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Fotografia: Xipipa
Publicado a: 14/03/2022

Do quarto para o estúdio. E de fora para dentro.

Catarina Branco: “Eu tenho um fascínio – não sei se meio mórbido – pela literalidade”

Fotografia: Xipipa
Publicado a: 14/03/2022

A vida de Catarina Branco mudou bastante desde 2019. Não só pelo terrível destino pandémico global que nos afectou a todes, mas também pelo progresso que fez desde ‘Tá Sol, o EP que nos deu a conhecer as suas canções. O que começara como um projecto simples de bedroom pop já se transmutou para algo maior e daí nasceu Vida Plena, o seu primeiro álbum, um trabalho mais sério e complexo, com direito a estúdio e mais inputs na sua produção (é inegável o contributo de Luís Severo e Raquel Pimpão, para além de outros músicos convidados), mantendo, no entanto, imaculada a sensação de estarmos no seu quarto a vê-la tocar e cantar as suas músicas. 

Isto coloca a artista numa posição curiosa no panorama musical, onde é evidente a dialéctica de um projecto que soa tão simples e “singelo” já ter tido a oportunidade de tocar num programa da manhã na SIC. Mas a música de Catarina parece estar cheia de pequenas contradições, desde a energia lo-fi e isolada do longa-duração que foi feito com vários contributos e num estúdio à própria identidade das músicas que têm um cariz pessoal extremamente intenso (está repleto de referências específicas a acontecimentos na sua vida) mas que nos tocam a todos pela abordagem a esses temas ser sempre fomentada por assuntos bastante globais, desde o jogo Pokemon Go a mecanismos de lidar com pensamentos difíceis de controlar (como algo tão mundano como o momento em que se deve mudar a roupa de cama). E estes são alguns dos muitos aspectos que tornam este projeto tão curioso, deixando-nos numa constante sensação de querer entender melhor o disco para além da sua camada superficial.

Com datas de apresentação já marcadas em Lisboa (19 de Março, na Escola do Largo) e no Porto (25 deste mês, no Maus Hábitos), aproveitámos para tentar perceber melhor o contexto por detrás do disco e a mente que o criou, desde a importância das pessoas que a rodeiam na sua música, às suas influências, ao impacto da Maternidade na sua arte e ao que podemos esperar com sua marca no futuro.



A tua música tem características bastante específicas e singulares, o que é que faz com que estas músicas sejam tão tu?

Talvez seja o facto, de quando estou a fazê-la, não estar a meter filtros em mim própria, estou só a fazer o que me apetece e estou essencialmente a divertir-me. Acho que isso se sente dessa forma, essa leveza traduz-se um bocado em sinceridade.

E o que te faz fazer música? É para te divertires, como disseste agora?

Sim, também. É a questão de me divertir e a questão de sentir que é das poucas formas com que me consigo realmente expressar, então aquilo que eu quero dizer sai musicalmente.

Falas da necessidade de te expressares mas, ao mesmo tempo que as tuas músicas têm um cariz ultra-pessoal. Parece que acabas por não dar muito de ti nelas.

Acho que este disco já tem bué coisas pessoais, mas concordo com ser um bocado externo, vem de fora para dentro. Vem de estímulos exteriores para falar de coisas que se passam interiormente.

As tuas letras são super mundanas, falas de Pokemon Go, Sudoku, strap-ons, etc., é uma realidade super palpável a toda a gente. Tens algum fascínio especial por esse lado mais banal da vida, com uma atenção especial a estas coisas pequenas?

Sempre tive esse ímpeto para olhar para as coisinhas pequenas porque as coisas grandes sempre me meteram um bocado de medo e de respeito, e a forma que arranjei para falar delas de forma segura era partindo de coisas que eu conhecia. Desde que me lembro de fazer coisas como desenhar, e quando estava a estudar artes plásticas, as coisas que eu mais gostava eram cenas imediatamente mundanas e leves. Sempre me interessou muito a parte cómica das coisas, a graça ser uma forma de passar uma mensagem também.

Tu acabas por usar bastante o humor como um instrumento.

Sim, acho que a maneira mais fácil para mim de fazer isso é partir de coisas que toda a gente conhece, porque a forma mais fácil de passar uma mensagem é partindo de uma coisa que é comum a toda a gente.

O que é que mudou desde o teu EP para este?

