Arriscamos no questionar se hoje, na sociedade de consumo do imediato, o lugar de conforto se torna de facto o sítio mais proveitoso para fruir o que quer que seja, até mesmo a própria música. A ambígua decisão do ir ou ficar, pelo esforço que acarreta — ter de sair, disposto ao inesperado — assistir a um concerto, no contraponto de antes o lugar onde se está, com toda a música que se tem à mão, mesmo parecendo ser toda a que se quer e se deseja. Há ainda a razão que o melhor de cada artista estará num registo, sempre disponível quando houver vontade, e essa escolha já alguém fez por nós, colhendo sempre o melhor dos frutos. No consumo que não pressupõe o risco, esse tal lugar é mesmo o de conforto, porém cómodo e nisso quase imutável. Encontramos por outra a possibilidade do lugar inquieto, instável e impermanente, esse campo que dentro da música é o espaço da liberdade criativa, e, por conseguinte, do novo. Agora, para tal implica viver a instabilidade e o (des)conforto de certa maneira, ou até da maneira certa, o que, invariavelmente depende de cada qual.
O dia do meio, dos três dias de Causa|Efeito, trouxe ao palco do Auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, três expoentes da música livremente criativa dos dias de hoje, três propostas para o lugar mais (des)confortável para quem arrisca o que está por se ouvir. Lugar sem opção, é ouvir-se ali ou não se saber. Esse lugar de risco faz com que, mesmo Tim Berne — um experimentado improvisador — tema, e assumindo-o perante a plateia, o momento. Berne é músico de craveira tão ampla como a trajectória percorrida até aqui, incontornável na exploração do saxofone, no mote do ir mais além. Um exemplo vital do porquê de estarmos ali — um músico que conta com mais de 60 registos discográficos desde 1979 — porque há nisso música nova vinda do impulso criativo de quem continua no lugar do desconforto. E se as primeiras linhas melódicas estabelecem um diálogo entre duas vozes que se encontram para tocar, cedo se dispõem a uma dança conjunta, emaranhada no tempo e no modo, em tantos momentos na bordadura do definível e explorando com frequência interações entre o saxofone alto e os ouvidos internos de cada um de nós, nesse desejado lugar de (não) conforto, na plateia. Ressoou ao ponto de, ao intervalo de cada prestação, o lugar dos aplausos foi o do silêncio, numa sala que revelou todo o esplendor acústico entre a madeira e o metal, da palheta e as chaves do saxofone, no chão que pisamos e nas paredes que envolvem. Absoluto e redentor em solo, na antevisão do que terá para nos contar por palavras no último dia, quando der a programada masterclass e depois pisar este mesmo palco em duo junto a um dos seus maiores cúmplices musicais — Michael Formanek, em contrabaixo.
Este dia marcou a dupla estreia cá, entre Porto e Lisboa do trio Fade In. A jovem formação é composta por Federico Calcagno (clarinete baixo e clarinete piccolo), Pietro Elia Barcellona (contrabaixo) e Marco Luparia (bateria e apetrechos). Luparia tem ligações à cena criativa com músicos portugueses e ainda na última edição do Festival Porta-Jazz fez parte do Ensemble Mutante dirigido por Vera Morais e que reportámos com enaltecimentos bem merecidos. Essa ligação de Luparia fez encontrar na Clean Feed a editora à medida do primeiro e auspicioso registo de Fade In. De título audaz — Live Fast, Die a Legend — é uma inteligente provocação que interroga a sociedade autodestrutiva no quadro da música. Nem têm aspirações a ser lendários nem se espera que a sua passagem seja breve, pela música que fazem e que já traz tanto de inventivo como de pulsante. É uma linguagem que incorpora muitos e bons recursos estilístico da música contemporânea onde habitam destemidos elementos frugais vindos de várias partes. Numa estrutura evolutiva vertical que vai ramificando e abrindo lugar a novas possibilidades, que se escuta tanto em motivação em espiral no tema de abertura “Get Undressed, Don’t Move”, onde o arranque se constrói desde um deslumbrante pizzicato de Barcellona como em “Tachykinesia”, no qual é deslumbrante o manuseio e a sonoridade associada que Calcagno faz do clarinete baixo. Luparia emprega recursos atrás de recursos, adicionados a uma bateria onde cabe todo um mundo de parafernália, com lugar de destaque para a caixa de madeira de ressonância. É em “Perpendicular Reality” que melhor explanam as ideias que a sua cativante música, e que vista a acontecer assume uma realidade mutante que o disco mantém mais cativa.
O derradeiro concerto foi apresentado por quem já tantos e bons discos editou — Pedro Costa — como por cada prestação que viu daria lugar a um bom disco ao vivo. Porém, e como assim não acontece, viva-se a presença em palco de Eve Risser (piano preparado), Benjamin Duboc (contrabaixo) e Edward Perraud (bateria) como um acontecimento singular e oportuno. Assim como Sophie Agnel, Risser é uma das mais destemidas pianistas da cena livre francesa. Com ela ao piano, e tantas vezes tocando de pé a vertigem fica assegurada pelas suas mãos, forma junto dos dois companheiros francófonos En Corps, o corpo de sonoridade integral e promovida sempre a pulso conjunto. Trata-se de uma das mais gratificantes e generosas formações que a música de improvisação livre tem hoje em actividade ao dispor. Juntos desenvolvem um corpo estruturado, robusto, que vai crescendo em palco à custa da genialidade criativa, que mesmo esperada, tantas vezes surpreende. São as ciclópicas cadências das teclas, são as mirabolantes viagens que as baquetas coreografam e que nunca deixam de sentir o amparo num contrabaixo desprendido na emoção. É um corpo que transcende o corpo dos músicos, que transpassa o plano da música e que transmuta a cada processo que o define. Contudo, essa construção assume súbitos momentos de sobressalto, beliscos sonoros que atropelam o ritmo e dão impulsos vitais de prossecução. É uma música que intervém no plano cardíaco e que toma pulso em quem a escuta e vê acontecer, e nisso irremediavelmente sentimos o lugar da inquietude o que implica a permanente redefinição do sentido do (des)conforto perante a música aqui presente. Eve Risser fica para, a solo, fechar o programa desta edição do Causa|Efeito (sábado dia 25 às 23h, no Auditório da Reitoria) em piano vertical ultra-preparado numa prestação que nunca se repete. Os dois registos marcantes na Clean Feed com Des Pas Sur La Neige, em 2015, e Après Un Rêve, em 2019, são paragens de uma viagem que hoje nos levará a outros cumes, anunciando-se passagens pela denominada musique mécanique, pela electrónica e até pelo techno, nesta que está a ser uma travessia de uma cordilheira musical imprescindível para poder ver e ouvir mais além.