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Fotografia: Furmaan Ahmed
Publicado a: 15/03/2023

Liberdade e minimalismo no som.

Caterina Barbieri: “A música é uma linguagem cósmica. É esta experiência que nos conecta com o ‘mundo de lá'”

Fotografia: Furmaan Ahmed
Publicado a: 15/03/2023

Num mundo em que a urgência nunca cessou, discutir a igualdade de género é transversal a um dia, a um mês, ou a um ano em específico.

Para Caterina Barbieri, foi através da fisicalidade que a música serviu como um portal que se abre entre a polaridade do material e do imaterial, para criar um lugar onde o caos se torna cosmos e onde a existência ganha um outro corpo que, além de vivo, parece combinar-se infinitamente em múltiplas possibilidades.

Depois do lançamento do seu trabalho mais recente, Spirit Exit, composto e produzido na clausura de uma pandemia global, Barbieri trouxe-nos o resultado de uma experiência eremítica, na qual invocou e liderou as odes através do seu sintetizador modular, das guitarras e da sua voz. A sua tour de apresentação passou pelo Semibreve e pela Culturgest, já no passado Novembro, e o espetáculo contou com a colaboração do artista Ruben Spini, elemento chave para que destes concertos emanasse uma força performativa em total simbiose com a estética sonora de Caterina.

Numa entrevista cujo percurso atravessa as várias faces da expressão, da criação, e da manifestação, a artista italiana conta-nos como foi que Portugal se tornou um lugar que lhe é tão querido, e como a música eletrónica se tornou um lugar tão forte para a sua emancipação, sem abandonar os seus pensamentos de ordem filosófica e, não menos importantes, as memórias suas que ainda não conhecíamos.



Recordo-me que foi em 2019, no Porto, que nos conhecemos pela primeira vez. Estavas a tocar em Portugal na Bienal da BoCA e, até então, nunca tinha ouvido o teu trabalho. Na altura, quando tocaste no Porto, lembro-me de ter lido uma descrição sobre ti na página de artista do evento que dizia o seguinte: “A música de Caterina Barbieri tem origem numa meditação sobre as ondas primárias e a dança polirrítmica de harmónicos em sons sintéticos, na fronteira entre o drone, o minimalismo e o techno.” Por isso, a primeira pergunta que te quero fazer é se te consideras uma artista minimalista?

Sim, acho que sim. Sou muito influenciada pelo minimalismo na música e o meu trabalho é maioritariamente com sintetizadores analógicos modulares, através dos quais eu tento manter o meu som bastante minimal no sentido das “ondas primárias” – é uma boa descrição. Eu evito o uso de sons super-icónicos, sons que todas as pessoas possam instantaneamente reconhecer, uma vez que esses acabam por ser algum tipo de gatilho cultural para referências musicais, quando o que eu prefiro é manter o meu som mais associado à fisicalidade da música. Mesmo como uma experiência de fisicalidade no som, no sentido em que eu uso sons muito crus, primários e analógicos, onde o ouvinte pode perder-se sem ter qualquer tipo de referências culturais a surgir pelo caminho. Eu acho que, desta forma, a experiência da escuta torna-se muito mais profunda e muito mais focada em qualidades internas do som, o que a torna uma experiência molecular do som.

Depois de ter lido a tua conversa na Flash Art com o Ruben Spini, não podia não mencionar o papel que ele teve na parte visual dos últimos concertos em que apresentaste o Spirit Exit – no Semibreve e na Culturgest, em Portugal, mas também uma no resto da tour Europeia. Nesta conversa, havia uma longa e profunda explicação dada por ti mesma sobre o momento criativo e como o confinamento tinha sido fulcral neste teu processo para produzir música nova. Além disso, também dizias que “sempre percepcionaste os teus padrões (na música) como um organismo vivo cujas células podem ser infinitamente recombinadas”. À parte da estética minimalista, também existe no teu trabalho uma entrega cósmica. Lado a lado, tens o minimal e o cósmico. E, a pensar nesta lógica, vês a tua música como uma forma de trazer a ordem cósmica? São os nossos corpos humanos um motor para isso? 

