LP

Calibro 35

Traditori Di Tutti | S.P.A.C.E. | DECADE | BLANCA (Colonna Sonora Originale della serie TV)

Record Kicks / 2022

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 08/03/2022

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Há um arco deveras revelador na discografia dos italianos Calibro 35. Em 2008, a sua homenagem ao universo das bandas sonoras do cinema Giallo deveria ter sido gesto sem consequência, discreta vénia às criações de gente como Franco Micalizzi, Luis Bacalov, Ennio Morricone, Armando Trovaioli ou, entre outros, Daniela Casa assinada por quem queria deixar claro que bandas interessadas na ideia de groove tinham outros territórios para explorar para lá daqueles contidos no grande universo da música negra norte-americana. Uma paixão por velhos títulos de vinil lançados em obscuras e ultra-valiosas edições da TAM, CAM, Cinevox, Cometa Edizioni Musicali, General Music ou, por exemplo, Deneb, transformou-se num disco; o disco justificou o desafio para um concerto; esse concerto despoletou uma carreira; e, quase década e meia volvida, eis que os Calibro 35 de Enrico Gabrielli, Fabio Rondanini, Luca Cavina, Massimo Martelotta e Tommaso Colliva assinam a banda sonora de Blanca, série policial italiana de grande impacto com distribuição internacional da Netflix. O circulo completa-se. Mas, pelo meio há uma carreira sumarenta com mais de uma dúzia de títulos, entre trabalhos originais, bandas sonoras e registos ao vivo, sinal claro de que, no mínimo dos mínimos, de James Brown aprenderam pelo menos a ideia do trabalho intenso merecendo, certamente, o título honorário de “hardest working men in italian showbusiness”. Outro dado curioso: uma banda que arrancou a querer homenagear as bandas sonoras que tanto marcaram os seus membros não só acabou ela mesma a assinar bandas sonoras, mas foi igualmente alvo da mesma reverência sampladélica que ajudou a elevar o culto dos compositores que tanto os influenciaram: Dr. Dre, Jay-Z ou Demigodz não enjeitaram a possibilidade de extrair tensão eléctrica de algumas criações dos Calibro 35, indicador inequívoco do… bem, do calibre groovadélico destes senhores.



Agora, depois de terem apresentado Blanca, os Calibro 35 e a Record Kicks decidiram recolocar nas lojas um tríptico do meio da carreira do grupo: Traditori di Tutti, lançado originalmente em 2013 (e acabado de relançar na última sexta-feira), inspira-se num livro homónimo de Giorgio Scerbanenco e afirma-se como uma espécie de banda sonora para o filme que facilmente se desenrola nas nossas cabeças lendo as suas vibrantes páginas. Rock tão carregado de músculo eléctrico quanto interessado na sinuosidade groove, como se os Black Sabbath e os Funkadelic se tivessem encontrado num ringue de boxe. Sujidade carregada de volts, atmosfera sleazy e algo psicadélica a espaços, com guitarras e metais em combustão espontânea. O filme deveria ser feito, quanto mais não fosse para aproveitar a excelente banda sonora: queremos todos ver a cena carregada de tensão a que “Mescaline 6” dará vida com o seu órgão carregado por um b-boy break imparável e, claro, “You Filthy Bastards!” pede cena de porrada num bar, com aquela guitarra embrulhada em wah wah a servir na perfeição para coreografar socos, chutos e cadeiras a voar.



Dois anos depois de Traditori, os Calibro 35 deixaram as ruas da Itália urbana e rumaram ao S.P.A.C.E. (a reedição fica disponível no próximo dia 25), explorando um género, a ficção científica, ausente da cinematografia italiana dos anos 60, procurando, como nos confessaram os próprios em entrevista a ser publicada em breve, responder à premente questão “a que soaria uma banda sonora de um filme de ficção científica italiano em 1966?” . Apesar das ferramentas base (baixo e bateria + guitarra e órgão)  serem as mesmas – talvez a flauta e o clarinete baixo de Enrico Gabrielli tenham outra predominância nos arranjos e haja um maior investimento em sintetizadores analógicos – a atmosfera é algo diferente: continua a estar presente o lastro rock mais ácido, mas há outra desenvoltura nas composições, como tão bem demonstrado em “Ungwana Bay Launch Complex”, um tema de hip hop gravado em Orion pelos Africa 70 de Fela Kuti, ou “An Asteroid Called Death”, uma elíptica peça rítmica que nos atrai para um vortex que poderia ter sido criado pelos Electric Prunes versão David Axelrod se em vez de uma missa lhes tivessem encomendado em 1968 uma banda sonora para a então eminente missão lunar da Nasa (e mesmo não tendo carácter litúrgico há no arranjo desse tema espaço para um breve e belíssimo interlúdio coral digno de I Cantori Moderni di Alessandroni).



Finalmente, no que ao tríptico agora reprensado diz respeito, há que mencionar Decade (trabalho originalmente lançado em 2018 e com data de reapresentação em vinil marcada para o final do próximo mês de Abril), disco que serviu para, sem surpresas, assinalar a primeira década de carreira do grupo italiano. Gravado ao vivo em estúdio sem overdubs por um ensemble dilatado de 12 elementos com reforço de sopros e cordas, este álbum arranca para uma longa viagem no The Shrine com “Psycheground” e só a termina quando chega à Roma contemporânea em “Travelers”. Pelo meio, o groove volta a ser declinado em todos os tempos possíveis e imaginários, com um rigoroso e orgânico pulso que se faz em igual medida de classe e técnica, de bom gosto e arrojo. “Modo”, o mais longo tema do álbum, parece ter início em terreno de Philip Glass antes de evoluir para um sublime pedaço de crime jazz que ainda assim aponta tanto à Nova Iorque de Serpico como à Lagos de Fela, marcas de uma fértil imaginação orquestral que atravessa toda a obra do grupo italiano.

E de tudo isto, os Calibro 35 extraíram argumentos que agora aplicaram em BLANCA (lançada em meados do último mês de Fevereiro). Há vozes por aqui que encaixam, certamente, no perfil da encomenda que a produtora da série lhes dirigiu: MEI e Arya Delgado adornam “Ready Steady”, o primeiro tema do alinhamento, colocando-o algures entre a memória de Amy Winehouse e o presente de Little Simz. Há mais momentos vocais: um solene tema de recorte gospel em “White Shark” cantado por Elisa Zoot (que também dá voz a “I See Through You”); uma balada guiada por cristalina guitarra em “The World is Blind” (modo Winehouse, uma vez mais, mas com Tahnee Rodriguez); mais um assomo cinemático de toada tranquila em “The Hardest Day of My Life” com contributo vocal de Tom Newton; uma marcial “Genova Chiama” com o rap assertivo de Gorka; e, finalmente, uma versão do clássico de James Brown “It’s a Man’s Man’s Man’s World” a que Marina Maximillian dá autoritária voz numa arrebatadora interpretação. De permeio, há toneladas de sumo instrumental, com os Calibro 35 a deixarem por esta altura muito claro que dominam na perfeição as regras do género, impregnando de psicadélico groove e bem oleada classe técnica tudo aquilo em que tocam. Como verdadeiros mestres que aprenderam a ser.


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