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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/03/2024

Famous Last Words trouxe o rapper de volta à grande roda do hip hop.

CASISDEAD, o fantasma que mantém o espírito grime vivo

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/03/2024

Como um fantasma das várias óperas violentas de Londres, o rapper que se diz ser de Tottenham envolve-se num manto de mistérios que nos deixa apenas uma certeza: não se discute talento. Além da tónica invariavelmente urbano-depressiva, é a única constante de uma figura que mudou de nome (de Castro Saint para Cas, depois para CASISDEAD) e deixou um paradeiro desconhecido um par de vezes (e alimentou o mito nas suas narrativas rap, do suicídio ao acidente de mota). E mesmo tendo caído, foi com Famous Last Words e de máscara em máscara sob uma sempre presente cortina misticismo que Cas tomou o palco e reclamou para si um BRIT Award, provando que o talento é difícil de travar.

A aura enigmática do álbum de estreia, que demorou uma década a acontecer desde que Castro se tornou CASISDEAD, corrobora toda a narrativa de alma penada que vem para não nos deixar esquecer. Na sua música, relembra-nos do que ainda é Londres, do que é o submundo, do que é o próprio grime, mesmo numa era glamourosa pós-Stormzy, que deixa em segundo plano quezílias de gangs, entre crews, mas que nunca deixou de ser um escape para as selvas de asfalto. Assombrado pela memória, não apenas da sua experiência de vida, mas das paisagens com que cresceu, Cas criou um documento que existe simultaneamente no presente e no passado, e nos envolve no negrume londrino que narra de forma viva e visceral.

Sonicamente, há um desvio do caminho atual do grime que Stormzy começou a trilhar, mais ligado à pop e à gospel, apesar da mesma origem. No caso de CASISDEAD, as influências estão profundamente enraizadas na pop dos anos 80, e isso nota-se em todos os detalhes da produção do álbum: na síncope das batidas, recortadas e lentas, no uso de sintetizadores, nas modelações dos instrumentos, cheios de reverberações, de flangers e de antigas novidades; até nos convidados, onde se destaca o vocalista de Pet Shop Boys, Neil Tennant (em “Skydive“). A memória partilhada do seu passado, da narrativa violenta do grime original, entra por via do rap em malhas que se poderiam ouvir numa pista de dança de há 40 anos, criando uma sensação singular de justaposição temporal e espacial. Estamos agora e antes, aqui e na urbe, vamos com Cas, voltamos pela nossa consciência, enquanto ouvimos tudo a acontecer, como nos conta em “Pat Earrings“:

“Yeah, I took a little break from trafficking freight
3 Litre CSL on a late plate
In Bape, got Bowie banging in the tape
Big brick Nokia and man playing Snake”

Até no conceito Famous Last Words está impregnado de reminiscências, com um cenário distópico a ditar a envolvente do álbum. DeadCorp surge frequentemente, como uma empresa monopolista que controla as pessoas por via da distribuição de apatia. Até neste contexto parecemos regressar a um tempo em que as distopias, do Brazil ao A Clockwork Orange, eram moeda corrente, sendo que a de CASISDEAD vem com um sabor mais em voga: o de quem assiste a tudo a partir de um ecrã. Só não sabemos se Cas é o seu CEO.

Não nos enganemos, ainda assim. Este Cas, que saiu das raves para sobrenaturalmente ocupar o palco, sob e sobre os estrados, sabe que a plateia é mais vasta, não se interessa apenas pelo negrume e adoça-se com amores, desamores. No singleMarylin” ouve-se da luta das drogas (“Got the feds pressin’ neighbours for info / ‘Bout the traffickin’ and if I’m involved / Block’s littered in tin foil / Need to kick, too much friction, nearly slipped / Really need to kick this opioid addiction”), que se dilui em histórias aparentemente mais pessoais, mas não menos dopadas, como na languida “Boys Will Be Boys” (“Promiscuous and insecure and this is why she drinks / So that she can project confidence, or so she thinks / Show business isn’t the best place to be naive”).

Em “Actin’ Up” revela-nos a fragilidade que se afirma na emoção e comoção, declamando no refrão: “And here I go again, I’m actin’ up / Always slippin’ out, the shit ain’t addin’ up / Sidetracked by a little bit of sun / The first bit of skirt I see, I’m in love.” Canta-nos de amores como não fazia antes, mas sem nunca deixar de o envolver no negrume com que diz ter crescido. Algo, de resto, mais evidente no seu passado e no que não sabemos dele.

Sabemos que surge nas primeiras expressões grime como Castro Saint, onde se manteve ativo até 2007, altura em que sai de cena. Há quem diga que um cancro o levou à clausura, nos fóruns da net fala-se noutras doenças e síndromes, em músicas passadas insinua o próprio que foi um acidente de mota, sendo certo que as máscaras com que se cobre e as dicas que dá disperrsam informação por possibilidades infinitas. De facto, não temos música sob nenhum heterónimo conhecido ou sequer ortónimo que nos diga que Cas esteve vivo. Temos máscaras que pertencem a fases — e agora temos o mais semelhante a uma cara que alguma vez vimos, a menos deformada e mais humana desde algo que se aproximava a Freddy Kruger, mas que na performance perde o contacto com a realidade. Mexe-se, respira e inspira, mas não mexe os lábios. A separação entre nós e Cas é perene.

Como fantasma que vem contar as histórias que tentámos esquecer, mas cujo talento se mantém inegável, a ópera de CASISDEAD mantém-se envolta em enigmas, segredos e mistérios que mantêm a sua história enterrada algures no norte de Londres. Para nós, que estamos mais longe dessa realidade, pesa-nos menos; para quem surge próximo dela, pode fazer o que há uns anos se tentou fazer com Burial e dizer: “eu sou CASISDEAD”. No seu ressuscitar, o rapper londrino carrega a história de muitos bairros, de muitas pessoas diferentes que foram mastigadas e atiradas para as ruas. Agora que quem o engoliu o quer celebrar, Cas mantém-se na penumbra, até sob as luzes da ribalta, à espera de que tudo se desligue para desaparecer na multidão.


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