LP / CD / Digital

Chaka Khan

Hello Happiness

A Diary / Island Records / 2019

Texto de Pedro João Santos

Publicado a: 26/02/2019

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Os últimos 12 anos foram uma provação cruel: mais de uma década sem novas de Chaka Khan. A última aparição de facto da rainha do funk — no habilmente nomeado, mas poupado Funk This, com produção dos lendários Jimmy Jam & Terry Lewis — data de um demasiado distante 2007. Em subsequência, tivemos de nos contentar com mexericos de filhos e reabilitações, uma estrela no passeio de Hollywood e uma estrela a imiscuir-se no mundo televisionado das celebridades feitas dançarinas; pelo meio, uma mão cheia de concertos e festivais — e reiterados comentários sobre uma indústria musical “demoníaca”.

O cenário sugeria o pior: o suave final do período criativo de Khan, em transição modesta para o estatuto de artista que vive de glórias passadas, isto é, a sua conversão em mais um símbolo de nostalgia fácil e revivalismo mal intencionado. Mas era um disparate pensar que Chaka Khan tinha arrumado as suas botas, as mesmas com que, em 1983, saltara no palco do Savoy. Disse recentemente ao The New York Times: “Esta é a minha vida, é por isto que estou neste planeta. Como poderia retirar-me? É isto que sou”. As rainhas não se jubilam — a não ser que estejamos a falar de pura felicidade.

No seu regresso às edições discográficas, volvido o silêncio criativo, Khan diz Hello Happiness. O título alude a duas forças que a antiga vocalista dos Rufus faz por combinar na sua arte: o optimismo e uma inclinação modernizante. É semelhante a quando, perante a descrença geral no boom do comércio digital de música, a cantora se regozijava na esperança de “que os artistas — não as editoras — [tivessem] mais controlo sobre a sua arte”. Hoje, a doce antevisão da cantora padece de uma benevolência demasiado grande, mas não lhe podemos ignorar a inteligência. As sete faixas do novo disco seguem esse mesmo nexo, noutra expansão renovadora, de uma chama consistente que se sustém em glória. E não obstante o gosto que se tome à nova criação da veterana, ninguém lhe pode negar a perspicácia.

O olhar prospectivo da artista não está longe do de Whitney Houston quando se virou para um r&b elegante em My Love Is Your Love, ou Aretha Franklin com a sua intenção de rejuvenescer no ecléctico, contagiante Who’s Zoomin’ Who. A abordagem é diferente. Ao contrário de Houston ou Franklin, não se deriva do disco, assumidamente leviano, qualquer intenção de revitalizar a sua imagem. Também a energia que alimenta estes 27 minutos fá-lo um álbum forte, mas não o prove de um vínculo suficiente para que seja um grand statement.

Em alternativa, esta é música para se dançar, de pulso forte e roupagem fresca, que subverte a nostalgia para obter algo superior. O funk multicolor aqui em demonstração imbui-se do disco dos primórdios de Khan em cera –os violinos de “Like a Lady” imprimem-lhe um êxtase dramático, não assim tão distante do Studio 54 — e filtra em arranjos limpos o som granuloso do passado. O que se perde em textura ganha-se numa reinterpretação moderna, fiel aos instintos da cantora, o que permite a esta colecção estar ao lado de obras tão valiosas como What ‘Cha Gonna Do for Me? ou Chaka. Mesmo a mais “clássica” destas faixas, a assertiva “Too Hot”, uma manifestação de poder feminino, tem pouca vegetação instrumental. E, ainda assim, é um álbum mais caloroso do que qualquer outra coisa que fez neste milénio, ou até mesmo o esquecido Come 2 My House, concebido com Prince.



É, claro, a voz portentosa da artista, aparentemente conservada em âmbar desde 1979, que reclama o protagonismo. Permanece caracteristicamente deliciosa, volumosa, pujante. A parte de leão do álbum é de fina arquitectura, sempre ao cargo de Switch (M.I.A., Beyoncé, Santigold) e Sarah Ruba: arranjos seguros da sua qualidade, mas que entendem os vocais da cantora como a sua carga eléctrica. E apesar de ser um veículo para o retorno desta reverenciada figura, nunca reprime os restantes músicos ao leme. O raro momento em que Khan soa inserida como sample é lamentável: é o caso da indulgente “Don’t Cha Know”, menos canção do que experimentação frenética de guitarra e miscelânea sintética. Funciona a meio gás como peça de transição, mas é um peso morto num cancioneiro tão incrível como o de Khan. Não fosse a elevada coesão de Hello Happiness, a sua curtíssima duração poderia exacerbar este deslize num disco em que todo o tempo é precioso.

As outras faixas, contudo, realizam o seu potencial, sem rodeios. “Isn’t That Enough” é uma excursão brilhante a Nassau, num riddim que tem tanto de sensual como de certeiro. Uma nova configuração de “(Are You Ready) Do the Bus Stop”, dos The Fatback Band, é o suporte de “Like Sugar”; cada noite que não começa com este fervente tema como chamada para a pista de dança — os vocais praticamente incendiários, o groove quase palpável — é uma perda para os melómanos do mundo. E porque também faz bem apanhar um pouco de ar, a conclusão deste novo capítulo é uma reencarnação despida da anterior “Like a Lady”, que em “Ladylike” entrega as suas armas disco. Rende-se não só ao amor, mas à brisa de um ritmo fresco, subtilmente pontuado com guitarra e leve percussão. É o som da luz a entrar pela discoteca.

É nessa discoteca ideal, perfumada com os ares dos anos 70 e 80 e iluminada com as maravilhas de hoje, que Khan nos lança logo na partida. A graciosa faixa-título é uma cerimónia em si mesma, um convite four-on-the-floor àquela ginga desembaraçada de uma noite de Verão. Khan parece usar deste hedonismo instintivo como símbolo para a ruptura com o negativismo na sua vida (em 2016, depois da morte de Prince, foi internada pela dependência de opiáceos, o último episódio de um longo historial com drogas). Daí o refrão ultra-orelhudo e a sua performance extraordinária, com a capacidade de tornar lugares-comuns como “It moves my body / Yet frees my mind ou This music is yours / And this beat is mine” em palavra sacra.

Quando Khan urge para que a devolvam à pista de dança — “Take me back to the dance floor / So I can dance away my blues — o pedido não é apenas sentido e executado com tenacidade, surpresa e alegria. É, acima de tudo, merecido. E se lá decidir ficar, estaremos cá para continuar a dançar. Olá de novo, Chaka Khan.


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