Mudou o facto de estar a fazer as coisas mais a sério, mudou o facto de ter ido para estúdio fazer o disco, o que mudou a forma como via as minhas canções, que não eram só algo que eu estava a fazer no meu quarto. Houve muito mais trabalho para fechar as canções e reescrever letras e mudar arranjos. Sinto que o EP era muito sobre pequenas coisinhas também, mas mais sobre relações com pessoas que estavam na minha vida, e este disco foi mais um exercício de olhar para fora e tentar perceber o que está dentro. Também saí de casa, tive de começar a fazer a minha cama sempre, tive de pensar numa série de coisas que não pensava tanto quando vivia com os meus pais, e isso fez com que as canções surgissem.

Isso de aprender a mudar a cama também mostra que o teu disco é muito sobre as dificuldades de crescer e ser um jovem adulto, que é uma fase em que tens mais responsabilidades mas ainda estás a aprender sobre elas.

É bué. A “Quando é que se muda a cama?” é totalmente sobre isso, por exemplo, ou pelo menos tem esse tema subjacente. A canção é sobre não saber quando se muda a cama e teorizar sobre isso, mas o grande tema é o facto de eu não saber quando se devem fazer as coisas.

Mas isto também torna a tua música de certa forma mais geracional, no sentido de ter uma espécie de público alvo mais ligado a uma faixa etária específica. Uma espécie de “nicho etário” que faz com que pessoas que não têm muito a ver com a tua sonoridade e mesmo assim encontrar uma ligação.

Sim, mas também é um geracional um pouco universal.  Acho que todas as pessoas que se depararem com essa questão vão pensar sobre ela.

Outro aspecto da tua vida que mudou entre os dois lançamentos foi a entrada da Maternidade. Como tem sido fazer parte dessa família?

Tem sido fixe, dá-me acesso mais imediato a pessoas que fazem coisas também, e que eu admiro, o que permite uma troca de ideias mais fluída e orgânica. Para além disso, dá-me também uma estrutura que dificilmente conseguiria ter sozinha: tou a ser agenciada, há pessoas a tratar da minha promoção, etc. Neste momento estou com a Cuca Monga também, este disco é uma edição em conjunto, então tenho também eles a suportar-me dessa forma, e tudo isso te dá acesso a pessoas que te ajudam a concretizar o que queres fazer, e também a uma estrutura para te possibilitar a mostrar o que faço a mais pessoas.

Sentes que isso te deu algum espaço para te focares mais na tua arte, que é o que verdadeiramente importa para ti enquanto artista?

Completamente, acho que é mesmo fundamental. Sei que tenho algum privilégio em fazer parte deste grupo de pessoas, mas cada vez mais chego à conclusão que só é possível fazer as coisas de forma colectiva e pensar de forma colectiva nelas. Tendo o trabalho mais repartido entre pessoas que na verdade são especializadas em fazê-lo, e à partida o farão muito melhor que o que alguma vez o  iria fazer, é muito mais fácil assim teres tempo para ensaiar, preparar concertos, escrever canções novas e talvez colaborar com outras pessoas, estás muito mais focado em seres músico que ser o teu próprio agente e promotor. Acho que é sempre preferível teres alguém a tratar da tua promoção e bookings, porque se falares directamente com as pessoas que marcam gigs, muito mais facilmente se vão tentar aproveitar de ti por seres uma pessoa individual e não teres alguém que está a fazer esse trabalho burocrático, que efectivamente conhece melhor esse mundo, e consegue proteger-te porque sabes que oportunidades existem. Acho muito fixe estarem sempre a surgir colectivos novos, é bom sentir que as pessoas estão a criar as suas próprias labels e agências de promoção, porque acho que é importante não acumular tarefas nesse sentido.



E a própria questão de se criar algo colectivo também acaba por dar mais força a cada artista individualmente, que são empurrados uns pelos outros e criam uma espécie de competição saudável que os obriga constantemente a superarem-se.

Sim, dentro da Maternidade há mesmo bué pessoas que admiro bué, gosto muito de todes, e há pessoas que me motivam a fazer mais e melhor por eu ver que estão a fazer coisas mesmo fixes.

Vida Plena está repleta de pedaços da tua vida e vozes de amigos teus, o teu pai também contribuiu com percussões e foi co-produzido por duas pessoas muito próximas de ti. Qual sentes ser o impacto que as pessoas à tua volta têm no teu álbum, tanto a nível de criação como na própria conceptualização das músicas?

