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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/07/2022

O que acontece debaixo de água não fica debaixo de água.

Carincur na MONO Lisboa: o canto da memória a navegar pela realidade material 

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/07/2022

A época alta de Verão pode ter chegado e as temperaturas elevadas que se têm feito sentir nas últimas semanas tornam irresistível a ideia de passar momentos de lazer em paragens mais refrescantes, mas quem aposta no consumo cultural não se deixa afectar por questões meteorológicas, e que o diga qualquer pessoa que tenha estado presente na galeria MONO, em Lisboa, na quinta-feira passada: no primeiro dia da (re)apresentação de Echos From A Liquid Memory – uma peça sonora e visual dedicada à imersão da liquidez da memória e do seu impacto na identidade humana -, Carincur tinha à sua espera uma plateia bastante numerosa, considerando a lotação disponibilizada pelo devido espaço.

A artista entrou em cena de forma serena, activando um sample ondulante através do primeiro circuito eléctrico em que tocou, seguindo-se a ampliação do simples soar da sua introdução no aquário, local onde a peça foi interpretada devido aos hidrofones por lá instalados — a sonoridade resultante da conjugação destes dois elementos ditou o tom do espectáculo que iríamos experienciar nos 30 minutos que se seguiriam.

Na primeira parte desta performance, “Protomemory (event)”, observamos Carincur a explorar o ambiente proporcionado pela estrutura subaquática onde se encontra, servindo-lhe simultaneamente de palco e de instrumento, eliminando assim a barreira que faz a distinção entre a tela e o pincel que concebem a obra. Paralelamente a cada movimento efectuado pela artista, ouvem-se da sua parte pontuações vocais acentuadamente harmonizadas que se coadunam ao estado de contemplação que era transmitido no decorrer desta fase.

Feita a transição para “Memory (recognition)”, a expressão emocional emanada foi claramente outra: este “processo de reconhecimento” é caracterizado por um nível de visceralidade notável, com gritos em delay que, embora se comprovem agonizantes pela percepção visual da actuação, apenas podem deixar a dimensão real da sua amplitude ao critério da nossa imaginação, dado o condicionamento físico da propagação sonora debaixo da água. Tal factor não deve, porém, ser visto como um ponto fraco: afinal de contas, a ambiguidade deste fenómeno assenta perfeitamente na dita liquidez da memória que centraliza a peça em questão. É necessário frisar que a intensidade sentida na presente fase não é projectada apenas pela voz e corpo da performer: os samples progressivamente activados ao longo da peça passam de apontamentos flutuantes e gentis para drones densos, e os jogos de luz que incidem no centro da acção criam uma sensação desconcertante perfeitamente adequada para o momento.

O último acto desta peça, “Metamemory (remembrance)”, concluiu Echos From A Liquid Memory num sentido de plena leveza; ali, Carincur permitiu-se a si própria repousar após a energia catártica que libertou anteriormente, fazendo-o através de melodias livres e delicadas, cantadas de uma forma quase operática, ao mesmo tempo que permitiu que o seu corpo se deixasse levar pelo instrumento aquático com o qual interagiu durante toda a peça, deixando-se flutuar de forma estática no mesmo.

A artista saiu de cena com igual serenidade à que deixou transparecer no início, quase como se nada de emocionalmente impactante tivesse acontecido, e, não fosse a reacção do público tão ansiosamente positiva perante o que tínhamos visto, quase que poderíamos cair no erro de considerar essa hipótese como sendo a realidade. Tenham cuidado com a memória, esta pode ser traiçoeira por vezes!     


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