O mundo como o conhecíamos mudou, relembram os norte-americanos Jack Callahan e Jeff Witscher no tema “Won’t Let You Go”. Precedido por uma série de menções familiares, incluindo uma interpolação do tema “I Love Kanye” onde se escuta, entre memes e samples de paragens diversas, uma alusão à música concreta (e muito experimental) de Pierre Schaeffer, o segundo tema de Think Differently, o mais recente álbum da dupla sediada em Nova Iorque — e o primeiro onde se aventuram pelo formato tradicional de canção — não se limita a questionar o significado de música experimental, propondo antes um comentário incisivo sobre os seus intervenientes.
Figuras de proa de uma cena experimental a braços com uma profunda crise existencial, a dupla explora no álbum lacrado em setembro pela Post Present Medium o desalento de uma geração com mais dúvidas do que certezas, marcada pelas mazelas de uma pandemia ainda por cicatrizar. A frontalidade e sarcasmo de Think Differently são o espelho distorcido de uma realidade fragmentada, alimentada por cliques e tendências que se transformam à velocidade de um fósforo, revelando as fragilidades de uma cena (e um conceito em constante mutação, o da música experimental) em negação. “Esta época da cena [experimental] do início dos anos 2000, que foi realmente frutífera, estava a sofrer uma morte lenta e dolorosa, e a COVID veio simplesmente matá-la”, disse Callahan em entrevista ao Stereogum. “Qualquer pessoa que já estivesse com dúvidas ou a envelhecer acabou por simplesmente desistir”.
Tudo começa na estrada: são as digressões desgastantes, os cenários de precariedade e as noites dormidas em quartos e hotéis duvidosos. Um estilo de vida que, sabemos, é cada vez mais insustentável para quem faz da música profissão, refém de um mercado incapaz de proporcionar conforto e segurança financeira. É esse cenário de labuta e frustração que os dois, com humor e cumplicidade notória, exploram em Think Differently, onde a tradição geek de antecedentes como os Weezer e They Might Be Giants choca de frente com as aventuras dada dos Negativand pelos territórios da apropriação.
É um desafio interessante, mas não são os primeiros a fazê-lo: Lolina (metade, em tempos, do duo Hype Williams, ao lado do iconoclasta Dean Blunt) já se havia debruçado sobre esse tema no álbum Who is experimental music?, questionando os múltiplos sentidos desse modo de pensar a arte, embora sem o desplante e a ousadia irreverente da dupla norte-americana. Não se trata apenas de criar sons disruptivos ou de explorar novas fronteiras sonoras, antes uma reflexão sobre o valor intrínseco dessa mesma exploração. E engane-se quem achar que estamos perante um mero exercício de sátira: o valor destas canções é inestimável. Think Differently tem a capacidade inata de cruzar experimentalismo e ironia quanto baste com os lugares comuns do rock noventeiro, sem nunca se perder inteiramente neles.
O storytelling que percorre o disco é vívido e desenhado a partir das experiências que a dupla foi acumulando ao longo de uma carreira com mais vales do que picos. “Boiler Room”, um dos singles, é exemplo disso: uma estória não ficcionada sobre a passagem de Witscher (que então conjurava mundos muito diferentes destes que aqui escutamos enquanto Rene Hell) por essa instituição, contada com detalhe e humor blasé. Está lá tudo: as promessas irrealistas, as falsas expectativas e os comentários depreciativos que surgem por consequência.
“Hate the Player”, uma colaboração com a cantora-compositora Ana Roxanne, é o lema de um grupo com mais detratores que defensores (“don’t hate the game, hate the player”, canta Callahan, voz mais que adulterada, no refrão). Em “Value of Music”, a dupla discorre sobre a legitimidade das métricas de avaliação (“How do you judge the music’s worth? Is it intangible or something you consider real?”), mas também sobre os dissabores de nadar contra a corrente num meio em que toda a gente se conhece (sim, até em Nova Iorque). A dado momento, Witscher coloca o dedo na ferida e pergunta: afinal, quem é que ainda quer falar sobre música nos dias de hoje? Longe de configurar um marco ou de gerar consenso, Think Differently ocupa um lugar demasiado idiossincrático para o espaço crítico dos nossos dias. É uma obra conceptual intransigente — sarcástica, traiçoeira e desavergonhadamente divertida —, idealizada por dois agnósticos do género que se colaram a um rótulo que não lhes pertence, mas que de algum modo lhes assenta — e Callahan e Witscher vestem essas credenciais com distinção.