Sim, sem dúvida. Eu acho que o som é uma linguagem cósmica, a música é uma linguagem cósmica. É esta experiência que nos conecta com o “mundo de lá”. É óbvio que sou muito influenciada pela filosofia do som, sou muito interessada nela e estudei música em alguns lugares como a Índia, por exemplo, e música clássica também. O som da música é o Om, sabes? Esta vibração que permeia o universo. E para mim a música é uma experiência cósmica no sentido de que, quando escutamos um som de uma forma mais profunda, tornamo-nos hiper-receptivos e isso deixa-nos bastante sensíveis ao que está a acontecer à nossa volta – este é um óptimo exercício de empatia. Como se sentisses as ligações que estão à tua volta, ligações tão poderosas que também o são da perspectiva social. É como se fosse uma espiral que liga o mundo interior com o mundo exterior, o macrocosmos com o microcosmos, a física com a metafísica, o material com o imaterial – esta espiral é uma conexão que abre os espaços cósmicos apenas com uma mente e um corpo.

É verdade que eu sou uma artista minimalista, mas na lógica de que trabalho com vocabulário minimal. Eu gosto desta ideia de começar por um conjunto limitado de padrões de som escritos no meu sequenciador, por exemplo, mas que depois se expandem, com o potencial que têm, para algo maior – apenas por se estarem constantemente a recombinar em infinitas possibilidades. É por isso que gosto de usar a expressão “Ecstatic Computation”, o nome do meu álbum de 2019, porque é exatamente isto que acabo de te explicar – eu começo pela computação, mas depois tento transformar esse processo em algo criativo e extático.

Então é como se estas formas infinitas de padrões que crias, e que caminham de uma linguagem minimalista, se tornassem em algo muito mais profundo – como uma forma de cosmogonia.

Sim, como a origem do Cosmos. Começam por uma série de sinais e depois tornam-se numa forma de cosmogonia, através das palavras que se combinam. Começam de células e acabam por se combinar até atingir um organismo vivo.

Nessa conversa com o Ruben, são mencionadas algumas das tuas maiores referências: Emily Dickinson e a Santa Teresa de Ávila, por exemplo, porque eram conhecidas por utilizar estados de isolamento para mergulhar dentro delas próprias e, dessa forma, criarem arte. Vês a música como uma forma de emancipação?

Sem dúvida.

Este processo cósmico também te traz liberdade?

Para mim, a música é uma forma muito forte de liberdade e, pessoalmente, tem sido uma forma de emancipação muito grande começar a fazer música eletrónica. Eu vim de um background clássico, estudei no conservatório, e era mesmo difícil para mim treinar. Quando comecei a trabalhar com música eletrónica senti-me bastante mais livre porque este lugar era um território virgem para mim, onde me sentia livre de me expressar além dos “papéis” de género – no mundo da música clássica isto é tudo muito mais restrito, sendo que as mulheres geralmente tocam um instrumento ou cantam, e é raro encontrarmos compositoras femininas. Por outro lado, na música electrónica, já não é bem assim. É um território muito mais livre no qual consigo expressar-me. Isto foi muito importante para mim, na minha trajetória pessoal, e acho que na pandemia a música tornou-se um meio de liberdade. Estive fechada em casa dois meses sem poder sair – a música era a única forma que eu tinha de viajar pelo tempo e pelo espaço, quando o movimento não era permitido de todo. Então, foi mesmo um portal que se abriu, uma porta para espaços maiores, vastos e livres, que podiam ser cultivados pelo poder e pelo império da mente. Isto é algo que faz com que ressoe em mim a vida destas mulheres do passado, seres pensantes e artistas que eram recorrentemente reprimidas e viviam em contextos de segregação, mas que, por esta própria condição de isolamento, eram capazes de redirecionar as suas energias para as palavras e cultivar esta forte e visionária forma de pensar e conceber a vastidão cósmica. Senti-me muito inspirada por elas e acho que, no geral, a criatividade é algo que pode mesmo tornar-se um potenciador de liberdade e emancipação para todas as pessoas. Principalmente durante estes tempos difíceis, e isso é poderoso.