Isso foi algo que fui pensando cada vez mais durante este processo, e acho que acabou por ser mais uma coisa que mudou, perceber que precisava mesmo desse estímulo externo dos meus amigos para conseguir olhar para mim. É quase como se precisasse da imagem que eles têm de mim para me perceber, sabes? Nesse sentido, acho que o papel dos amigos é total, não só para gerar “ideias”, mas para as concretizar depois porque pronto, a Chica é minha amiga, a Raquel [Pimpão] é minha amiga… Isto tudo alimenta-se, são pessoas que me conhecem e me percebem, e quando lhes peço uma coisa recebo-a quase imediatamente. Sinto que as relações que tens com pessoas que te conhecem ajudam-te a chegar a conclusões muito mais verdadeiras sobre ti próprio.

Também se nota que estás a começar a entrar por outros campos, como o caso do ambient na “Expresso A8”, por exemplo. Sentes estar a ganhar mais interesse em explorar outras vertentes musicais que se calhar não são tão ligadas ao que fazes? Sentes que o teu som está a mudar?

Acho que mudou significativamente, e mudou o meu processo desde que estive em Arte Sonora (Pós- graduação da Faculdade de Belas Artes de Lisboa). O ambient e usar samples e pegar em discursos de pessoas e fazer música disso vem muito de todas as referências que tive desses mundos que aprendi aí. Fizeram-me pensar em música como algo mais abrangente e com muitas mais possibilidades, e nesse sentido a cena do ambient e de samplar foram mesmo muito importantes para conseguir desbloquear, são métodos novos de começar uma canção. Vou pegar nesta mensagem de voz da [Ana Isabel] Dourado e vou fazer um baixo por detrás disto (“Já ‘tou num poço”) em vez de cantar ou tocar uns acordes. As coisas existem, e foi muito um trabalho de pensar nelas musicalmente.

Permitiu-te conseguires ver o potencial musical que um sample tem, por exemplo.

Ou uma viagem de autocarro, neste caso também (“Expresso A8”). Como é que vou traduzir em espaço som.

E tu, sendo uma pessoa que traz o que te rodeia para a música, ganhaste um instrumento super prático e direto de fazer isso, o sample. Na própria gravação está lá a essência toda, que é a tua essência também.

Eu tenho um fascínio – não sei se meio mórbido – pela literalidade, e por as coisas serem o que são e isso significar por si, então o sample é bué importante. Usar o objecto real ajuda-me logo a pensar a nível criativo, e é estranho, sendo a música algo tão abstracto, que eu sinta a necessidade de a fazer tão concreta e literal.

Apesar da tua música ser bastante pessoal, quando ela sai cá para fora acaba por ser uma experiência bastante colectiva. Quando lanças uma música, sentes que acaba por ser mais uma realidade individual ou colectiva?

Eu penso nas músicas como algo mais individual, mas sempre pensando na possibilidade de ser colectiva.

 Como é que a “Cintalho” veio parar do Conan Osiris e da Sreya a ti?

Veio parar através de uma mensagem de voz do Tiago, onde disse que tinha ali aquela canção, e que não ia falar sobre isso, então disse para eu ficar com esse refrão, que era um presente para mim e que queria que fizesse alguma coisa com isso.

A tua forma de abordar a sexualidade nas músicas, tanto na “Cintalho” como na “Clitóris”, é sempre com bastante tranquilidade, com o mesmo nível de normalidade com que falas sobre os outros temas, para além de estarmos a falar de um tipo de sexualidade não tão normativa e com menos representatividade. A própria banalidade na abordagem a temas na tua música acaba por ser bastante importante para também existir mais conteúdo nesses temas que são tratados de forma super banal…

Acho que é importante falar dessas coisas porque é importante existir um espaço para elas. Porque é que não se pode ter isto ao mesmo nível que o resto? É um bocado desconstruir essa ideia, porque efectivamente são coisas do dia a dia de toda a gente, nós só estamos é habituados a ouvir canções sobre uma determinada panóplia de coisas que por si é limitada. As canções que ouves na rádio são 90% delas sobre amor, e é fixe falar de outras coisas que também são normais, e isso é algo que devo bué ao Tiago e à Raquel. Quando eu e ela conhecemos Conan Osiris foi um choque bué bom de descobrir haver lugar para a palhaçada e a leveza na música.

Mas continuando ao mesmo tempo uma obra séria. Não estás a brincar quando estás a fazer as músicas.

