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Publicado a: 04/10/2016

Chance The Rapper: Pintar o mundo de cor diferente

Publicado a: 04/10/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

 

Diz o bem humorado adágio que o passado foi sempre mais fácil de prever do que o futuro e de facto não é difícil a partir do presente olhar para momentos-chave da história da pop – de Elvis, Dylan e Beatles a Sex Pistols, Run DMC ou Nirvana – e perceber como, cada um à sua maneira, foram importantes para alterar o curso da música popular, impondo novos sons, novas práticas, novas ideias que se assumiam como rupturas com tudo o que tinha vindo antes. Mais complicado é a partir do complexo presente descortinar que gestos estéticos ou filosóficos, que decisões de gestão de carreira poderão, afinal de contas, alcançar o futuro e conquistar espaço nos livros de história que daqui a algumas décadas poderão extrair sentido de tudo o que está a acontecer agora.

Recentemente, no espaço de opinião da Blitz online, quem assina estas linhas teve a oportunidade de reclamar para Chance The Rapper essa capacidade de funcionar como um marco na estrada da história: “o artista de Chicago que lançou agora a mixtape gratuita Coloring Book acaba de fazer história ao garantir a entrada na tabela Billboard 200 sem ter vendido um único disco”, escrevia-se à entrada de uma crónica cujo título questionava claramente o modelo de negócio tradicional desta indústria: “Música de borla pode ser bom negócio?”. Pelos vistos pode.

No passado dia 16 de Junho, a poderosa Recording Academy (RA), a associação norte-americana que rege os Grammys, comunicou alterações às suas regras de funcionamento pensadas, precisamente, para acomodar quem no presente insiste em fazer as coisas de maneira diferente. A partir de agora, artistas como Chance The Rapper, que escolhem distribuir a sua música de forma gratuita através das cada vez mais incontornáveis plataformas de streaming, serão igualmente considerados como elegíveis para as cobiçadas estatuetas que premeiam anualmente quem se destaca no universo da música. No conjunto de alterações de regras comunicadas pela RA figurava igualmente uma pequena afinação na categoria Best Rap/Sung Collaboration que passa agora a ser Best Rap/Sung Performance: parece coisa de somenos, mas o que a indústria está a dizer é que um tema em que se cruze rap e canto “normal” já não tem que resultar da colaboração entre dois ou mais artistas e já não premeia apenas canções como “Crazy in Love” – aquela pérola dos tempos em que a relação de Beyoncé e Jay-Z ainda não tinha o sabor amargo da limonada… -, mas que pode acomodar artistas como Drake ou… Chance The Rapper que na mesma música podem rappar e cantar, desafiando convenções.

 



Sintomático, no entanto, não é o facto da indústria americana estar a alterar a sua percepção do presente. Realmente significante, isso sim, é que o esteja a fazer por pressão quase única e exclusiva de um “miúdo” de 23 anos que nunca meteu um único disco à venda no circuito tradicional de retalho e que acaba de anunciar uma digressão mundial para que está ele mesmo a vender os bilhetes.

Chancelor Bennett nasceu em Chicago e cresceu na zona sul da cidade num bairro de classe média. O seu pai, Ken-Williams Bennett, é um funcionário público que trabalhou directamente com o presidente da câmara Harold Washinton, que desempenha actualmente um cargo no executivo que gere a cidade e que em tempos serviu o então senador Barack Obama. O senhor Bennett sonhava que o seu filho mais velho lhe pudesse seguir as pisadas, mas Chancelor, com apenas 11 anos, comprou em 2004 o álbum The College Dropout do seu conterrâneo Kanye West e, basicamente, nunca mais pensou noutra coisa que não na música.

A escola não foi fácil para Chance The Rapper que já admitiu que os seus professores desencorajavam e até ridicularizavam as suas intenções de seguir uma carreira musical. No início de 2011, esses problemas agravaram-se quando Chance foi suspenso do liceu por ter sido apanhado com marijuana. O castigo de 10 dias inspirou a sua primeira mixtape, 10 Day, lançada em Abril de 2012 através do site Datpiff.com que se especializa, precisamente, em mixtapes de hip hop. 10 Day foi descarregada mais de 300 mil vezes e justificou que a revista Complex tivesse incluído Chance na sua lista de “10 rappers de Chicago a manter debaixo de olho”.

