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Texto: Hugo Pinto
Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 17/05/2025

Música desafiante para fazer a delícia dos presentes.

Causa|Efeito’25 — Dia 2: cultivar o inesperado

Texto: Hugo Pinto
Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 17/05/2025

O segundo dia do Causa|Efeito começou, ao fim da tarde de ontem (16 de Maio), com uma conferência que no início era sobre o jazz Italiano e acabou por se tornar muito mais abrangente e ir até outras coordenadas. Giancarlo Di Napoli, responsável pelo festival Ancona Jazz, e o sempre efusivo saxofonista Pasquale Caló, devidamente moderados por João Esteves da Silva, começaram no jazz do seu país e acabaram a falar de Rossini, da importância de ser honesto em palco, de como criar públicos e da relação tempestuosa entre o jazz americano e a música clássica europeia. Foi uma conversa elucidativa com diversos pontos de vista e, na medida que havia italianos ao barulho, acabou por ser uma quezília bastante animada. Este tipo de conferências são um trunfo deste festival. A presença de pouco público a assistir permite que todos possam participar. Foi didático e útil.



Passava pouco das sete e meia quando a jovem norueguesa Inga Stenøien subiu ao palco do grande auditório acompanhada da sua peculiar guitarra clássica. Não é fácil descrever a sua actuação. Ela puxa as cordas de modo tempestivo, largando-as depois para fazer ecoar o barulho das mesmas a tocar na caixa. Não há propriamente notas, nem temas ou sequer música no sentido restrito do mainstream. O que há é emoção e descoberta. E há uma técnica, a que nunca tínhamos assistido, que faz a guitarra soar de modo único. Improvisação livre e criação de paisagens mais explosivas que sensíveis. Agradou que estivesse sempre a acontecer qualquer coisa e mais ainda, no sentido de que, mesmo naquele caos, parece haver um caminho por onde ir. O guitarrista americano Bill Orcutt faz algo parecido através do uso da electricidade, mas Inga Stenøien, sem amplificação, consegue resultados ainda mais surpreendentes. Não é fácil de entrar, mas quando se está lá dentro, o espanto vale a pena.



Um dos concertos que suscitava mais interesse era o dos portugueses Old Mountain com o histórico Drew Gress no contrabaixo e a argentina Camila Nebbia no sax tenor. Há dez anos, o baterista João Sousa e o guitarrista Pedro Branco formaram os Old Mountain. E por lá vão passando vários nomes relevantes do jazz nacional e internacional. O ano passado lançaram, pela Clean Feed, Another State of Rhythm, talvez o melhor disco de jazz nacional dessa colheita — porque o de Rafael Toral não conta nem para o jazz, nem para o nacional. Nesse disco, Pedro Branco trocou a guitarra pelo piano e a dupla era acompanhada pelos contrabaixistas Hernâni Faustino e João Hasselberg. Além destes havia o grande Tony Malaby, que de Charlie Haden a Paul Motian e Fred Hersch, tocou com quase toda a gente. É um disco altamente recomendável. Para este concerto, a formação, em estreia internacional, era deveras diferente. No par de contrabaixos manteve-se Hernâni Faustino, que ali foi ladeado por Drew Gress. Gress é um compositor/contrabaixista magnífico. Com um extenso rol de registos, importa destacar os Paraphrase de Tim Berne e Tom Rainey. Já no sax tenor está a argentina Camila Nebbia, dona de um poderoso sopro, carregado de expressividade e com um currículo invejável de colaborações nacionais e internacionais. Os temas de Pedro Branco são doces e aprazíveis, transportando-nos para um universo onde cabe todo um mundo de referências. É tudo muito cool e cheio de swing. João Sousa parece estar a curtir milhões com as suas vassouras, Hernâni Faustino e Drew Gress enchem o som com os seus contrabaixos e Camila Nebbia, num registo mais certinho, faz aquele sax cantar melodias incríveis. Este concerto fez-se de vários momentos memoráveis. Há solos intensos onde a improvisação nos enche o espírito, mas também há momentos mágicos em que todos os elementos contribuem para um clímax de emoções que não deixou ninguém indiferente. Curioso como num festival tão aberto, é este jazz mais redondo que seduz a malta. No final houve um encore com o velhinho blues “Good Night Irene”, de Lead Belly, numa versão rasgada e animada. Impressionou pela composição. Nomeadamente aquele sentimento de estar a ouvir algo que parece mesmo um standard, para depois se vir a descobrir que se trata dum tema original dos Old Mountain. 



Por fim, já perto das onze e meia, o português Rodrigo Pinheiro ao piano e o italiano Pasquale Caló no saxofone tenor proporcionaram um duo de improvisação livre deveras curioso. Pasquale é um improvisador intenso, cujo rótulo “espiritual” não chega para definir o seu som, tal a força e emotividade da sua entrega. Rodrigo Pinheiro é um pianista à séria, dotado de uma técnica impressionante e de uma lírica entre o solene e a abertura de espírito. Ambos têm um registo bastante diferente, ambos não se conheciam antes de terem ensaiado no dia anterior e ambos estavam ali para se descobrirem e para nos proporcionarem um concerto muito fora, onde a técnica de Rodrigo e a emotividade de Caló nos transportaram para estados de alma quase indecifráveis e ainda assim prazeirosos. Num registo assumidamente free, Rodrigo esteve mais atento e reactivo enquanto Pasquale se libertou e foi a quase todo o lado. A técnica ao piano foi impressionante e o par ideal para a emotividade que Caló meteu em cada sopro — e aqui, em vez de sopro podia até grito. Caló literalmente gritou, tal a descarga de energia que naquele momento exportava. Destacam-se particularmente dois instantes. Um em que, a solo, fizeram brilhar a sua linguagem e o seu modo único de estar na música. E outro em que, juntos, conseguem encontrar-se numa magia que só estes encontros improváveis proporcionam. Não sendo propriamente música fácil de digerir, até porque ninguém vem aqui à espera disso, este concerto teve o mérito de provocar reacções, quase todas positivas. Há uma espécie de alívio no usufruto deste concerto, um desprendimento simpático, algo não tão distante que não se consegue apanhar — mas quando finalmente o agarramos, não é nada daquilo que se esperava e, portanto, volta-se a largar para se tentar novamente apanhar. Que belo modo de terminar a noite.


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