A cantora e compositora franco-americana Cécile McLorin Salvant regressa amanhã a Lisboa para apresentar Oh Snap, o novo álbum que marca uma viragem decisiva na sua trajetória e amplia o território expressivo da voz no jazz contemporâneo. Nascida em Miami em 1989, filha de pai haitiano e mãe francesa, Cécile cresceu entre múltiplos universos musicais, do jazz ao gospel, do hip hop à música das caraíbas. Essa diversidade moldou desde cedo uma versatilidade que a tornou numa das vozes mais singulares e premiadas da actualidade, distinguida com vários Grammys e com o prestigiado MacArthur “Genius” Grant.
Com Oh Snap, editado pela Nonesuch Records, Cécile explora um processo criativo mais íntimo e menos convencional. Gravou fora do estúdio tradicional, experimentou loops e sintetizadores, manipulou a sua própria voz e permitiu que ritmos de várias origens — samba, folk, pop, jazz — atravessassem o álbum. Oh Snap funciona como um laboratório pessoal onde a espontaneidade e o instinto ocupam o centro da criação. Nesta conversa, antes da apresentação no Centro Cultural de Belém, falámos sobre risco, liberdade, humor, disciplina artística e essa força que define o seu percurso: a curiosidade.
O que podemos esperar da formação musical em palco no concerto de 11 de novembro no Centro Cultural de Belém?
Vai ser com o Sullivan Fortner, o Yasushi Nakamura e o Kyle Poole. Seremos quatro no total, comigo incluída.
O seu novo álbum, Oh Snap, é uma fonte de júbilo. Gravou-o fora de um estúdio tradicional, num ambiente mais livre e íntimo. Como é que esse contexto moldou o som do disco e em que medida foi diferente dos seus trabalhos anteriores?
Gravámos algumas músicas em estúdio com o trio e acrescentámos algumas camadas, mas passei muito tempo sozinha a experimentar no computador. Brincava com loops no GarageBand e no Logic, com sintetizadores, e acho que isso é muito evidente. Acabei a fazer temas mais dançáveis, atraída pelo disco, pelo trap, pelo house. É praticamente o resultado de me deixarem sozinha num quarto a inventar. E é muito específico da fase em que o fiz.
Descreve o álbum como profundamente pessoal, mas estilisticamente amplo. O que liga influências tão diferentes e como decide o que cabe no seu trabalho?
Segui muito a minha intuição. Quis que o disco refletisse o quão diversa é a minha escuta, que sempre foi muito ampla. Claro que Oh Snap não inclui tudo o que ouço, mas aproxima-se. E acho que ninguém ouve apenas um estilo de música a vida inteira, apesar de, certamente, você dizer que tem amigos assim! Aposto que têm uns guilty pleasures escondidos. E não podemos negar a música da época em que crescemos. Aquilo que ouvimos no rádio, nas festas, com amigos. Tudo isso entra no que fazemos.
Nos seus trabalhos anteriores explorou mitos, história, literatura. Que temas voltaram a surgir em Oh Snap, de forma consciente ou inesperada?
O haiku do Matsuo Bashō está muito presente, aquele do lago antigo e do sapo que salta. Também aparecem imagens de vulcões, erupções, o corpo, o subconsciente, sonhos, demandas, desejos, família. E a complexidade das relações, porque podemos sentir muitas coisas contraditórias ao mesmo tempo. Antes escrevia canções que fixavam um único momento. Aqui quis mostrar várias facetas do mesmo sentimento.
Falou também em espontaneidade e alegria. Este álbum foi uma forma de redescobrir a sua relação com a música depois de anos de estúdio e digressões?
Completamente. Sinto que aprendi algo novo sobre fazer música e até sobre o que realmente gosto nela. Parece quase um álbum de estreia, em que busco um lugar novo. Eu sei que não é, mas a sensação é definitivamente essa.
A sua prática artística vai muito além do jazz e contempla teatro, artes visuais, storytelling. Pensa nessas áreas como separadas ou como partes de uma mesma linguagem?
Gostaria de pensar tudo como uma única linguagem, e quando estou no meu melhor é isso que acontece. Mas, como toda a gente, acabo a separar demasiadas coisas e isso pode ser paralisante, pode travar-me porque sinto que se calhar preciso de me encaixar algures. Quando consigo ser mais solta e deixar de lado essas divisões, divirto-me muito mais e tenho mais ideias.
Os seus concertos variam entre duos muito económicos e grandes formações orquestrais. Como é que essa flexibilidade molda a forma como aborda o repertório, especialmente o material novo de Oh Snap?
Oh Snap nunca vai soar ao vivo como soa no disco, especialmente as partes com sintetizadores. Mas também nunca tento recriar os álbuns em palco. Nem os arranjos. Mantemos tudo aberto, no momento, para nos surpreendermos a nós e ao público. Misturamos músicas do álbum com outras e o formato de trio dá-nos uma liberdade enorme. Adoro orquestras, mas num contexto orquestral não podemos mudar tudo cinco minutos antes de começar.
Há quem considere que você expande constantemente o que o jazz vocal pode ser. Para si é uma questão de desafiar fronteiras ou de seguir a sua curiosidade?
É a curiosidade, acima de tudo. Intriga-me sempre o que eu ainda não conheço ou que ainda não fiz. A curiosidade já é um desafio em si, porque confronta o que achamos que sabemos. Mas acima de tudo sigo o meu sentido de humor. Procuro coisas que me façam rir. O riso e o choro são as minhas respostas favoritas à música. Não vejo a música como algo excessivamente sério. O repertório que escolho tem muito a ver com aquilo que me diverte, que me enche a alma e o espírito desse júbilo particular a que chamamos felicidade.
Se tivesse de descrever este momento da sua carreira em apenas uma palavra ou imagem, o que escolheria?
[Longa pausa] A palavra é “confiança”. Confiança na minha intuição, curiosidade, desejos e confiança nos músicos com quem trabalho. Confiança na coincidência, na serendipidade, no absurdo e na relação com o público. É raro, hoje em dia. Tenho tendência para querer controlar tudo e a ideia de confiança parece-me algo que vale a pena cultivar.
Guarda alguma memória especial das suas visitas a Portugal?
Lembro-me da biblioteca onde é preciso pagar para entrar e dos pastéis de nata, claro. O que me deixa triste é que ainda não consegui ouvir fado ao vivo aí. Adoro fado. Um dos primeiros concertos que vi em criança foi da Mariza. Um dia espero poder ir a um clube e simplesmente ouvir. Amália Rodrigues é uma paixão. Descobri-a através da Dulce Pontes e depois fiquei obcecada. É uma referência absoluta que eu procuro aprofundar de cada vez que aí estou.