 



A segunda mixtape de Chance saiu em 2013: Acid Rap eclipsou os resultados anteriormente obtidos com 10 Day e foi descarregada mais de um milhão de vezes. Com participações de Twista, Vic Mensa, BJ The Chicago Kid, Action Bronson, Childish Gambino ou Ab-Soul – nomes grandes do circuito intermédio do hip hop norte-americano -, Acid Rap conquistou atenção dos media e gerou “hits” como “Cocoa Butter Kisses” ou “Smoke Again”, garantiu a Chance a passagem a uma divisão musical mais visível permitindo-lhe comparecer em eventos ao lado de gente como Mac Miller ou Pharrell Williams e justificou a atenção de gigantes como Justin Bieber que convidou Chance The Rapper a participar no single “Confident”.

Dois mil e quatorze foi um ano de recolher dividendos do trabalho, de receber atenção generosa dos media e, das mãos do presidente da câmara de Chicago, Rahm Emanuel, veio a distinção “Outstanding Youth of the Year”. Olhando para os títulos do jornal de referência Chicago Defender – “Chance The Rapper ajuda a parar violência com armas durante 48 horas”, “Mala Obama vê Chance The Rapper ao vivo no Lollapalooza”, “Alec Baldwin rappa com Chance The Rapper” ou sobretudo “Confiram as melhores lições da palestra de Chance The Rapper na Universidade de Harvard” – percebe-se a razão do galardão autárquico.

Em 2015 Chance The Rapper passou pelo Sumol Summer Fest da Ericeira para um incrível concerto. Trazia na bagagem o álbum Surf, trabalho assinado pelo Social Experiment de Donnie Trumpet, músico que o secunda ao vivo e que pertence ao colectivo criativo que tem acompanhado a carreira de Chance The Rapper. Esse disco, de distribuição gratuita, pois claro, já prenunciava a riqueza de Coloring Book, o ópus que Chance the Rapper lançou em Maio passado: uma mistura de jazz, gospel, soul e hip hop sustenta uma aproximação invulgar ao rap que se cruza com spoken word, vozes cantadas e uma teatralidade que tudo parece dever à Broadway e aos grandes musicais. O ambicioso Coloring Book confirmou essa original proposta.

Chance The Rapper, que apareceu em grande destaque em The Life of Pablo de Kanye West, insiste em descrever Coloring Book como uma mixtape, mas o trabalho inclui colaborações de Kanye West, de um coro de crianças de Chicago, de Lil Wayne e 2 Chainz, de Justin Bieber, de Jay Electronica, de Future, de T Pain e Ty Dollar $ign. Até da sua prima Nicole… E apesar da parte de leão da produção ser assegurada pelo Social Experiment, há espaço para contribuições musicais de Kaytranada ou de Lido, importantes nomes na paisagem electrónica contemporânea. Escapa largamente à ideia “caseira” da mixtape tradicional. E não é só a ambição artística que é significativa (ver crítica na secção Guia): Chance The Rapper sabe que este é um disco para mudar a história. Distribuído através da Apple Music – apesar de Chance chamar “tios” a Beyoncé e Jay-Z e de ser compincha de Kanye West, o que até justificaria ligação ao Tidal -, Coloring Book é, afinal de contas, a prova de que é possível funcionar de forma independente numa indústria construída sobre os pilares gigantescos das “majors”. E agora que se prepara para embarcar numa digressão mundial – a Magnificent Coloring World Tour chega à Europa em Novembro mas, para já pelo menos, os concertos mais próximos parecem ser em Paris e em Londres – Chance decide ser ele mesmo a vender os bilhetes através da sua plataforma chanceraps.com: aí, além de bilhetes para concertos, podem comprar t-shirts, “hoodies”, chapéus e autocolantes. A música, essa, continua a ser livre. E ainda assim a mudar o mundo.

 


 

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Texto originalmente publicado na revista Blitz.

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