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Texto: Hugo Pinto
Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 16/05/2025

Arranca a jornada de estreias nacionais e mundiais.

Causa|Efeito’25 — Dia 1: reabrem as portas para receber o novo jazz

Texto: Hugo Pinto
Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 16/05/2025

O festival Causa|Efeito é uma lufada de ar fresco no panorama jazzístico nacional. Em três dias temos a rara oportunidade de assistir a concertos de novos nomes e de músicos consagrados. E em “novos”, não nos referimos tanto à questão da idade, mas mais ao jazz que apresentam. Houve, ao longo das duas primeiras edições, uma preocupação legítima do curador Pedro Costa em apresentar projectos inovadores, com um jazz que tem tanto de arriscado como de intenso, tanto de lírico como de abstracto, tanto de agregador como de exigente. Claro que há também nomes consagrados mas. convenhamos, é de um jazz novo que se faz o Causa|Efeito. Todos os concertos são estreias nacionais, encomendas ou até mesmo estreias mundiais — é obra. Este ano, o festival, que decorre na Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, tem a Itália como país convidado. Sim, a mesma Italía de Rava, Pieranuzzi e Fresu, mas tambem de Trovesi e da Instabile Orchestra.

Rondam as seis da tarde do dia 15 de Maio quando começa o ensaio aberto que junta o sax tenor do italiano Pasquale Caló com o piano de Rodrigo Pinheiro. Os músicos não se conheciam nem nunca tinham tocado juntos. Ter a oportunidade de assistir ao primeiro encontro, às primeiras notas, ao descobrir e revelar entre dois músicos é uma ocasião única. Rodrigo Pinheiro (de RED Trio) começa atento. Assiste e reage. Pasquale é mais incisivo, mais do grito súbito que do tema. Ao longo de quase uma hora, testemunhamos uma conversa esperta entre os dois. Falam pouco um por cima do outro, como as pessoas civilizadas. Há momentos em que a coisa aquece mas, talvez por ser um primeiro encontro, fica tudo numa dinâmica amigável. Não se pense no entanto que é parcimoniosa esta relação. Pela sua natureza arriscada, Caló e Pinheiro mostram ao que vêm. Um jazz aberto, descomplexado, com muito ar e a pedir abertura de espírito. Ninguém aqui gosta de música confortável. Fica a ideia de um momento auspicioso para o concerto de amanhã.



Na garagem da Reitoria, já pelas sete da tarde, começa a apresentação do trio, sediado em Oslo, do sax alto de Amalie Dahl com o contrabaixo de Henrik Dalen e a bateria de Jomar Søvik. O espaço é importante. Tecto baixo e só uma luz amarela, transportam o som para uma outra dimensão. Criam tensão e pedem atenção. O som é uma combustão lenta, mais a fervilhar que a explodir. Søvik é um baterista detalhado, mais agarrado ao pequeno tic-tac-rec-rec que a uma batucada dominadora. É uma bateria que respira. Mais interessada em acrescentar pormenores do que em dominar de modo incisivo. Dalen faz do seu contrabaixo um instrumento de percussão, quase numa relação carnal. Ele bate, acaricia, mexe e remexe. Sim, há cordas que ecoam, mas é o modo raro como explora o contrabaixo, com e sem arco, que fascina e seduz. E depois há o sax alto de Dahl. É ela que domina, imperiosa e contundente, espacial e livre. O modo como aquele saxofone ecoa naquela garagem fica na memória. É um jazz nórdico, contemporâneo e profundamente improvisado. Música para este momento, irrepetível e intrigante. Não é para entender? No problem. A malta está aqui para a viagem. Curiosamente, a ausência de amplificação amplia os detalhes. É tudo muito in-your-face, tudo perceptível em modo físico, como se a onda sonora se propagasse directamente ao nosso tímpano, sem necessidade de mais. A juventude dos músicos não justifica esta improvisação muito livre, mas sim o modo como descomplicadamente se entregam ao momento. 



Pelas nove e meia da noite começa no Grande Auditório a apresentação do Futuro Ancestrale de Giuseppe Doronzo. O disco com o mesmo nome, editado pela Clean Feed em 2024, consiste num trio com Giuseppe Doronzo no sax barítono e, a espaços, numa gaita de foles iraniana, acompanhado pelo baterista Frank Rosaly e pelo guitarrista Andy Moor. É um belo disco que bebe de muitas fontes. Há o post-rock de Chicago e há noise, há música de muitos mundos e há o jazz, sempre o jazz a colar tudo isto. Andy Moor, o guitarrista dos The Ex, a banda de culto neerlandesa com muitos anos disto, não esteve presente neste concerto, vindo “em seu lugar”, Yannis Kyriakides nas electrónicas ao vivo. Por via desta alteração, que pelos vistos dará azo a um novo registo a editar em breve, o concerto foi bastante diferente do disco. A banda ficou a ganhar com a presença de Yannis. Este novo trio é mais ambiental, remete mais para texturas espaciais que para a rockalhada improv. Frank Rosaly não pára quieto nem dá um minuto de descanso a quem o acompanha. Com um currículo impressionante, do qual não resistimos a destacar o seu disco com a boliviana Ibelisse Guardia Ferragutti, Mestizx (International Anthem, 2024), Rosaly é um tipo cheio de truques. A certa altura, dispensa as baquetas e transforma a bateria numa máquina possuída, com barulhinhos bons, sempre a acrescentar e dispensando a preponderância a que muitas vezes o instrumento está condenado. É preciso ser muito bom para preferir estar assim. O jovem Giuseppe Doronzo é um saxofonista barítono interessantíssimo. Tem uma jovialidade que remete mais para Sahib Shiahb que para Mulligan. Toca que se farta e quando pega na tal gaita de foles iraniana consegue sonoridades raras. Liderando e trazendo o jazz para a primeira fila, Doronzo consegue ser forte e meigo. Traz o som, por vezes demasiado ambient, para a terra. Acrescenta-lhe alma. O seu jazz é espiritual e aceso. E depois há Yannis Kyriakides. Com um PC, uma consola de knobs que não pára de rodar e um daqueles teclados sensoriais muito dado a arpegios, Yannis transforma este trio noutra coisa. Por um lado, transforma o som de Rosaly/Doronzo num outro instrumento, recebendo os seus sinais e, em tempo real, modificando-os e alterando os seus sentidos. Por outro lado, usa e abusa do seu teclado, adicionando paisagens texturizadas. Pode ser Doronzo a liderar, mas é Yannis que faz soar tudo isto. Sem headphones, num registo livre e aberto, Yannis evita a chatice do ambient e dá ar novo a este som. Sim, há música do mundo e tudo o resto, mas é na homegeneidade deste trio que eles brilham. Há uma confiança na companhia, na capacidade de intervir e na mestria dos três músicos que seduz e alimenta uma máquina mais preocupada em transmitir estados de alma que fórmulas batidas. Já cá fora, alguém comenta que a noite está fresca, mas foi lá dentro que sentimos tal frescura.


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