Quando falamos sobre a cosmogonia e o exercício de tocar em palco como uma forma de experiência social, um concerto tem também imenso potencial de se tornar uma forma de libertação. Isto é um dos pontos mais fortes do teu trabalho – sentes, crias e, quando estás em palco, partilhas com os outros esta energia. Como é que foi para ti voltar a Portugal depois de tudo isto?

Foi muito bonito. Sinceramente, para mim, o Semibreve é um dos festivais mais bonitos que eu já vi. É muito especial e eu estou bastante ligada emocionalmente a Portugal. Um dos meus primeiros concertos de todos foi em 2012, no Jardins Efémeros – um festival dirigido por esta incrível mulher que se chama Sandra Oliveira. Não faço ideia de como é que ela encontrou a minha música online e, naquela altura, eu ainda só tinha lançado o meu primeiro álbum. Ela gostou de mim e marcou uma data. Desde então comecei a conhecer pessoas e a desenvolver amizades e sempre que vou a Portugal é incrível – voltar ao Semibreve também foi. A primeira vez que toquei lá era suposto tocar numa igreja, em 2018, mas quando cheguei os padres disseram que a minha música era demasiado diabólica para ser tocada numa igreja, então tiveram que trocar de palco à última da hora. No final toquei no Salão Medieval, que também era lindíssimo, mas toda esta situação… Foi muito engraçada. Aparentemente, a minha música é julgada por ser diabólica. Tocar no Theatro Circo, na última edição, também foi incrível e um teatro resulta muito bem com o meu espectáculo pelos visuais e pelas luzes. 

Espero mesmo que um dia possa ver um concerto teu numa igreja, tenho a certeza de que seria incrível… Agora tens a tua própria editora, a Light Years. Qual foi o teu maior desafio em criar esta plataforma? Que planos tens?

O meu último álbum foi lançado através desta label e estamos a planear mais lançamentos de outros artistas e amigos com quem tenho colaborado. Esta ideia nasceu do meu desejo de me conectar mais com pessoas e experimentar o formato colectivo, especialmente durante a pandemia. A Light Years foi uma forma de eu curar este trauma causado pela pandemia, uma forma de me encontrar com os meus amigos porque, com a música, acabamos por construir uma família grande de pessoas que vivem em sítios separados. 

Sobre o Spirit Exit, são notórias algumas diferenças entre este álbum e os teus trabalhos anteriores. Há alguma razão para o facto de teres, pela primeira vez, utilizado a tua voz e a batida em algumas das faixas?

Eu acho que foi a própria evolução natural do meu som. Houve um momento em que estava aborrecida de usar apenas o sintetizador modular, então comecei a utilizar a minha voz e a minha guitarra. “Terminal Clock” é a única faixa com batida, mas nela todos os sons derivam das peças anteriores no álbum, por isso o que fiz foi recombinar todos estes diferentes sons num só. Soa como um “crash” porque é a primeira música que eu produzi com um sampler e é um processo que eu não costumo usar, mas no final dos espectáculos eu toco-a e parece, de alguma forma, o momento que traz ao encontro todas as faixas do álbum.

Desde Patterns of Consciousness e Ecstatic Computation, vês o Spirit Exit como uma forma de evolução desprovida de ego?

Começou nos padrões da consciência (Patterns of Consciousness) – esta ideia de usar o som para atingir diferentes estados elevados de consciência, o som como uma forma de reprogramar consciência. Depois, a computação extática (Ecstatic Computation), foi ainda mais na direção da ideia dos padrões como uma forma criativa de uma experiência psicadélica, estados alterados de hipnose e quase como um gatilho para o estado de transe. Spirit Exit (a saída do espírito) foi ainda mais espiritual, no sentido em que é um portal para viajar por esses estados de transformação espiritual. Spirit Exit é também mais taciturno como álbum e um bocado mais melancólico por ter sido produzido na pandemia. Mas espero que a minha música nova seja um bocado mais iluminada. Não sei, há uma crise nova todos os dias… Mas eu mantenho a esperança. Veremos.


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