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Texto: Hugo Pinto
Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 19/05/2025

Sem pré-formatações.

Causa|Efeito’25 — Dia 3: novo hino ao jazz mais desafiante e surpreendente

Texto: Hugo Pinto
Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 19/05/2025

Abriu o último dia (17 de Maio) do Causa|Efeito com a apresentação do livro Peter Brötzmann: Free-Jazz, Revolution and the Politics of Improvisation do jornalista inglês Daniel Spicer. Spicer fez, ao longo de dez anos, várias entrevistas a Peter Brötzmann. Além disso, entrevistou também vários colaboradores do alemão ao longo da sua extensa carreira. Figura fulcral do free jazz (e de todos os outros jazzes), Brötzmann está naquele olimpo que, salvo raríssimas excepções, estava reservado apenas aos maiores nomes do jazz americano. Spicer, com uma honrosa carreira onde se destaca o seu trabalho na sempre muito recomendada The Wire, leu excertos coloridos do seu livro. Após a leitura houve perguntas e intervenções do público, em que se encontrava Paal Nilssen-Love, músico que gravou com o alemão e que deu um testemunho sentido da presença do mestre no seu trabalho. O livro, editado pela Repeater Books, é de leitura obrigatória para quem se interessa por estas coisas.



Ao fim da tarde, Paolo Angeli com a sua guitarra da Sardenha preparada, mostrou que a modernidade e a tradição, quando existe criatividade e gosto pelo risco, podem viver em harmonia. A guitarra de Angeli tem pelo menos 25 cordas a mais, um outro travessão e carrilhões extra, mais vários pentes espalhados pelo tampo. O resultado é um one-man band, tal é a diversidade de sons que o italiano saca do instrumento. Num reportório que alia músicas tradicionais com uma atitude profundamente contemporânea, Angeli deu um concerto bonito, com muito sentimento, onde se destacou a canção, formato raro neste festival. Nesta viagem por vários géneros (sim, também houve blues), predominou a herança musical quer da ilha, quer do sul europeu. Este sul estende-se obviamente à música árabe, fundamental na arte da Sardenha mas também na língua e dialetos desta ilha. No palco a parafernália é impressionante. Como se não bastasse aquela guitarra, há pedais e cabos, moduladores e knobs. Tudo para um set que incluiu um noise meio shoegaze, a espaços alguma percussão e ainda uma voz em dialectos locais. O concerto terminou com uma sentida homenagem ao povo de Gaza com o poema “If I must die” de Rafaat Alareer, devidamente musicado por Paolo.



Quando o saxofonista português José Soares se encontrou com o pianista inglês Kit Downes em Amsterdão, ficou alinhavado que um dia haveriam de tocar juntos. Esta noite, o Causa|Efeito permitiu esse feliz encontro. Nunca tinham tocado juntos e fizeram questão de pouco ensaiar, mas, ao primeiro sopro, percebe-se que a química existe e que é no espaço do jazz que habitam. Soares é um dos mais excitantes saxofonistas alto cá do burgo. Dono de um sentido de composição e de uma técnica invulgar, Soares espalha a sua arte por vários agrupamentos e o seu saber por vários espaços académicos. Já Kit Downes pertence ao “corpo” da ECM e tocou com gente tão díspar como Squarepusher ou Andrew Cyrille. O seu disco The Betrayal (We Jazz, 2023) é particularmente admirável, num trio com Petter Eldh e James Maddren. O concerto que resultou desta junção foi impressionante. A improvisação imperou num registo sóbrio e ainda assim tocante, onde prepondera a técnica dos músicos mas, mais importante, o modo como conversavam um com o outro. Houve aquela magia do primeiro encontro e existiram momentos daqueles que fazem parecer que tocam há anos. É sempre bom ouvi-los no sítio onde ambos se sentem confortáveis. O som de Soares é tão delicioso que apetece comer. Já Downes tem uma melancolia subjacente deveras agradável. O resultado só podia ser do melhor. Música adulta, emoção e liberdade. Quando eles ripam os dois, a coisa mete respeito. Há muita alma neste encontro. Ao fim de meia hora terminam este tema único. Perante os aplausos do público, Soares volta ao palco e diz que não sabe quanto tempo tocou. O curador Pedro Costa gritou da assistência que só tocaram meia hora e que soube a pouco. A malta riu e aplaudiu e os músicos apresentaram mais um tema. É destes apartes descontraídos que também se faz um festival. O segundo tema é mais rasgadinho e livre, sem perder o pé, em que o duo se entrega totalmente à música. Descomplexada e liberta de lugares comuns, esta música eleva o espírito de quem assiste. Gostamos disto.



Para o fim, qual festival pop, ficaram as grandes estrelas. Paal Nilssen-Love na bateria, Michael Formanek no contrabaixo, Yedo Gibson nos saxofones tenor e soprano e Alfred Wammer no trombone formam o quarteto Sprotch. Há a curiosidade de Gibson, Nilssen-Love e Formanek viverem em Portugal, o que torna a coisa expatriada. Curioso também o facto, aliás frisado por Nilssen-Love durante a actuação, de ele nunca ter tocado com Formanek. Tendo em conta o vasto currículo de ambos e de se mexerem no mesmo mundo, quem haveria de dizer que nunca se teriam encontrado. A palavra-chave deste encontro de pesos-pesados é: intensidade. Tudo aqui é força, mesmo nos momentos mais “calmos”. É como se os tivessem ligado à corrente desde o primeiro momento. Ou como se o combo fosse uma locomotiva a diesel. Barulhoso e imponente. Música improvisada e rica num rasganço quase permanente. A mestria destes músicos torna este tour de force num exercício empolgante. A precisão emotiva de Formanek e a destreza física de Nilssen-Love, certamente devido à vasta experiência de ambos, permite um som cheio e esperto. Algo a pedir de quem o ouve mas sempre numa fruição intensa dos músicos envolvidos. O brasileiro Yedo Gibson alterna entre o tenor e o soprano, com o tenor mais de arreios e o soprano mais difícil de digerir. Lá para o fim agarra-se aos dois ao mesmo tempo e, numa polifonia rica, acrescenta momentum e energia ao grupo. Quem surpreendeu positivamente foi o trombone de Alfred Wammer, cuja obra, ao contrário dos outros, desconhecia por completo. Que alma! O trombone já de si é um instrumento mandão e Wammer leva-o a outro nível. Não haver P.A. permitiu ao trombonista mexer-se e direccionar o grito do seu trombone, elevando o volume e ao mesmo tempo permitindo que o público o ouvisse de várias direcções. Wammer é um nome para ficar atento a partir de agora. Terminou o concerto, já pela meia-noite e meia, numa sonoridade meio tribal. Parece que levámos uma tareia. Estamos cansados e felizes.

Ao longo de três dias, o Causa|Efeito foi a vários caminhos, sempre desafiantes e surpreendentes. Numa altura em que tudo parece pré-formato, o esforço da Universidade Nova de Lisboa e de Pedro Costa é dignificante. Da parte de quem assistiu, um muito obrigado a ambos!


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