Claro! Estou a brincar no sentido em que me estou a divertir por falar de coisas que gosto e que não me pesam. Para mim, a cena mesmo fixe na música é falares sobre aquilo que curtes e divertires-te a fazê-lo. É importante falar dessas coisas normais que fazem parte do meu dia a dia. É para isso que gosto de olhar, é para isso que gosto de pensar. Gosto muito da Adília Lopes por fazer isso mesmo bem, encontrar o poético no banal e o banal no poético. É uma tentativa de tentar pôr tudo ao mesmo nível.

Mas relativamente à sexualidade, acho que, até certa instância, é também um exercício para eu própria normalizar na minha cabeça a sexualidade toda que eu estava a resolver. Todas as questões que estava a resolver na minha cabeça indirectamente estavam a ser resolvidas enquanto fazia estas canções também, porque sinto bué que quando dizes as coisas, quando partilhas algo, elas deixam de ser tão pesadas e parece que as percebes melhor falando sobre elas, e acho que esse exercício de escrever canções sobre isso também é um bocado eu a tentar-me perceber-me melhor.

Agora que falaste de Adília Lopes, esse influência faz bastante sentido na tua música. Para além dela e do Conan, há mais alguma influência que tenha impactado a tua própria abordagem filosófica à arte?

O Rodrigo Vaiapraia também foi muito importante, muito pela questão da sexualidade. Mais numa onda de palhaçada, Ena Pá 2000 também foi bué importante [risos]. A verdade é que, na minha cabeça infanto-juvenil, eles criaram um espaço de fala para sentir que agora posso falar sobre um cintalho. Pronto, é duvidoso e problemático, mas efectivamente criou o espaço para eu pegar nisso, e pegar no espaço que o Vaiapraia e o Conan Osiris abriram para poder cavar algo meu entre eles.



Apesar de agora teres uma equipa a apoiar-te, e de teres gravado este disco em estúdio, a essência continua super bedroom pop, e é interessante ela ter-se mantido tão íntegra nesse aspecto quando houve uma mudança bastante drástica no processo de criação dele.

Totalmente, mas é porque efetivamente a base deste disco, o seu núcleo de fusão, foi mesmo muito pequeno. Nós convidámos pessoas pontualmente para inscrever algo numa coisa que está já bastante construída, porque na verdade começo a trabalhar estas canções com o Luís [Severo] e a Raquel, que são duas pessoas que conhecem a minha cabeça como ninguém e sabem aquilo que quero dizer, e são simultaneamente muito respeitadores da minha vontade e visão sobre as coisas. Nesse sentido, foi fácil e bastante direta a tradução do bedroom pop para eles, não se perdeu quase nada nesse processo de pensar em conjunto nos arranjos e na produção das músicas, porque são pessoas que me conhecem muito bem a nível criativo. Acho que foi por isso que ficou tão próximo do outro.

O teu meio criativo continua a ser bastante pequeno.

Acho que não é pequeno, mas, sim, restrito. Não sei se esta frase faz sentido

Faz sim. É a questão de agora teres muita mais margem para novos inputs, mas mesmo assim não o fazeres.

Porque não faz sentido fazê-lo. Eu quero continuar é a perceber o que quero fazer a nível sonoro. Eu tenho tido muita vontade de compor com pessoas, mas sempre nessa óptica de estar a ajudá-las a fazerem o que querem.

Se calhar o que vemos aqui de certa forma é o “privilégio” das pessoas com quem produzes serem também quem melhor te conhecem, então não estão tanto a tentar mostrar a cena deles, estão a tentar chegar à tua.

Exacto, eu acho que na verdade estamos a falar de um modelo em que as pessoas que estão a trabalhar contigo admiram o que fazes e vão querer chegar ao que queres, porque acreditam em ti a esse nível.

Para além dos dois concertos já agendados, que mais planeias fazer com este álbum e qual o futuro que se avizinha?

Para este álbum, planeio tocá-lo a solo, estou a preparar uma apresentação do disco nesse sentido. Quando acabei o Vida Plena, comecei a trabalhar com outras pessoas, com o Luís, a Chica, o Luís Catorze. A minha perspectiva para o futuro é fazer canções com pessoas, e se nesse processo surgirem coisas minhas faço um disco meu. Mas eu quero estar mais inserida num colectivo e não tanto na minha cabeça, porque sei que o que vou fazer a seguir vai ser mais dentro.


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