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Publicado a: 18/06/2018

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[TEXTO] Miguel Alexandre

Os últimos tempos foram irrefutavelmente negros para a indústria do entretenimento. O escândalo Harvey Weinstein, prosseguido dos de várias celebridades adoradas em Hollywood, contou a história sórdida de assédio e violência sexual que finalmente saía do território de conversas em surdina para um universo que se preocupava cada vez mais em inserir este assunto nas suas narrativas. Hoje, a era pós-Weinstein dá a voz a milhões de mulheres que não hesitam em exclamar “Me Too” nas ruas e nas redes sociais.

Hoje, existem álbuns como Lemonade, A Seat At The Table ou até mesmo The Navigator: trabalhos catalisadores na colocação da mulher como voz dominante numa indústria que ainda subestima a sua mestria. Mas antes destas artistas, e destes álbuns, tivemos Lauryn Hill, Erykah Badu, Queen Latifah, Nina Simone, etc. Todas mostraram que o r&b, a Soul e especialmente o hip hop faziam-se também no feminino. Consequentemente, várias foram as gerações que seguiram a suas pegadas, abrindo espaços para artistas como Rapsody, Jessie Ware e Jazmine Sullivan. E, sem dúvida, Cardi B.

O sucesso de Cardi B parece improvável, mas segue uma fórmula minuciosamente caracterizada e fortemente trabalhada. Nascida Belcalis Almanzar, a nova-iorquina, filha de pai dominicano e mãe trinitária-tobaguense, apaixonou-se pelo hip hop numa altura em que a escola já não era tão interessante ou desafiante. A adolescência atribulada deu caminho a uma vida adulta ainda mais funesta, e desde cedo Belcalis aprendeu a endurar-se face à pobreza, à discriminação, e às relações abusivas do seu passado. Sendo assim, não haveria uma melhor maneira de iniciar o seu álbum de estreia, Invasion of Privacy, do que com uma música autobiográfica sobre ultrapassar adversidades, como é o caso de “Get Up 10”. Aqui, o verso “knock me down nines times, but I get up 10” é repetido precisamente 6 vezes no final, quase como forma de autopreservação; um mantra que estabelece, de partida, uma seriedade não aliada directamente à personalidade colorida, excêntrica e “instagramável” de Cardi.

 



E assim começamos a conhecer o universo de uma das figuras mediáticas mais irreverentes e virais do Verão passado. De um modo geral, Invasion of Privacy é excessivamente divertido, imperativo, mas também emocional e pessoal. Cardi varia entre uma delicadeza à lá Jarvis Cocker, Dolly Parton ou talvez Tiffany Haddish: estrelas que tiveram tempo suficiente para crescer fora dos grandes ecrãs, de modo a agora parecerem totalmente completas.

Existe espaço para mais – sim, é verdade –, mas numa estreia de 13 faixas, Cardi focou-se somente no essencial: mostrar um trabalho completo e assertivo que superasse as expectativas de todos aqueles que duvidaram dela. Há momentos tão impulsivos como “Bodak Yellow”, o single que catapultou a artista a proporções colossais em 2017; músicas como “Money Bag”, “She Bad” e “Drip” são o perfeito exemplo, mostrando ao mesmo tempo uma bravata mais pungente: uma mudança da sua faceta autoproclamada de “Mariah Carey dos bares de strip”– como contou à revista Rolling Stone o ano passado — para uma verdadeira história de Cinderela – neste caso: “Binderella”. No entanto, há alma, há inseguranças, há vulnerabilidades a que uma pessoa como Cardi B não escapa. “Be Careful”, o terceiro single, segue esta premissa e expande a sua produção, como também o seu lado mais emotivo: as batidas sintetizadas vão ao encontro de ritmos que remetem para a herança dominicana da cantora. Fala-se sobre possíveis traições e desconfianças no mundo dos smartphones: a frase “Poured out my whole heart to a piece of shit” é igualmente certeira e nociva como o sample de “Ex-Factor”, de Lauryn Hill.

Não há que enganar. A escrita é convincentemente diametral: tudo aquilo que Cardi é, o seu namorado e o seu adversário são o oposto; todavia, é a conjugação destes dois elementos que torna o desempenho lírico tão cativante: “I think us bad bitches is a gift from God/I think you broke hoes need to get a job”. Por vezes, existe um terceiro elemento, mais sensato, que evidencia a relação que a artista pretende estabelecer com a sua audiência: “Here’s a word to my ladies/Don’t you give these n***** none/ If they can’t make you richer, they can’t make you cum”, aconselha na música “I Do”, com a participação de SZA.

 



Há sem dúvida uma grande aposta numa arquitectura sónica diversificada. Invasion of Privavcy foi categorizado como um álbum hip hop de modo a satisfazer o sucesso tremendo de “Bodak Yellow”, mas Cardi viaja pelo pop, o trap, o r&b, sempre em nuances mais modernas. Há, contudo, um sentimento old school que vai buscar referências a grandes nomes do género musical: um pouco de Biggie na entoação, um dramatismo à Foxy Brown ou Lil Kim, uma humanidade dos tempos de “The Boy is Mine” de Monica.

Cardi B é o rosto de um renovado e ambicioso sonho americano. Este primeiro álbum incorpora tamanha tenacidade e implacabilidade que se afirma como capaz de renovar um género ainda com uma predominância masculina. Invasion of Privacy é a prova de que Belcalis Almanzar consegue ser tudo, menos ser aborrecida.

 


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