, é aquele sentimento que nos deixa incomodados, mas que ao mesmo tempo nos põe um sorriso melancólico na cara. A fórmula não é nova — nada disso –, antes de Chance já vários rappers usavam emoções de nostalgia para descrever situações passadas. Há “Old School” do Tupac, “Going Through Changes” de Eminem, ou até mesmo “As I Reminisce” do Masta Ace – para aqueles fãs mais ferrenhos do género. O que Chance está aqui a fazer é trazer antigos valores sob uma camada refrescante, o que torna esta faixa benevolente e banhada na sua própria introspecção. Como disse, estas duas primeiras canções são boas, introduzem-nos a um álbum com algum potencial e mostram-se voláteis na sua execução. Até aqui tudo bem; o problema é dizer o mesmo do resto.

Chegamos à terceira faixa e aqui começa um tombo violento. São, no total, mais de 70 minutos em que o rapper se reparte entre uma renovada figura religiosa e um homem de família que pretende esquecer o seu passado – tudo numa tentativa fatigante de se provar como um artista sério entre os seus contemporâneos. Chance nunca foi o artista mais poético do hip hop de que nos invoca a memória (o que não o diminui um milímetro), mas é dos mais melódicos. Durante anos, foi um mestre de conjugar samples de momentos de grande importância da cultura afro-americana com versos originais e sonicamente aprazíveis. “Eternal” e “We Go High” saem facilmente dessa fornalha, mas falham no seu propósito: mostram alma e compaixão — algo que até agora nunca faltou — mas parecem forçados, inócuos e sem qualquer vontade em seguir um caminho em específico. Misturam-se vários elementos de neo-soul acompanhados por lições espirituais, não chegando a nenhuma conclusão em específico – ou pelo menos recuso-me em acreditar que a lição seja: “Side chicks make they Kool-Aid with Splenda”.

É no conteúdo lírico onde a alma que outrora era manifesta de maneira tão simples e cristalina – oiçam “All We Got” ou “Summer Friends” – desvanece em versos completamente constrangedores – “Hey  there, lovely sister/ Won’t you come home to your mister?/ I’ve got plans to hug and kiss ya/ I’ve  got plans to hug and hug and hug you”, em “Let’s Go on the Run” – ou amadores e feitos com pouco tempo, e também com pouca vontade – “But my baby moma stopped me in a meeting/ Just to AirDrop me some nudes”, de “Hot Showers”. Ao início parece uma paródia, que eventualmente se irá desvendar em algo mais sério e preponderante. Mas esse momento nunca chega: Chance circula em torno das mesmas ideias, dos mesmos ritmos, da mesma entrega emocional; passados 40 minutos, as escolhas temáticas tornam-se extenuantes, como se o rapper ficasse sem assuntos interessantes por dizer e andasse desesperadamente à procura de novas ideias – e aqui entram as colaborações.



Como em grande parte do álbum, os convidados passam por nós num abrir e fechar de olhos, e em certas ocasiões é necessário uma segunda volta para lhes darmos devidamente atenção. Em The Big Day, Chance recruta Nicki Minaj e Megan Thee Stallion, duas das mais relevantes MC femininas de hoje. É uma aposta ambiciosa, mas que cai em redundância quando as duas são ofuscadas pela mediocridade da música. Minaj aparece em “Slide Around” e “Zanies and the Fools”, dois dos momentos mais suportáveis do álbum, onde a felicidade dele parece genuína e não tão forçada a ser partilhada com quem o ouve: “Livin’ with some people I could die around”. Mas tal encanto é facilmente esquecido devido a uma produção que soa a uma cópia de temas passados. “Handsome”, onde participa Thee Stallion, é uma dor de cabeça: percebe-se que aborda a felicidade que viveu no dia do casamento e que nunca se sentiu tão bem com ele mesmo, mas as constantes referências a experiências sexuais passadas não se ligam a esta narrativa. Discursos ostentatórios sempre estiveram em algumas das suas letras e não têm de ser condenáveis. Aqui, contudo, saem com mau gosto e sem razão superior para as sustentar.

O álbum arrasta-se dolorosamente até ao final, um sítio onde, após várias adversidades e restrições, parece ser difícil chegar. Chance continua a ser dos rappers mais brilhantes e dedicados da sua geração, apenas apresenta-se em The Big Day cheio de um entusiasmo mal colocado. Há brilho no seu trabalho e se escavarmos muito fundo, conseguimos encontrar traços de sons que se fossem correctamente explorados, dariam um resultado diferente – os sintetizadores distorcidos de “Roo” acompanhados pelos vocais aéreos das CocoRosie, a assertividade de “Big Fish”, e a simplicidade emotiva de “Sun Come Down”, que parece retirado do último trabalho de Steve Lacy, são alguns exemplos desenhados pelo artista como potenciais, mas que foram deixados na planta. O que temos aqui é um registo opressivamente optimista que condena quem não segue os seus passos, e não entende que a felicidade deve ser orgânica, e não embuchada por quem ainda não a consegue sentir.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos