A já longa história do Festival de Músicas do Mundo de Sines atinge este ano um número redondo: ao todo, são 25 edições, 25 momentos em que a cidade do litoral alentejano se transformou num palco para as muitas culturas e tradições do mundo. Este ano, o FMM decorre entre 18 e 26 de Julho, com performances de artistas de 35 países, entre Sines e Porto Covo.
Para assinalar o aniversário, o Rimas e Batidas dirigiu várias questões ao director criativo e de produção do festival, Carlos Seixas, que tem sido o rosto e o homem do leme deste marco nacional (e internacional) em que se tornou o FMM Sines. A programação completa pode ser consultada online, onde também é possível comprar bilhetes.
Este ano assinalam-se 25 edições do FMM Sines. Que balanço faz destas duas décadas e meia de festival?
É o balanço de 25 jornadas, de paixão contínua, dedicação e ousadia. A prova de vida de um festival que nasceu da visão esclarecida do poder local, do abraço de uma comunidade e do empenho inquestionável de uma equipa multidisciplinar de qualidade indiscutível. Desde a sua fundação, o FMM Sines distinguiu-se como dinamizador de encontros criativos, espaço da diversidade, descoberta e celebração das culturas do mundo, dando voz a géneros e tradições raramente vistos em palcos comerciais. Mais entusiasmado em promover viagens sonoras únicas do que preencher um vazio na monotonia do entretenimento. Com impacto no desenvolvimento local, dinamizando o turismo, o comércio e a economia. Enfrentaram-se múltiplos desafios ao longo dos anos, mas a capacidade de adaptação, aliada ao compromisso colectivo, permitiu não só superá-los, mas emergir muito mais fortes. Hoje, somos um festival de referência europeia e mundial no panorama da música global. O verdadeiro sucesso do FMM Sines — além dos números, que são notáveis — são também as pontes culturais que construímos e a forma como Sines se transformou enquanto sinónimo de cosmopolitismo e inovação. A nossa projecção internacional é o reflexo de um trabalho contínuo, de uma visão clara e do compromisso em oferecer uma experiência de festival genuína e pioneira. Essa busca pelo novo e surpreendente é a nossa essência para cativar uma audiência fiel que procura experiências diferenciadas e que nos permitem revelar novos talentos e juntá-los aos clássicos.
Ao longo destes 25 anos, houve momentos especialmente simbólicos ou marcantes na história do FMM Sines que gostasse de destacar? Quais são as melhores memórias que guarda do festival?
Podia lembrar concertos memoráveis, as pequenas histórias e curiosidades com artistas de todos os continentes, de amizades construídas e de valores humanos partilhados, mas o festival de Sines transcende a definição de um festival de música. É uma verdadeira viagem cultural que nos faz conectar com o mundo, em directo e ao vivo. Aquelas que prevalecem são sobretudo memórias de surpresa e de comunidade, momentos que se destacam pela sua simbologia, pela emoção que provocaram ou pelo impacto que tiveram na história do festival. Como a primeira vez que o palco do Castelo de Sines se encheu com público e que representou a validação de que a visão de trazer as músicas do mundo para um cenário tão histórico e imponente era não só possível, mas profundamente arrebatadora. Como a expansão para outros palcos da cidade, o Centro de Artes e a Avenida Vasco da Gama, e para Porto Covo. Essa descentralização permitiu que o festival se entranhasse ainda mais na cidade e no concelho, convidando os sineenses e os visitantes a explorar diferentes espaços e a viver a música em contextos variados, desde a intimidade de um auditório ou de um pátio, à grandiosidade de um concerto ao lado da praia ou à fruição de um ambiente de aldeia pombalina. Como a capacidade de trazer artistas de renome mundial, muitos deles em estreia em Portugal. Como, por exemplo, The Skatalites, Tom Zé, Gogol Bordello, James “Blood” Ulmer, Bomba Estéreo, Asha Bhosle, Cui Jian ou Kokoroko. Cada uma dessas estreias era um presente para o público e um testemunho da crescente importância do FMM no panorama musical internacional. Como a abertura a novas sonoridades, a culturas diferentes, ao desafiar o público a sair das suas zonas de conforto musical. A atmosfera de comunidade que se cria em Sines durante o festival. As ruas cheias de gente de todas as idades e nacionalidades, o burburinho nas esplanadas, as conversas partilhadas sobre os concertos da noite anterior. A festa.
Quais diria que são os grandes desafios em produzir e programar este festival?
O FMM Sines tem bases sólidas, mas enfrenta a complexidade de se adaptar a um mundo em constante mudança, onde as exigências de igualdade, sustentabilidade e resistência económica se tornam cada vez mais prementes. Embora haja uma crescente preocupação em optimizar as produções para um público mais consciente, a plena realização dessa optimização esbarra em algumas condicionantes. O cenário económico actual apresenta obstáculos significativos como o aumento exponencial nos custos de produção e funcionamento dos festivais, impactando o orçamento e a viabilidade financeira. O domínio de grandes grupos financeiros em todas as vertentes do sector, o que dificulta a competitividade e o acesso a recursos para festivais independentes ou de menor escala. A necessidade de cumprir com normas de segurança cada vez mais rigorosas e uma legislação complexa, o que pode exigir mais recursos e planeamento. A vulnerabilidade da estrutura organizativa e financeira dos festivais a imprevistos ou crises como pandemias, crises económicas, etc., que podem comprometer a continuidade ou formato. A necessidade de garantir a igualdade em diversos âmbitos como a de assegurar práticas justas e equitativas para todos os envolvidos na produção, tornar o festival verdadeiramente inclusivo para pessoas com diferentes necessidades, seja em termos de mobilidade, sensorial ou outras — garantir que as oportunidades de participação e usufruto do festival sejam equitativas para todos. E a nível artístico, promover a diversidade e representatividade nos artistas convidados. O desafio futuro do FMM será manter a sua essência e os seus valores num contexto de pressões crescentes. Que esteja atento às suas responsabilidades sociais e ambientais. Que priorize o bem-estar da comunidade. Que não estabeleça fronteiras estanques e continue a reconhecer a interligação entre arte, política, activismo, entretenimento e a construção de pontes culturais.
Como é que a programação de 2025 reflecte este marco dos 25 anos? Houve alguma atenção especial na escolha de artistas ou na abordagem desta edição? O que gostaria de destacar em relação a este ano?
O FMM Sines é não só sobre música, mas também sobre a experiência de partilha, de convívio e de celebração da diversidade humana. Esta edição não é apenas uma comemoração; é um testemunho vivo da nossa continuidade e de uma clara visão de futuro. É o reflexo dos nossos princípios e objectivos mais profundos. Respeitando profundamente a nossa trajectória, continuamos a convidar o público a uma inesquecível viagem de descoberta, trazendo artistas de países distantes — muitos deles, como sempre, pisando pela primeira vez palcos nacionais. É também um reencontro caloroso com aqueles que nos deixaram saudades e uma oportunidade de aplaudir artistas de referência. Escolhemos um caminho que nos permite, simultaneamente, olhar para a nossa história e apresentar o que há de mais impactante na cena artística internacional. África, a mãe de todos nós, está sempre presente. Também a Palestina, que nunca deixamos esquecer. Os nossos povos irmãos de Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau. A Somalilândia, não totalmente reconhecida internacionalmente. A estreia de artistas provenientes da Bolívia, Gabão, Guatemala, Jordânia e Java (na Indonésia). A presença de Bonga e a memória em tributo a Max Romeo; Youssou N’Dour, a estrela de Dakar; as Vozes Búlgaras e os seus insondáveis mistérios; Julieta Venegas, a mais Grammy do programa; o novo trabalho discográfico da Capicua; Bia Ferreira, que vem apresentar um novo formato de concerto; Nação Zumbi a comemorar os 30 anos do clássico Da Lama ao Caos; a estreia do canto sufi qawalli dos Warsi Brothers, do estado indiano de Telangana; o regresso do vento fresco e do Norte de Mats Gustafsson e Kimmo; a sempre inolvidável Rokia Traoré e a eterna Orchestra Baobab.
Qual considera que tem sido o impacto do festival na cidade de Sines e na região, sobretudo a nível cultural e social?
Valorização do património ao utilizar cenários históricos e urbanos. Estes espaços ganham uma nova vida e visibilidade durante o evento, atraindo milhares de visitantes que, de outra forma, talvez não os explorassem. A atracção de um grande número de visitantes, incluindo muitos estrangeiros, o que impulsiona a economia local e regional através do alojamento, restauração, comércio e outros serviços. Embora o impacto económico seja por vezes medido separadamente, é inegável que o afluxo de pessoas cria uma dinâmica social intensa na cidade, com mais vida nas ruas e mais oportunidades para os negócios locais. O reconhecimento Internacional, pois o festival tem recebido inúmeros prémios e distinções tanto a nível nacional como internacional, como os Iberian Festival Awards e o EFFE Label (Europe for Festivals, Festivals for Europe). Este reconhecimento solidifica o FMM como um evento de alta qualidade e relevância cultural, elevando o nome de Sines e da região no mapa cultural global. A promoção de valores sociais importantes, com iniciativas que visam a consciencialização para desafios sociais contemporâneos, como a sustentabilidade social e a igualdade de género, a recusa do racismo e da xenofobia, demonstrando um compromisso com a construção de uma sociedade mais justa.
Numa altura em que a diversidade cultural e o diálogo intercultural são temas tão relevantes e passíveis de se tornarem sensíveis, sente que o FMM Sines tem um papel cada vez mais pertinente? A importância de festivais com este perfil será cada vez mais importante?
Um festival como o FMM Sines ajuda a quebrar preconceitos e a mostrar a riqueza que advém da partilha cultural. Ao celebrar abertamente a diversidade, o FMM Sines envia uma mensagem poderosa de aceitação e respeito pelo outro, algo fundamental em tempos de polarização. Incentiva a partilha de ideias e a reflexão sobre as nossas identidades e o nosso lugar no mundo. Expõe o público a sonoridades e tradições que talvez desconheçam, funcionando como um veículo para a consciencialização sobre a imensidão cultural do nosso planeta. Ao promover o intercâmbio cultural, estes festivais contribuem indirectamente para a paz e para uma maior compreensão entre os povos, mostrando o que nos une, mais do que o que nos separa, aproximando comunidades e culturas que, de outra forma, talvez nunca se encontrassem.
Como é que perspectiva o futuro das músicas tradicionais de cada território, num mundo cada vez mais globalizado? Apesar de tudo, esse interesse por manter — e também reinventar — as tradições faz com que a matéria-prima seja infinita? Ou acredita que há riscos de saturação, de a música tender para ser cada vez mais homogénea a nível global? E, nesse sentido, estes festivais acabam por ser também ferramentas de preservação?
A capacidade humana de criar, adaptar e preservar garante que a fonte da música tradicional nunca secará completamente. Na minha opinião, o futuro dessas sonoridades é um misto de desafios e oportunidades. A globalização, embora possa parecer uma ameaça à diversidade, na verdade abre portas para a preservação, reinvenção e disseminação dessas expressões culturais. A essência da música tradicional reside justamente na sua capacidade de absorver influências e adaptar-se, mantendo, ao mesmo tempo, as suas raízes. Isso significa que, em vez de se esgotar, a tradição pode ser revitalizada e reinterpretada por novas gerações de músicos, garantindo a sua continuidade. É verdade que há uma tendência para que certos elementos se misturem e, por vezes, se percam as especificidades que tornam cada música única. A comercialização e a procura por um apelo mais universal podem, em alguns casos, levar a uma simplificação ou diluição das formas tradicionais. No entanto, a força da identidade cultural de cada território actua como um contrapeso importante a essa tendência. Neste cenário, os festivais desempenham um papel crucial. Dão palco a artistas e géneros que talvez não tivessem tanta exposição, elevando o seu perfil e despertando o interesse de um público mais vasto, incluindo as gerações mais jovens. Promovem o intercâmbio de técnicas, repertórios e ideias, o que pode levar a colaborações inovadoras e à reinvenção da tradição. Finalmente, ajudam a transmitir o conhecimento e a história por trás das músicas, alertando o público sobre a importância da preservação cultural.